1. Introdução

Em “O que é o contemporâneo?” (2009), Giorgio Agamben propõe algumas definições para a noção de contemporaneidade. Elas são em certa medida cumulativas e fazem parte de uma longa cadeia de pensamento, de modo que as primeiras definições não são exatamente substituídas ou negadas pelas seguintes, mas estas se constroem a partir daquelas; ocorre que cada nova definição expõe um aspecto da contemporaneidade que as anteriores não haviam ainda dado conta. Com razão, no fim do texto Agamben oferece uma breve síntese em que retoma as primeiras páginas já com os adendos levantados em toda a reflexão.

Há dois trabalhos que (e isso tomaremos como hipótese) podem ganhar se conseguirem estabelecer um diálogo com estas noções de contemporâneo. Estes dois trabalhos são muito delicadamente diferenciáveis; na prática, se confundem. Faremos aqui, para início e prosseguimento deste texto, uma separação teórica: 1. de um lado, um modo de produção de filmes que por vezes iremos nos referir como “cinema compartilhado”, mas poderia ser chamado também de um cinema de dispositivos, um cinema de grupo, um cinema de encontro. O mais importante é saber que estamos falando de um recorte do cinema documentário caracterizado por filmes que nascem de encontros entre (pelo menos) dois indivíduos e que preservam no produto final o caráter da singularidade desses encontros, tais como o não-roteiro, a não-tese, a abertura para o real, e uma tensão entre esse real e a necessária dimensão de artifício que o filme possui; alguns exemplos para materializar este âmbito: filmes de Eduardo Coutinho (digamos, Edifício Master, 2002), Rua de Mão Dupla (dir. Cao Guimarães, 2002), Histórias de Morar e Demolições (dir. André Costa, 2007), A Cidade é uma Só (dir. Adirley Queirós, 2012), ou Baronesa (dir. Juliana Antunes, 2017). São filmes que entram no cinema documentário em oposição às investigações mais jornalísticas ou aos documentários de cunho mais didático, aos exemplos de João de Barro (dir. Humberto Mauro, 1956), O Dilema das Redes (dir. Jeff Orlowski, 2020) e Portugês, a Língua do Brasil (dir. Nelson Pereira dos Santos, 2007). Agruparemos este segundo grupo e criaremos, com isso, dois extremos forçosamente grosseiros: numa ponta o cinema compartilhado (de grupo, de encontro, etc), no outro as imagens de reportagem às quais nos referiremos também como modelo sociológico (de filmagem)1. A diferença crucial reside no modo de produção, em um caso orientado por processos coletivos e abertos para interferências de diversas ordens – o que inclui até procedimentos como ligar a câmera e o gravador sem sequer olhar para o que ela captura, tamanho o desapego em prever o filme antes de fazê-lo –, enquanto no outro caso aparece algo mais caracterizado por alguém querendo usar o cinema para “falar alguma coisa” ou fazer algo como defender ou expor uma tese ou hipótese, e indo buscar ou produzir as imagens que precisa para fazer isso.

Coloquemos então de um lado o cinema compartilhado como oposto ao modelo sociológico, e 2. do outro lado, uma “pedagogia do cinema”. Usaremos nos próximos parágrafos estes termos (pedagogia do cinema) para nos referir não aos processos pedagógicos envolvidos na produção ou na contemplação de filmes, mas sim a uma pedagogia (uma teoria de Educação) que vem do cinema, isto é, a uma proposta de compreender a educação, a posição do professor, do aluno, do processo de ensino e aprendizagem, fundamentada em processos da teoria, da história e da prática do cinema. Muito da pedagogia do cinema que gostaríamos de tratar – algo como uma “pedagogia da emancipação”, “pedagogia do dispositivo” ou uma “pedagogia do encontro” – tem uma grande semelhança com a noção de mestre ignorante, de Jacques Rancière (2002), que por sua vez se opõe à noção do explicador que só embrutece2. Esse é o quadrante com o qual iremos trabalhar: cinema compartilhado e modelo sociológico, pedagogia do cinema com mestre ignorante e pedagogia tradicional com explicador embrutecedor. Argumentaríamos em favor, é evidente, do modo compartilhado de produção e do modo mestre-ignorante de dar aula; a diferença entre os dois é delicada, mas trataremos daqui em diante como coisas distintas.

