1. O documentário escola-comunidade: Uma arte possível

Exibir filmes como ferramenta pedagógica complementar às disciplinas tradicionais é recorrente em diversos modelos educacionais há muito tempo. Porém o audiovisual pode enveredar  por outros caminhos muito mais atuantes e significativos aos jovens. Na última década, ampliaram-se as discussões a respeito da admissão da produção audiovisual na educação, entretanto ainda são escassas as inserções neste campo de realização como atividade artística e educativa, planejadas e implementadas na grade curricular. A inclusão do fazer audiovisual continua inibida frente às outras tantas dificuldades que o ensino enfrenta na atualidade.

Este relato expõe uma experiência de criação audiovisual coletiva e busca indagar como experimentos semelhantes possam ofertar uma maior aproximação da escola com a comunidade. Igualmente, são pontos de interesse desta investigação como o documentário, enquanto arte, e o processo de realização audiovisual coletivo, enquanto liturgia arte-educadora, podem ser compreendidos dentro da visão da educação contemporânea.

A metodologia de organização, o desenvolvimento e a mediação para a concretização do projeto foram aqui descritos como forma de ilustrar pontos significativos para uma prática artístico-pedagógica que possa contribuir como uma ação artística-educativa. Ação esta compreendida como prática potencialmente transformadora da realidade, que legitima os preceitos contemporâneos sobre arte/educação, dos quais a arte e a cultura assumem papéis fundamentais e constitutivos no processo educativo.

Hoje, pode-se dizer que é perfeitamente possível uma pessoa sem conhecimentos técnicos em cinematografia produzir um vídeo utilizando-se apenas da câmera do seu telefone celular. Quem sabe, se não optar apenas por empregar o aparelho móvel para editar, distribuir e divulgar o filme. Dentro dessa perspectiva, narro aqui uma experiência1 vivida há mais de dez anos, do qual foram utilizados singelos equipamentos semiprofissionais para a época, mas que poderiam ser substituídos hoje por dispositivos amadores. De certo modo, o projeto poderia ter sido feito por um grupo de jovens do ensino médio da atualidade, utilizando-se apenas de recursos triviais. É neste exercício da imaginação que pretendo embasar os relatos e argumentos aqui oferecidos. A técnica não é mais uma barreira intransponível e sim, ao contrário, uma facilitadora para o acesso ao universo dos jovens atuais. Os educandos enxergam o audiovisual com naturalidade – tanto no processo do fazer (gravação), como o lapidar (edição). Este é um campo, asseguro, muitas vezes com maior domínio por parte dos alunos do que dos professores, invertendo a lógica tradicional da experiência.

O curta-metragem Liberdade, mas nem tanto foi selecionado para este relato, entre tantas outras experiências possíveis de serem descritas, pela sua claridade no modo de fazer e seu didatismo no pensar a arte cinematográfica – dentro da perspectiva da produção documental amadora, impossibilitada de viabilizar produções audiovisuais mais intricadas, mesmo assim de grande valor artístico. Ao mesmo tempo em que trabalha a complexidade do pensamento da linguagem cinematográfica de modo significativo, o projeto apresenta uma singeleza no processo de se captar as imagens, sons e o editar do conteúdo, apenas com cortes simples – contribuindo como um modelo possível de ser realizado em diversos âmbitos. Como se o vídeo consagrasse um gênero documental preocupado substancialmente em narrar histórias cotidianas, em uma linguagem coloquial sem formalismos, sem o anseio da exposição global e acabamento de um produto comercial que convence pela aparência e não pelo conteúdo e considera o público como consumidor, contrapondo-se a ideia de sujeito consciente inserido no contexto histórico e cultural da trama narrativa.

