O território da escola e a narrativa dos jovens a partir do cinema documental e o multiculturalismo: o caso de “A Batalha do Passinho” de Emílio Domingos

1. Introdução

Para pensar a questão do cinema na escola, ou mesmo a escola no cinema, bem como as múltiplas territorialidades que o próprio cinema , inserido na escola, acaba gerando , é preciso trazer uma discussão a respeito do multiculturalismo, hoje muito cara, no âmbito da educação.Tanto para Canen e Moreira (1999) , quanto para Candau e Moreira ( 2003), os encontros com docentes da educação básica em todo o Brasil tem gerado, de alguma forma, inúmeras questões.

Há um certo consenso entre especialistas, e até entre não especialistas, em educação, de que a escola precisa se reinventar a fim de se tornar um lugar mais atrativo para o alunado, o que inclui repensar métodos e avaliações, e talvez uma prática cineclubista na escola, sobretudo, no que toca o ensino de língua materna, talvez seja  um caminho para isso ou, quem sabe, pelo menos seja uma ponta desse iceberg.

Sabemos também que o trabalho cineclubista na educação  não termina aí, ele se constitui um aliado importante no processo de letramento desse alunado. Lembro de L, na sessão do “5X Favela – Agora Por Nós Mesmos”, estranhando alguma construção, na fala de um personagem do filme, fora daquilo que podemos chamar de “norma culta”, “é voar , e não avoar “, grita ele com a TV, como se o personagem estivesse ali de carne e osso, como se aquilo fosse uma peça de teatro e não um filme.

O próprio ensino remoto , que inicialmente foi chamado de EAD, na pandemia do Coronavírus nos obrigou a repensar, minimamente, os nossos modelos de avaliação. Os métodos que no ensino remoto se prestaram a ser simplesmente uma cópia, um decalque daquilo que fazíamos no presencial estavam, necessariamente, fadados ao fracasso mesmo antes de começar.

Presenciei algumas escolas reproduzindo até sua estrutura de horários no chamado ensino remoto, deixando muitos jovens presos a uma cadeira pelo menos quatro horas por dia no meio dessa loucura toda. A fim de compreender um pouco melhor essas relações, que são atravessadas também por relações de poder, dentro da escola, é necessário revisitarmos um conceito tão caro para nós educadoras e  educadores : o multiculturalismo.

Somente na década de 70 do último século a escola se tornou uma instituição mais parecida com a que temos hoje, Até ali, pelo menos, a escola, sobretudo a escola pública, era destinada a uma elite muito específica. Em geral, os estudantes que frequentavam a escola naquele momento eram oriundos de famílias brancas, letradas e de classe média. Por isso, é bastante comum, ainda hoje em dia, ouvir de alguém que viveu nessa época: “Ah, no meu tempo, a escola pública funcionava…” ou ouvir alguém dizer com um certo orgulho “Eu fui aluno de escola pública…”. Porém, só por volta da década de 70 com uma reforma na LDB, salvo engano, de 1971 é que os bancos da escola pública finalmente receberam os filhos da classe trabalhadora. E, talvez o multiculturalismo no Brasil nasça desse encontro, quase inusitado, entre os bancos da escola pública e os filhos de uma classe operária que , naquele momento, talvez acreditassem mesmo estar indo ao paraíso.

Mas esse encontro não foi nada amistoso. Curiosamente, foi nesse período que, aos olhos de muita gente, a escola pública passou de um projeto exitoso a um projeto fadado ao próprio fracasso. Não só pelos investimentos na área passarem a ficar mais escassos ou, pelo menos, mais difusos como se tudo fosse uma grande coincidência mas, sobretudo, pelo fato de essa escola pública estar agora servindo também aos filhos de uma classe trabalhadora.