O que faremos será levantar algumas passagens do texto de Agamben em que ele sugere definições para o contemporâneo e tentar encaixar esse quadrante nelas, uma a uma, para ver que tipo de melhor entendimento podemos ter a partir desses pensamentos sobre o contemporâneo, em especial sobre a pedagogia do cinema no modo de emancipação trazido pelo mestre ignorante e sobre a produção fílmica no modo compartilhado.

2.

A contemporaneidade, portanto, é uma singular relação com o próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias; mais precisamente, essa é a relação com o tempo que a este adere através de uma dissociação e um anacronismo (AGAMBEN, 2009, p. 59).

A primeira definição é ainda muito solta e de baixa aplicabilidade às atualizadas pedagogia do cinema (de emancipação, de dispositivo): ela carece de subsídios para a alteridade, e por isso vai para o lado do embrutecimento. Começa postulando uma centralidade do sujeito tal que, transposta aos filmes, ficaria sob o papel de algo como um enunciador um tanto onipotente – digamos, documentários produzidos dentro de um modelo sociológico em que o ato de filmar (e montar) serve mais como um estudo de caso, ou como uma maneira de demonstrar ou verificar uma hipótese do documentarista; estaríamos muito mais próximos das reportagens de TV. Transposta à educação, essa centralidade manifestaria-se mais na figura do explicador ou de alguém que é reconhecido como autoridade na situação pedagógica.

O entendimento demandado é este pela proposta de pensar a “singular relação com o próprio tempo”, onde lê-se que há um sujeito que relaciona-se com um tempo em que ele especificamente (e especialmente) insere-se. Faz falta uma discussão sobre o tempo propriamente dito, mas falar em “próprio tempo” parece ser também algo que toma um sujeito central como referência para entender o que é o tempo. É certamente o meu tempo, o seu tempo, o tempo em que ele se insere; mas não é contemplada aqui a possibilidade desses tempos de diferentes sujeitos se cruzarem, ou, ainda, deles dependerem um do outro para se constituir.

Aderir ao próprio tempo e simultaneamente distanciar-se dele é algo que serve para dizer do explicador ou do repórter. O presente, nestes casos, ganha um caráter de utilidade; o encontro vira funcional, pois a participação desse sujeito central na aula ou na filmagem serve mais para se desviar do presente que para se entregar a ele. O professor das explicações constrói com seus atos uma educação do amanhã, uma escola do amanhã, do futuro3, e retoma o passado senão para capturá-lo e ensiná-lo: o professor adquire um saber (passado) e o ensina (futuro); a natureza presente do encontro não é por demais significativa nesse tipo de processo. Da mesma forma faz também o repórter: vem ele com sua tese pronta (passado) e utiliza o encontro para produzir as imagens que irão denunciar ou explicar aquela situação (futuro); o presente, sempre servil. Faz sentido aqui falar em um contemporâneo que é no presente mas que escapa do próprio presente e se dá em tempos outros.

3.

O poeta, enquanto contemporâneo, é essa fratura, é aquilo que impede o tempo de compor-se e, ao mesmo tempo, o sangue que deve suturar a quebra (AGAMBEN, 2009, p. 61).

Lidaríamos aqui com um posicionamento semelhante ao anterior, mas ainda mais contundente. O tempo como algo fraturado começa (é verdade) a dar margem para pensar noções de alteridade. Agamben chega a falar, em contraposição a um “tempo de vida do indivíduo”, de um “tempo histórico coletivo [. . .], cujo dorso [. . .] está quebrado” (2009, p. 60-61); mas como se define esse tempo coletivo? Ora, se o poeta é a um só tempo a própria fratura e aquele que deve suturar a quebra, a centralidade de um sujeito – ênfase na singularidade: um sujeito – é ainda a referência para pensar o tempo contemporâneo. Contradiz um bocado a noção de um tempo coletivo esta outra de pensar o próprio poeta como fratura e aquele que sutura a quebra.