2. Relato de uma experiência

Liberdade, mas nem tanto foi realizado em setembro de 2009 em Manaus, capital do estado do Amazonas. O filme foi produzido pelo projeto Oficinas Tela Brasil, um projeto viabilizado por meio de leis de incentivo à cultura, que proporcionava um primeiro contato com a realização audiovisual e destinava-se, sobretudo, aos jovens do ensino médio residentes em áreas de alta vulnerabilidade social e carentes de recursos públicos na área da cultura. Idealizado pelos diretores Laís Bodanzky e Luiz Bolognesi, entre 2007 e 2014 as Oficinas Tela Brasil produziram mais de 400 curtas metragens feitos em cerca de 70 cidades em todos os estados do Brasil. O projeto contou com diversas equipes de educadores para tais oficinas e cada uma destas equipes realizava, ao seu modo, sua metodologia pedagógica.

 A oficina de Manaus, com 13 dias de duração (aproximadamente 64 horas/aula), contou com 20 selecionados. Os participantes do projeto Oficinas Tela Brasil normalmente eram escolhidos a partir de uma redação previamente solicitada em uma fase de divulgação do projeto, o que acontecia quase sempre em uma escola sede ou nas escolas próximas de onde seria realizada a oficina. Mas neste caso específico, a parceria foi firmada com o Governo do Estado do Amazonas, que através da Secretaria de Estado da Cultura nos deu o suporte necessário à divulgação nas escolas e espaço físico para os encontros na região central da cidade. Os escolhidos estavam na faixa etária do ensino médio, mas foram permitidos também participantes de todas as idades. Tivemos em torno de 100 candidatos para as 20 vagas oferecidas.

Durante o processo seletivo, os candidatos foram estimulados a escrever uma história que eles considerassem importante e que poderia ser contada por meio do cinema. Este mote trabalhado anteriormente servia também para, no segundo dia de oficina, definir democraticamente os três temas base para serem trabalhados e roteirizados como curtas metragens, sem restrições de gênero de linguagem audiovisual. Poderia ser uma ficção, um documentário ou uma animação, por exemplo. O grupo que trabalharia cada tema é quem definiria qual caminho deveriam seguir, levando-se em conta também a viabilidade técnica e narrativa para cada história – compreendendo que não contariam com aporte financeiro ou amplos equipamentos técnicos para a realização (somente uma câmera, um microfone e alguns recursos auxiliares).

 O grupo foi composto por 6 integrantes, dos quais 3 estavam na faixa dos 16 anos e os outros 3 tinham entre 20 a 30 anos. O projeto de documentário foi planejado e gravado, tanto sons como imagens, por uma equipe de que estava em seu primeiro experimento de realização audiovisual. A edição aconteceu sob o acompanhamento de cada um desses diretores inexperientes, mas muito atentos e diligentes nos processos de escolhas, plano a plano, a respeito da história que gostariam de narrar. Minha ação neste filme foi de colaborador pedagógico no processo de desenvolvimento do roteiro e no entendimento da linguagem audiovisual (esta fase durou sete dias) e ainda orientador de grupo no momento de gravação (dois dias) e por ultimo a edição e finalização (três dias). 

Na montagem, intercedi entre a plataforma de edição e os intuitos do coletivo realizador, sempre privilegiando um modo mais democrático possível nas deliberações necessárias ao processo. O projeto culminou na exibição pública de todos os curtas realizados em Manaus em uma sala de cinema repleta de alunos de escolas públicas e com a presença de amigos e parentes dos realizadores. A metodologia relatada abaixo dá conta apenas de parte da minha atuação nesta oficina, dentre tantas outras dezenas de perspectivas. De todo modo, convém aos meus objetivos aqui descritos – o de relatar um modo de fazer filmes coletivos, fundamentada em uma posição contemporânea de se enxergar a escola nos dias de hoje: a que permite o protagonismo dos educandos frente às diversas formas de se apreender o conhecimento.

3. A realização

“Até que ponto podemos nos desprender do sistema? Um casal de artesãos nos revela os limites de uma vida alternativa nos dias de hoje. Com eles, aprendemos que a liberdade é uma grande conquista, mas tem o seu preço2”.

Alunos realizadores: Bete Chagas, Dhyego Lymma, Grace Kelly Chaves, Marcelo Otávio, Vá Araújo, Valentina Ricardo.