As aulas de língua portuguesa, por exemplo, não refletiam a língua, nem a linguagem, falada por essas filhas e filhos dessa classe operária, muito menos por suas famílias. Logo, é fácil entender porque esses jovens não se viam retratados, e ainda não se veem, mas isso já é um grifo meu, nesse modelo de escola. Ficou de fora a língua falada pelos becos, pelas ruelas das comunidades onde esses jovens residem, pelas praças. Ficou de fora a língua falada em casa, na intimidade dos lares desses mesmos jovens que, finalmente, adentraram os portões da escola pública.

Por isso, é complicado o discurso de alguns docentes quando afirmam que a escola, sobretudo a escola pública, é uma instituição que pouco mudou em todos esses anos. O fato de a escola pouco ter alterado seus métodos, técnicas e avaliações mesmo com a chegada desse público, não significa que ela não tenha se modificado. São os modos de pensar uma avaliação que continuam os mesmos, são os métodos e técnicas com relação a passagem e aferição desse chamado conteúdo que ainda se mantém. Não podemos dizer que os rostos que circulam hoje pela escola pública são os mesmos que circulavam há quase 50 anos. A mudança no perfil desse alunado impõe mudanças a essa escola ainda que ela seja lenta. E, talvez seja dessas mudanças geradas pelos filhos dessa classe trabalhadora na escola que nasça o que entendemos hoje como multiculturalismo.

2. Fundamentação teórica

É importante destacar que o próprio termo multiculturalismo nasce em um contexto difuso, polissêmico. Para alguns autores, como Candau e Moreira ( 2003) por exemplo, os respectivos usos e sentidos do termo podem ser constantemente negociados e (re)negociados de acordo com determinados objetivos específicos. É preciso compreender quais os sentidos engendrados pelo próprio conceito de multiculturalismo, que pode variar de acordo com as diversas abordagens empregadas.

Pensando apenas no campo da educação, já se tem inúmeros entendimentos para o termo. Vale lembrar que o termo não é de uso exclusivo da educação. É um termo muito caro também no campo da cultura, por exemplo. Porém, é notória, sobretudo no campo da educação, a polissemia do termo e, de alguma maneira, uma certa banalização, um certo esvaziamento no sentido da palavra “multiculturalismo”.

Para alguns autores, o termo pode dar sentido às lutas de determinados grupos culturais em busca de reconhecimento cultural, o que para Fraser (2012) pode ser muito perigoso porque isso esfacela, fragiliza ainda mais determinadas relações de trabalho por exemplo, uma vez que foram essas mesmas lutas chamadas de “pós-socialistas”  pela autora, que levaram o enfraquecimento dos sindicatos nos últimos quinze anos.

Por outro lado, o antropólogo argentino Nestor García Canclini reconhece o termo e diz que o mesmo possui uma postura positiva de aceitação daquilo é heterogêneo. O autor ainda sinaliza para tomarmos cuidado com o termo “interculturalidade” que pode ser parecido com o que é multicultural, mas que é de fato diferente, uma vez que intercultural pressupõe entrelaçamentos, trocas e o multicultural esbarra na palavra aceitação. E talvez seja isso que me incomode mais porque aceitar não significa, necessariamente, compreender o diferente. E a própria palavra aceitação também nos leva a toda uma sorte de usos, sentidos e significados inclusive a imposição daquilo que é diferente, o que poderia ser um entendimento muito perigoso, sobretudo, no campo da educação.

Para Candau e Moreira ( 2003), o termo multiculturalismo tem sido empregado para indicar diferentes contextos: (a) uma atitude a ser desenvolvida em relação à pluralidade cultural, uma meta a ser alcançada em um determinado espaço social, (c) estratégias políticas referente ao reconhecimento da pluralidade cultural, (d) um campo teórico de reconhecimento que busca compreender a realidade cultural contemporânea e, finalmente, (e) o caráter atual das sociedades ocidentais.

Longe de querer esmiuçar todos esses sentidos, o que não é objetivo deste trabalho, pelo menos em um primeiro momento, talvez a ênfase de multiculturalismo mais nos interesse seja a letra (d), cujo entendimento é o multiculturalismo enquanto um campo do saber específico com todos as suas tensões, seus saberes e competências.