Mas a dupla função do poeta contribui muito para a compreensão do explicador e do repórter se aplicada sem considerar a noção de tempo coletivo (que, depois, no texto de Agamben, pode ser retomada sem complicações; mas não aqui). Seriam eles (o explicador e o repórter) figuras que atuam para quebrar mesmo o tempo: para impedir que o passado, o presente e o futuro componham-se como uma unidade; a atuação no presente se dá para ir a um futuro que não é, senão, o próprio passado: um ciclo de embrutecimento4, e o presente ele mesmo é um caminho como que quente, algo por onde se passa mas não se fica. A atuação do poeta, do explicador e do repórter é uma fratura que nega o presente como um aqui e agora, e que só faz transformar o (mesmo) passado em futuro.

4.

Contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o escuro. Todos os tempos são, para quem deles experimenta contemporaneidade, obscuros (AGAMBEN, 2009, pp. 62-63).

O presente começa, por fim, a ser a referência para definir o contemporâneo; ele não se define agora em função do poeta (mais como explicador ou repórter, anteriormente) e sua ação demasiada subserviente ao passado ou ao futuro, em todo caso desconexa do aqui e agora do presente que ele habitava apenas pelo valor funcional. É manter fixo o olhar no seu tempo que interessa. Ainda há um sujeito centralizado sendo colocado como objeto de análise, e esse sujeito possui um tempo que é seu. O contemporâneo de alguma maneira deixa-se cativar por este tempo que lhe pertence. Talvez seja um salto declarar já esse tempo como “o” presente, mas não o é pelo menos declará-lo como “um” presente: presente seria o tempo onde se dá o modo de ser e estar de um dado sujeito.

Sobre a noção da obscuridade desse tempo experimentado, é possível que, como dizia Aristóteles dos grandes enredos em narrativas (2008, pp. 51-52), o fato de ser grande demais não permite a visão do todo: seria então o tempo experimentado por um sujeito, seu presente, por demais misterioso para ser apreendido como um todo por um gesto de percepção. Aquilo que já foi, a História, poderia ser estudada; e aquilo que não foi, imaginado; mas aquilo que é, isso nos escaparia pela grandeza. E esse escape seria uma qualidade definidora do presente.

Voltemo-nos então àquilo que escapa de quem mantém fixo o olhar no seu tempo. Esse pensamento estabelece um diálogo enorme com a noção de alteridade: sobretudo porque no recorte de pedagogia do cinema e de produção fílmica que assumimos (apontados no início), ela (a alteridade) se dá em encontros que são primordialmente caracterizados pela diferença. É a diferença que vem à tona quando na produção de um filme ou numa aula opta-se pelos princípios expostos de um cinema compartilhado ou de uma posição de mestre ignorante (em desfavor aos princípios do modelo sociológico de fazer documentário ou de uma pedagogia mais embrutecedora). Mas, se a diferença é o que se destaca pelo choque, pelo contraste, e pela invenção que o contato com o novo demanda, há algo que sustenta esse encontro e essa experiência de alteridade; algo que o torna possível, diríamos meramente a capacidade de se submeter a um encontro com a diferença. É uma questão de princípios humanos: um deles é a possibilidade de se disponibilizar para a alteridade. Essa igualdade, tão mobilizada por aquilo que externamente habita o mundo tanto de um indivíduo quanto de outro – como as imagens e os sons, no caso do cinema e do audiovisual –, direcionada no processo de produção de um filme (compartilhado) ou em uma aula (dada por um mestre ignorante), tem pelo menos duas propriedades no que diz respeito às suas consequências: 1., os sujeitos envolvidos (todos!) precisam ter disponibilidade para oferecer uma especial atenção ao tempo que experimentam, e 2., um bocado de coisas que por definição escapam – em suma, a diferença; tudo aquilo que é o outro – entra em contato (ou em choque, ou em diálogo) com um sujeito. É nesse sentido que podemos dizer que são encontros não para perceber aquilo que se pode ver (a luz), isto é, o igual, aquilo que é de comum a todos os indivíduos, mas são encontros para perceber justamente aquilo que não se vê (o escuro). Logo, “contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o escuro” (AGAMBEN, 2009, p. 62); contemporâneo é aquele que tem uma experiência de alteridade.