Liberdade, mas nem tanto nasceu de uma ideia sugerida por uma das participantes. A intenção original seria registrar os antigos hippies, que hoje em dia levavam suas vidas ditas normais, mas que em algum tempo participaram do movimento. Os pais de um dos participantes foram hippies nos anos 60 e isso certamente influenciou na escolha temática, mas todos que se propuseram a trabalhar neste tema traziam essa curiosidade de, quem sabe, trazer para o presente histórias de um tempo muito significativo na vida destas pessoas. O grupo se reuniu por dois dias imaginando caminhos para essa narrativa. Porém não foi possível seguir com essa ideia, pois os nossos únicos protagonistas conhecidos não quiseram ser entrevistados sobre este assunto, ou talvez não foram suficientemente convencidos, quando solicitados pelos alunos.

A partir desse momento o coletivo seguiu por uma linha narrativa mais realista. Improvisaram uma pesquisa de campo e observaram o entorno do local dos nossos encontros. Em um momento, depois de algumas conversas com os hippies locais encontraram o Luciano, a Bárbara e seus filhos. Passados mais de dez anos, me lembro da empolgação do grupo ao me relatar essa conversa. Já se sentiam prontos para, no próximo encontro, levar uma câmera e filmar. A demanda nesse momento passava do desespero inicial, frente à negativa anterior, para uma empolgação e avaliação da necessidade de entender o funcionamento dos equipamentos de gravação. Só neste momento passaram a receber “aulas técnicas”, já direcionadas para eventuais necessidades deste coletivo.

Após o entendimento elementar dos aparelhos de gravação, como microfone e câmera. Dedicaram-se ao término do roteiro do documentário – o que consistia apenas em algumas observações técnicas de como cada membro da equipe poderia contribuir, perguntas básicas para serem feitas ao Luciano e a Bárbara e um plano de gravação, seguindo uma ordem cronológica do tempo que teriam disponíveis aos equipamentos (cerca de 12 horas, somando-se dois dias).

No dia anterior às filmagens, dediquei um tempo da conversa com o coletivo que se formara para tentar, primeiramente, acalmá-los, ante a ansiedade da espera. Mas também sensibilizá-los para a ação artística – para que o filme não fosse idealizado apenas como uma ação jornalístico-informativa. O diálogo que tive com o grupo seguiu neste sentido:

  1. O campo de ação do documentário poderá seguir por um viés muito mais envolvente do que do ponto de vista das informações previsíveis que o grupo pôde conjeturar de antemão. 
  2. Seria preciso manter abertas as portas da percepção e da emoção diante dos acontecimentos e da contingência de cada ocasião e situação vivida. 
  3. Diálogos impensados, uma mágoa ou um sorriso discreto presente no rosto ou qualquer elemento imagético ou sonoro imprevisível, muitas vezes inesperados, poderiam surgir e mudar o rumo das projeções anteriores, e que, se isso acontecesse, não seria necessariamente prejudicial, pelo contrário, muitas vezes, neste tipo de trabalho não se tem o controle das situações vividas. 
  4. Quando se pretende investigar a vida de alguém é aconselhável tentar se colocar em seu lugar, buscando pensar da forma como este pensa ou age nas suas circunstâncias. É preciso estar disposto a identificar características iguais com o outro – sentindo o que ele sente, desejando o que ele deseja, aprendendo da maneira como ele aprende.
  5. Precisamos respeitá-los e não os julgar. Além de não propor soluções às suas vidas como se fossemos, de alguma forma, superiores ou tivéssemos resoluções para suas biografias através das filmagens.
  6. Será preciso compreender as condições favoráveis e desfavoráveis do trabalho coletivo e aproveitar de diversas formas os diálogos que seriam constituídos a partir de então.