Nesse sentido, é necessário revisitar um episódio importante do cotidiano escolar de uma escola, na Zona Sul do Rio de Janeiro. É importante deixar claro, antes de tudo, que este trabalho trata, especificamente, muito mais de um relato de experiência, a partir da experiência com o cinema nas aulas de língua portuguesa como língua materna, com crianças e jovens de 11 a 17 anos , do que um artigo propriamente dito.

Em uma segunda-feira, após o primeiro turno da eleição presidencial de 2018, é importante ressaltar que o primeiro colocado nas pesquisas ,  promoveu discurso de  ódio entre as pessoas, sobretudo com relação às minorias: negros, mulheres e gays, ouço uma conversa de C.E com um colega : “Se ele ganhar eu mato essa diretora…, com o professor eu não gasto nenhuma bala “ELE mesmo vai cuidar dele…” , se referindo sempre ao candidato que estava na primeira posição. Só então me dou conta de como a minha sexualidade era evidente para os alunos e de como eu estava duplamente exposto : veado e professor. Fico com medo, comento o ocorrido com V, uma outra educadora e K, uma amiga muito próxima. Vale lembrar que em março desse mesmo ano uma vereadora carioca foi brutalmente assassinada por ser mulher , negra , favelada e homossexual. Apesar do medo, sentia que era preciso resistir, era preciso acolher os jovens, trazê-los para perto. Mas como percorrer esse caminho ?

Após uma sessão de filme, alguém invade a sala de leitura arrastando um menino. Era E.C e seu tio. Esse pede a palavra emocionado e nos diz o quanto é duro criar o menino sozinho, o quanto precisa trabalhar para que não falte nada para o menino, diante dos olhos assustados de todos os colegas de classe de E.C. Logo após, obriga o menino a me pedir desculpas em público diante dos amigos. Eu , tão atônito quanto o restante do grupo , nem lembro o que respondi .

Pensando novamente no multiculturalismo, enquanto uma metodologia possível, ou em qualquer outra que, a priori, tenha o cotidiano escolar, ou mesmo uma escola como cenário, é preciso que ela dê conta de toda essa diversidade, de todos esses atores sociais que circulam pelos corredores escolares.

É preciso, de alguma maneira, escutar todas essas vozes que ecoam pelos corredores escolares. E foi exatamente isso que me fez abandonar a entrevista, enquanto metodologia , numa pesquisa sobre cinema e a educação porque talvez aí o próprio cinema se constitua como um método para fazer com que os jovens falem de si, se revelem.

Trabalhar com entrevistas com jovens estudantes em um contexto escolar, em uma pesquisa -participante, onde as figuras do professor regente e do pesquisador se misturam o tempo todo, talvez não seja muito eficiente enquanto método justamente, neste caso, uma estrutura de perguntas e respostas pouco se diferencia do sistema de avaliação a qual esses estudantes são submetidos a cada dois meses.

Candau e Moreira ( 2003 ) em encontros com docentes da educação básica trazem alguns apontamentos , algumas questões trazidas por esses mesmos docentes, fruto de uma prática diária com crianças e jovens : Como lidar com essa criança tão “estranha”, que apresenta tantos problemas, que têm hábitos e costumes tão diferentes das crianças “bem educadas” ?, como “adaptá-la” às normas , condutas e valores vigentes?, como ensinar-lhe os conteúdos que estão nos livros didáticos ?, como prepará-la para os estudos posteriores ?, como integrar sua experiência de vida de modo coerente com a experiência específica da escola ?

Antes de tudo é preciso limpar o terreno; quem seria essa criança “estranha”?, ela é “estranha” com relação a que ? E finalmente, por que motivo ela é tão estranha aos nossos hábitos? Que hábitos seriam esses exatamente ? É preciso compreender que , talvez, nenhuma dessas questões tenha uma resposta tão óbvia, tão clara assim. Nesse sentido, Candau e Moreira ( 2003) revisitam a escola pública da década de 70, em que muitos dos personagens que temos hoje, no ambiente escolar, ainda se encontravam ausentes dele, por isso, o uso de algumas expressões como “nós” e “eles”, “incluídos” e “excluídos”.