5.

O contemporâneo é aquele que percebe o escuro do seu tempo como algo que lhe concerne e não cessa de interpretá-lo, algo que, mais do que toda luz, dirige-se direta e singularmente a ele. Contemporâneo é aquele que recebe em pleno rosto o facho das trevas que provém do seu tempo (AGAMBEN, 2009, p. 64).

Neste trecho vale mais destacar o que se pode pensar sobre a disponibilidade. A centralidade do sujeito como referência, muito marcada nas primeiras passagens comentadas, torna-se uma centralidade como mobilizadora: o sujeito descrito não é tão propriamente o que define o tempo ou o contemporâneo, mas ele é quem mobiliza o contemporâneo. É preciso que alguém faça alguma coisa para que o contemporâneo aconteça. Mas, quando aplicamos isso ao mestre ignorante ou a um cinema compartilhado, o outro (a diferença) torna-se indispensável; fazer acontecer o contemporâneo é fazer acontecer uma experiência de alteridade. E isso não é algo feito por um dos lados da equação, mas por todos os envolvidos. É preciso uma disponibilidade para ter a experiência (que não é solitária, mas com o outro) – além de, e especialmente, uma disponibilidade para reconhecer a igualdade e, com ela, confrontar a diferença. Aparece aqui um certo amor pelo mistério; ou, em outros termos, um interesse pela diferença; ou, em outros ainda, um gosto pelo escuro. É preciso compreender que a diferença lhe diz respeito; e que a diferença, mais que a igualdade, vai diretamente ao seu encontro.

6.

Ser contemporâneo é, antes de tudo, uma questão de coragem: porque significa ser capaz não apenas de manter fixo o olhar no escuro da época, mas também de perceber nesse escuro uma luz que, dirigida para nós, distancia-se infinitamente de nós. Ou ainda: ser pontual num compromisso ao qual se pode apenas faltar (AGAMBEN, 2009, p. 65).

Falaríamos ainda da disponibilidade, e principalmente do quanto ela depende de um posicionamento. Seria um bom diálogo entre uma pedagogia do cinema pensada com o mestre ignorante e as propostas da “Pedagogia da Autonomia” (1996), de Paulo Freire: seríamos forçados a pensar sobre a condição humana e seu caráter ético e estético, e portanto político. Age-se. Posiciona-se. Isso é dado. O contemporâneo nesses recortes da produção cinematográfica e da pedagogia do cinema seria algo a alcançar-se somente depois de posicionar-se nesse sentido. A diferença que tanto nos escapa: é preciso fazer o esforço de se dispor a entrar em contato com ela. Depois da experiência de alteridade, as diferenças continuam a existir – efetivamente, só aumentam. Mas, nessas oportunidades que temos (ou que criamos junto com o outro) de promover um encontro em que elas (as diferenças) são expostas – e o impacto de se submeter a essa exposição é notável5 –, é uma questão de realmente tentar – realmente tentar sentir o que sente o outro, perceber o que percebe o outro, experimentar o que experimenta o outro. Isso é ser pontual num compromisso ao qual se pode apenas faltar.

7.

A contemporaneidade se inscreve no presente assinalando-o antes de tudo como arcaico, e somente quem percebe no mais moderno e recente os índices e as assinaturas do arcaico pode dele ser contemporâneo. Arcaico significa: próximo da arké, isto é, da origem (AGAMBEN, 2009, p. 69).