Para tanto, mais do que palavras, também elaborei de antemão uma dinâmica e a nomeei de “A Rosa dos Ventos dos Sentimentos Humanos”. Imbuído de vários trechos musicais, dos mais diversos estilos e gêneros, cada participante foi convidado a tentar encaixar algum sentimento gerado, a partir daquele estímulo musical, em determinado ponto cardeal de uma rosa dos ventos desenhada na lousa. Depois de 30 minutos de apreciação de dezenas de trechos musicais, a lousa ficou repleta de sentimentos. De certo modo, estávamos preparados para as gravações do dia seguinte.

Material de apoio elaborado por Fabrício Borges

Oficinas Tela Brasil. Manaus, 2009. Acervo Fabrício Borges

A Rosa dos Ventos dos Sentimentos Humanos

Oficinas Tela Brasil. Manaus, 2009. Acervo Fabrício Borges

No primeiro dia de gravação, Luciano e Bárbara não haviam aparecido ao local combinado. Mas graças à destreza de um dos membros do grupo, que se prontificou em conversar, pesquisar e investigar, o coletivo conseguiu localizar a família em outro local. As gravações seguiram-se muito bem: fizemos uma espécie de rodízio, onde todos puderam em algum momento operar a câmera e o equipamento de som. Muitas descobertas e histórias sobre aquelas pessoas foram se desvelando. O grupo havia elaborado previamente perguntas para serem feitas como: onde eles nasceram?; como se conheceram?; porque decidiram virar hippies?; como era o dia a dia?; por quais cidades passaram?; quais os momentos de maior dificuldade?; quais eram os seus sonhos?; etc., mas, durante as gravações, muitos outros assuntos foram surgindo.

O grupo passava a enxergá-los sob outra perspectiva – não só Luciano confirmara seu talento, esclarecimento e dom da retórica, como também Bárbara, que embora falasse pouco, revelou-se uma pessoa de uma candura e beleza do qual não havíamos imaginado. Sem contar a relação de amizade e afeto firmados entre o grupo e as crianças. Ao final das gravações, a despedida foi dolorosa. Começamos a próxima etapa de produção no dia seguinte. Tínhamos cerca de duas horas de material capturado, ao qual chamamos de material bruto, destinados para a edição.

4. A montagem do quebra cabeça

O vocabulário do cineasta reflete significativamente a sua maneira de pensar o cinema (BURCH, 1973. Pg. 11).

A edição é um momento muito significativo para o coletivo realizador, ainda mais importante quando se trata de um documentário – grande parte das decisões são tomadas a partir do que realmente temos em imagens e sons gravados. Até então, do roteiro ao desenvolvimento, tudo não passara de especulações acerca do tema. Não é fácil editar e se propor a acompanhar, horas a fio, uma edição complexa, mas o coletivo se manteve devotado nesta fase também. A participação democrática de todos do grupo foi essencial para o resultado.

Liberdade, mas nem tanto, com cerca de 8 minutos de narrativa (se descontados os créditos), suscitou muito trabalho para o coletivo, mas as decisões tomadas ali certamente os ajudaram a compreender o audiovisual por outra ótica. Foi preciso muito desapego e diálogo para selecionar apenas alguns minutos neste vasto material bruto. Aliás, este era um compromisso firmado desde o começo do projeto – os curtas não poderiam exceder 10 minutos.

O filme seguiu por uma linha narrativa limpa – sem efeitos ou trilhas sonoras que dessem conta de uma ampliação ou alteração do clima narrativo. Os sons presentes no curta foram todos captados com a gravação dos diálogos e não houve tratamento de cor nas imagens – procedimento comum mesmo nos projetos mais realistas.

A partir da edição, não havia mais importância seguir uma lógica roteirizada anteriormente. Na realidade, a experiência vivida pelo grupo na prática da gravação foi transformadora – atribuindo ressignificação ao que havíamos imaginado no roteiro.

Anotamos todos os assuntos que as conversas com o casal nos ofereceram. Selecionamos os melhores fragmentos por questões diversas como: diálogos propositivos ou elucidativos, fotografias ilustrativas ou instigantes.