Então, o que acontece numa experiência de alteridade? Já vimos (mas só agora colocaremos em poucas palavras:) que a contemporaneidade, na pedagogia e na filmagem, se dá quando alguém percebe, prestando atenção, que no seu tempo há uma escuridão, e essa escuridão diz respeito ao outro e sua diferença; assim, constituem-se as escuridões através de um conhecimento de si e de um reconhecimento do outro: o que eu vejo e o que eu não vejo, mas que eu verifico. Já definimos que o tempo que lhe diz respeito pode ser chamado de seu presente; ele, portanto, não se confunde com o passado e o futuro. Mas podemos pensar noções de passado e de futuro que complementem essa de presente (o tempo que lhe diz respeito) na situação de alteridade. O passado seria naturalmente entendido pela noção de arché (arké, na tradução de Agamben citada acima): não é exatamente aquilo que vem antes, mas é aquilo que sustenta tudo, o princípio do todo; a origem, nesse contexto. A arché do presente não é o que vem antes do presente, é o que sustenta o presente. A arché, inclusive, está sempre em todas as coisas. Se a arché é água, conforme diz-se de Tales de Mileto, ou o ar, conforme Anaxímenes de Mileto, ou ainda o fogo, conforme Heráclito de Éfeso, o que se conclui disso é que a água, o ar, ou o fogo, de alguma forma estão nas coisas6. Se a origem da árvore é a água, então a água está na árvore; ela não veio antes e deixou de ser. É esse sentido de arché que podemos atribuir à noção de passado; e então poderíamos pensar em uma experiência de alteridade no que diz respeito ao seu passado: não ao que veio antes dela, mas àquilo que está nela e que a permite ser, que a sustenta.

8.

A distância – e ao mesmo tempo a proximidade – que define a contemporaneidade tem seu fundamento nessa proximidade com a origem, que em nenhum ponto pulsa com mais força do que no presente (AGAMBEN, 2009, p. 69).

A pedagogia do cinema e a produção compartilhada conhecem bem disso. As propostas de atuação no presente atuam fortemente no nível da memória individual e coletiva. Dispositivos como “fotografia narradas” ou “história dos objetos” (MIGLIORIN et al, 2016, pp. 28-29 e pp. 36-37, respectivamente), ou as experiências de dinâmicas de grupo na pedagogia do cinema7 revelam muito como uma disponibilidade para uma experiência de alteridade traz à luz muito do passado (da arché) daquelas diferenças. Quando alguém conta uma história mobilizado por uma dinâmica ou um dispositivo, não é uma questão de lembrar algo que já passou; é, ao contrário, uma questão de verificar algo que está aí, algo que fundamenta. Digamos, a memória não vem como antecedência cronológica, mas como parte do tempo que interessa; não é que o passado e o presente são uma e só coisa, nem que o passado serve ao presente, mas sim que o passado é aquilo que garante o presente. Se a contemporaneidade se inscreve no presente assinalando-o antes de tudo como arcaico, diríamos que uma pedagogia do dispositivo ou um filme compartilhado atuariam como instauradoras de arcaicas contemporaneidades.

9.

A atenção dirigida a esse não vivido é a vida no contemporâneo. E ser contemporâneo significa, nesse sentido, voltar a um presente em que jamais estivemos (AGAMBEN, 2009, p. 70).

Já podemos, espera-se, entender isso por completo em termos de alteridade, e nessa altura os fragmentos de Agamben também já (cremos) se localizam muito bem nas delimitações propostas de pedagogia do cinema e de produção fílmica. Aqui, nota-se que o não vivido não é o (seu) passado e nem o (seu) futuro: é o presente do outro. Há o tempo que lhe diz respeito e isso vale para todo indivíduo, pois, embora sejam todos diferentes, há essa igualdade primeira. É nesse sentido que pela experiência de alteridade volta-se a algum presente que não é seu; “a um presente em que jamais estivemos”. Por fim,

Isso significa que o contemporâneo não é apenas aquele que, percebendo o escuro do presente, nele apreende a resoluta luz; é também aquele que, dividindo e interpolando o tempo, está à altura de transformá-lo e de colocá-lo em relação com os outros tempos, de nele ler de modo inédito a história, de “citá-la” segundo uma necessidade que não provém de maneira nenhuma do seu arbítrio, mas de uma exigência à qual ele não pode responder (AGAMBEN, 2009, p. 72).

10. Referências

AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo?. In: ______. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Tradução: Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó, SC: Argos, 2009. pp. 55-73.

ARISTÓTELES. Poética. Tradução e notas: Ana Maria Valente. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008.

CRESSON, André. A filosofia antiga. Tradução de Beatriz Moura. 2a edição. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1960.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: Saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

FRESQUET, Adriana. Cinema e educação: reflexões e experiências com professores e estudantes da educação básica, dentro e “fora” da escola. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013.

MIGLIORIN, Cezar. Inevitavelmente Cinema: educação, política e mafuá. 1. ed. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2015.

______ et al. Cadernos do Inventar: cinema, educação e direitos humanos. Niterói (RJ): EDG, 2016.

______; PIPANO, Isaac. Cinema de Brincar. Belo Horizonte, MG: Relicário, 2019.

RANCIÈRE, Jacques. O Mestre Ignorante. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.

REIS, A. L. M.; FONSECA, K. F. . Cinema, Sujeitos e Territórios: Relatos enviados aos participantes dos encontros do primeiro semestre de 2019. Disponível em: <http://cinemasujeitoseterritorios.uff.br/experiencias/>. Acesso em 08/12/2019.TEIXEIRA, Francisco Elinaldo (organizador). Documentário no Brasil: tradição e transformação. São Paulo: Summus, 2004.

11. Notas

  1. Em alusão ao termo de Jean Claude Bernardet reproduzido por outros pesquisadores do cinema documentário com sentido similar, e. g. vide artigos da coletânea Documentário no Brasil: Tradição e Transformação (TEIXEIRA, 2004). ↩︎
  2. Diz FRESQUET numa passagem em que discute as propostas de Rancière (2013, p. 22) “há embrutecimento quando uma inteligência é subordinada a outra, quando se aposta no mito da necessidade pedagógica da explicação. Explicar é negar a capacidade dos sujeitos poderem entrar em contato direto com aquilo a ser aprendido. Daí que o autor [Rancière] defina a ordem explicativa como própria de uma pedagogia embrutecedora”. ↩︎
  3. Ver a discussão sobre as “escolas do amanhã” em MIGLIORIN, 2015, especialmente pp. 69-73. ↩︎
  4. Diz Rancière, 2012, p. 18: “A lógica da explicação comporta, assim, o princípio de uma regressão ao infinito [. . .] O que detém a regressão e concede ao sistema seu fundamento é, simplesmente, que o explicador é o único juiz do ponto em que a explicação está, ela própria, explicada. Ele é o único juiz dessa questão, em si mesma vertiginosa: teria o aluno compreendido os raciocínios que lhe ensinam a compreender os raciocínios? [. . .] O segredo do mestre é saber reconhecer a distância entre a matéria ensinada e o sujeito a instruir, a distância, também, entre aprender e compreender. O explicador é aquele que impõe e abole a distância, que a desdobra e que a reabsorve no seio de sua palavra”. Assim, não há uma emancipação: há, no máximo, uma troca de lugares. Tudo que o aluno pode fazer é tomar o lugar do professor e, desta forma, instaurar outra pessoa no lugar de aluno que no futuro só poderá tomar o seu lugar, e assim por diante. ↩︎
  5. Ver, por exemplo, a discussão sobre a delicadeza de fazer uma crítica aos “filmes de escola” que perpassam essa pedagogia emancipadora e essa produção compartilhada, no texto “Para uma crítica dos filmes feitos na escola”, MIGLIORIN e PIPANO, 2019, pp. 57-66. ↩︎
  6. Ver “A Filosofia Antiga”, de André Cresson, 1960. ↩︎
  7. Registros de relatos dessas práticas e dinâmicas podem ser vistos em REIS e FONSECA, 2019, e no site <http://cinemasujeitoseterritorios.uff.br/nossomaterial/>. ↩︎

Deixe um comentário