A todo o momento, questionava-os para tentar compreender o que cada cena dizia, não só textualmente como emocionalmente. Assim a comparação com a rosa dos ventos se mostrou elucidativa também na edição. Tínhamos um discurso sonoro que serviu de base para a narrativa, colocamos inicialmente elementos que demostrassem a ênfase do Luciano em ressaltar seu modelo de vida, contrapondo-se à vida dos “abonados” em dinheiro. Este discurso também funcionou como abertura, para apresentar nossos protagonistas aos espectadores. Logo depois surgiram, em suas próprias falas, elementos de conflito sociológicos e filosóficos.

O cinema abarca, como dizia Morin, um pensamento complexo, que se entrelaça em muitos campos do conhecimento em seus discursos imagéticos e sonoros. Esta complexidade, negada na apresentação dos personagens, entra no desenvolvimento da narrativa como elemento capital da trama. Bárbara relata seus motivos da saída de casa, Luciano relembra do pai que o abandonou “quando havia 5 dias de nascido”.  O filme não propõe solução para questões que atravessam os campos da psicologia, antropologia, sociologia, geografia e política, mas implica, de alguma forma, na conscientização sobre uma realidade presente no cotidiano de todos aqueles jovens que passavam ali pela praça central da cidade rotineiramente, sem se dar conta da amplitude dessa paisagem social que o circundava.

“O cinema, ao mesmo tempo que é mágico, é estético; ao mesmo tempo que é estético, é afetivo. Cada um desses termos remete ao outro. Metamorfose maquinal do espetáculo de sombra e luz, o cinema aparece num processo milenar de interiorização da velha magia das origens… seu nascimento se efetua numa nova chama mágica, como nos sobressaltos de um vulcanismo em vias de adormecimento. É preciso, principalmente, considerar esses fenômenos mágicos como os hieróglifos de uma linguagem afetiva. A magia é a linguagem da emoção e, como veremos, da estética. Só se pode, portanto, definir os conceitos de magia e de afetividade de um em relação ao outro. O conceito de estética se insere nessa reciprocidade de facetas.  A estética é a grande festa onírica da participação, no estágio em que a civilização conservou seu fervor pelo imaginário, mas perdeu a fé em sua realidade objetiva.

Paul Valéry, com um admirável senso das palavras, dizia: “Minha alma vive na tela toda poderosa e agitada: participa das paixões das sombras que ali se produzem”

Alma. Participação. Sombras. Três palavras-chave que unem a magia e a afetividade no ato antropológico: a participação. Os processos de participação – em suas características próprias à nossa cultura – estão ligados a essa extraordinária gênese. O que há de mais subjetivo – o sentimento – infiltrou-se no que há de mais objetivo: uma imagem fotográfica, uma máquina3.

No documentário, a temática não precisa ficar totalmente exposta. É admirável que o público cogite hipóteses e soluções para a história que está vendo – A proposta narrativa, muitas vezes, pode ir para o caminho da sutileza, sem a necessidade de resoluções definitivas. Nos debates realizados durante a edição, havia deixado essa sugestão: Seria interessante deixar para o expectador argumentos e hipóteses importantes sobre uma causa e não uma lição de moral prévia e explícita. O grupo atendeu a proposta, arriscando-se a terminar o filme com um retrato da família como se estivessem se reapresentando ao público e, ao mesmo tempo, deixando para a plateia a resolução da trama.

5. Considerações finais

O conceito de coletivo realizador voltado à prática documental se integra perfeitamente aos ideais de Paulo Freire. Sua filosofia educacional é comprometida com a promoção da consciência crítica. Para Freire, a educação é um processo essencialmente político – ou promove a mudança pela reflexão e análise ou reforça os padrões existentes, corroborando valores que não se nutrem de mudanças. Neste sentido, a elaboração documentarista, a aproximação com a comunidade, a valoração do entorno do que lhe é próprio, seja aos seus aspectos elogiáveis ou denunciativos, trazem ao fazer artístico um tempero que restitui à arte sua função crítica, reestabelecendo vínculo com sua tradição transformadora.

Paulo Freire se consagrou, ao menos no universo acadêmico, por pensar modelos de alfabetização que promovessem também uma leitura de mundo.  Ele se dedicou à alfabetização da linguagem escrita. De certa forma, acredito que a linguagem audiovisual também possui necessidades semelhantes e carece de um processo de alfabetização acerca de sua especificidade e complexidade. O cinema, enquanto linguagem própria, constitui-se de elementos verbais, sonoros e visuais, que conjugados, tomam sentido próprio. E esse entendimento sobre suas potencialidades e desdobramentos no cotidiano são pouco refletidas na educação de base. Acredito que só estimulando à prática ou, de alguma forma, refletindo sobre seus códigos e processos, a linguagem audiovisual possa ser melhor compreendida. Até porque seu uso, muitas vezes irrefletido e indiscriminado nos meios midiáticos restringem suas potencialidades. E o que mais temos a todo instante, seja na mídia televisiva ou nas redes sociais, é o uso da linguagem audiovisual para reforçar valores alienantes. A realização e a alfabetização audiovisual são poderosas armas contra a opressão cultural e pressupostos para a efetivação da liberdade contra os valores impostos massivamente pelas culturas dominantes.

A pesquisadora Flávia Maria Cunha Bastos4, em sua análise sobre as ligações intrínsecas entre arte e a vida cotidiana em “O perturbamento do familiar: Uma proposta teórica para a Arte/Educação baseada na comunidade”5 nos remete para uma reorientação do olhar à arte, seguindo a linha freireana, embora seu trabalho tenha relação às outras artes locais, o documentário se insere nestas condições:

A prática da arte/educação com base em uma visão ampla e inclusiva de mundo considera várias formas de arte, desafiando limites convencionais e inspirando uma valorização artística mais ampla e a possibilidade de maior participação social. Portanto, a arte produzida localmente oportuniza a estudantes e educadores compreender melhor a dinâmica da vida em sua volta, examinando as dinâmicas econômicas, políticas e educacionais presentes em nossa cultura…. Fundamentalmente, o conhecimento, a interpretação e a valorização da arte produzida localmente podem vir a ser um catalisador para a participação crítica não só na comunidade local, mas também na sociedade maior. Dessa forma, o ensino sobre a arte local tem o potencial de realizar os objetivos educacionais de Paulo Freire, constituindo uma prática educativa que busca promover mudanças sociais pelo processo de conscientização5.

Ana Mae Barbosa nos lembra também da consciência de cidadania fortalecida pela prática artística, que não só favorece o crescimento individual como incita um comportamento cidadão, muito mais consciencioso em sua inserção social.

Através das artes é possível desenvolver a percepção e a imaginação, apreender a realidade do meio ambiente, desenvolver a capacidade crítica, permitindo analisar a realidade percebida e desenvolver a criatividade de maneira a mudar a realidade que foi analisada. “Relembrando Fanon6“, eu diria que a arte capacita um homem ou uma mulher a não ser um estranho em seu meio ambiente nem estrangeiro no seu próprio país. Ela supera o estado de despersonalização, inserindo o indivíduo no lugar ao qual pertence7

O trabalho com a comunidade do entorno possibilita o fazer e o se reconhecer na tela. Esta relação estabelece associações com a paisagem social – ninguém se descobre ou se desvenda sozinho, porque é preciso o outro para estabelecer esta relação. Deste modo, o reconhecer é coletivo e deve sempre buscar relações igualitárias como forma de expressão e sentido de existir. 

O documentário audiovisual colaborativo pressupõe a coautoria criativa e produtiva entre os sujeitos construtores. A ideia do coletivo realizador constitui-se em um modelo do qual cada participante interage e exerce diversas funções ao mesmo tempo dentro de um grupo com propósitos definidos. O coletivo realizador implica igualdade de direitos entre os participantes, partindo de uma lógica não hierarquizada. Porém, entende que a imersão, entrega e a dedicação de cada sujeito em cada etapa do processo artístico é distinta e assimétrica. Devendo este ser um fator de soma e compreensão das pluralidades e diferenças entre os sujeitos e uma das características naturais das construções artísticas coletivas.

“Se ver na tela” naturalmente suscita autorreflexão e autoanálise. Trata-se de algo completamente diferente do que a exibição de um filme de um país distante, ou sobre outra realidade. A produção em pequena escala e regionalizada direciona os espectadores para um lugar comum, em que o sentimento de comunhão é revitalizado. Todos querem fazer parte desta criação, pois precisam reconhecer seus vizinhos, parentes e amigos, que muitas vezes só distinguimos superficialmente. É uma nova chance de entrar no universo do outro, que está ao seu lado, cotidianamente.

6. Referências Bibliográficas

BARBOSA, Ana Mae (org.) Arte/Educação Contemporânea: Consonâncias Internacionais. São Paulo: Cortez, 2008.

______. Arte, Educação e Cultura: Educação para o desenvolvimento de diferentes códigos culturais. Disponível em Portal Domínio Público <http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraDownload.do?selectaction=&co_obra=84578&co_midia=2 > Acesso em: dez. 2016.

______. Arte-Educação no Brasil: realidade hoje e expectativas futuras. Disponível em: < http://www.revistas.usp.br/eav/article/view/8536/10087 > Acesso em: mar. 2017.

BARBOSA, Ana Mae e CUNHA, Fernanda Pereira da (Orgs.). Abordagem Triangular no Ensino das Artes e Culturas Visuais. São Paulo: Cortez, 2010.

FREIRE, Paulo Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 29 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2004.

______. Extensão ou comunicação? 7a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.

______. Pedagogia do oprimido. 17a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

______. Educação e Mudança. 30a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2007.

MORIN, Edgar O Cinema ou o Homem Imaginário. São Paulo: É Realizações, 2014.

DELEUZE, Gilles A Imagem Movimento. São Paulo, Editora Brasiliense, 1983.

BURCH, Noel Práxis do Cinema. Lisboa: Editorial Estampa, 1973.

BODANZKY, L.; BOLOGNESI, L. Cine Tela Brasil e Oficinas Tela Brasil: 10 anos de cinema das periferias e comunidades de baixa renda. São Paulo: Instituto Buriti, 2014.

TOLEDO, Moira Educação Audiovisual Popular no Brasil: panorama, 1990-2009. 361 f. 2 v. (Doutorado em Estudo dos Meios e da Produção Mediática) – Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, 2010.

RIZZO JUNIOR, Sergio Alberto Educação audiovisual: uma proposta para a formação de professores de ensino fundamental e de ensino médio no Brasil. 189 f. (Doutorado em Meios e Processos Audiovisuais) – Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, 2011.

VÍDEO. Liberdade, mas nem tanto: Oficinas Tela Brasil, Manaus – AM, 2009. (10min01s). Disponível em: < https://youtu.be/ieFJw0vJmPo >. Acesso em: 4 julho de 2021.

7. Notas

  1.  Liberdade, mas nem tanto: VÍDEO. Oficinas Tela Brasil, Manaus/AM, 2009. (10min01s). Disponível no Youtube: <https://youtu.be/ieFJw0vJmPo>. ↩︎
  2. Sinopse desenvolvida pelo coletivo realizador do curta metragem realizado em Manaus, 2009.) ↩︎
  3. MORIN, Edgar O Cinema ou o Homem Imaginário. São Paulo: É Realizações, 2014. Pg. 140. ↩︎
  4. University of Cincinnati. ↩︎
  5. Arte/Educação Contemporânea: Consonâncias Internacionais. São Paulo: Cortez, 2008. Pg. 229. ↩︎
  6. Frantz Omar Fanon, um influente pensador do século XX sobre o tema da psicopatologia da colonização. ↩︎
  7. BARBOSA, Ana Mae Arte, Educação e Cultura: Educação para o desenvolvimento de diferentes códigos culturais (p. 3). ↩︎

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