Porém, mesmo depois da universalização do ensino, e sobretudo, da abertura dos portões da escola pública realmente para todos, refletindo inclusive a respeito da palavra pública no seu sentido mais estrito, nos deparamos hoje com uma escola pública ainda mais excludente, a despeito de todas as discussões sobre a importância de uma inclusão na escola, pensando não só a respeito da criança deficiente, mas também dessa jovem criança, marginalizada, para quem a ausência dos direitos mais básicos, como saúde , educação, moradia, é, de alguma maneira, bastante concreta.

O cinema, mais uma vez, caiu como uma luva para essa tarefa de encurtar o hiato existente entre a escola e esse alunado especificamente . Porém, é preciso escolher bem o filme, precisa falar, dialogar com eles bem de perto. Tratar , de alguma forma, da realidade deles. Daí, a importância de se pensar, se construir na escola um bom trabalho de curadoria desses filmes. Mas talvez isso seja motivo para um próximo artigo sobre a importância de um bom trabalho de curadoria de filmes para os jovens na escola pública Por isso, a necessidade de falar da experiência de exibir o filme “A Batalha do Passinho” para jovens de 11 a 17 anos, em uma escola pública, no Rio de janeiro.

O diretor do documentário A Batalha do Passinho, Emílio Domingos, era, na ocasião, aluno do PPCULT-UFF. Ao conhecê-lo e me deparar com esse trabalho dele especificamente pensei logo em levar para escola, uma vez que seria algo que talvez fosse mais próximo da realidade dos alunos. Domingos abre com “ A batalha do passinho” a produção de mais dois filmes ( “Deixa na régua” e “Favela é moda”), o que mais tarde ele chamou de trilogia do corpo. “ Deixa na régua” tem como cenário as barbearias da zona norte do Rio, um filme , à princípio, sem cortes, quase sem edição, como se o próprio espectador estivesse sentado na cadeira do Deivão, um dos barbeiros-personagens do filme

“Favela é moda” é sobre uma agência de modelos dentro de uma comunidade carioca, voltado para modelos de pele negra que são tão negligenciados nesse mercado. A película problematiza ainda os próprios padrões de beleza impostos pela sociedade e próprio lugar que o corpo negro ocupa dentro dessa cadeia produtiva. Vale lembrar que o processo de criação deste último filme da trilogia fez parte também da construção da dissertação de mestrado do diretor também sobre o mesmo tema.

Porém, a película que mais fez sucesso com os jovens foi mesmo “A batalha do passinho”, o primeiro filme da trilogia. Talvez porque fale também de um gênero musical tão conhecido pelos jovens e ao mesmo tempo tão estigmatizado.Escolhi uma turma de 6o ano – 1603- para iniciar a exibição. Era uma 5a feira , dia que eu teria dois tempos seguidos com essa turma especificamente : Ótimo para exibir um filme !!! , De início a turma ficou meio agitada.

As meninas da turma, E, F e R, pouco interagiram realmente, pouco se interessaram. Logo no início do filme, alguns personagens foram reconhecidos por alguns alunos , como o dançarino de passinho Gambá , assassinado em 2012, durante as filmagens do documentário do Emílio. A, diz ter ficado arrepiado na cena em que os colegas cantam um funk homenageando Gambá na praia do Arpoador.

O que pude perceber tanto na exibição com a turma 1603, quanto na exibição com 1701 na segunda-feira seguinte é que poucos alunos interagiram com o celular durante a exibição de “ A batalha do passinho”. Tenho notado, de um modo geral, durante a exibição dos filmes com as turmas que eles interagem muito com o celular, o que, necessariamente, não quer dizer que eles não estão gostando, tampouco não estão prestando atenção, talvez essa geração fosse mesmo uma “geração multitela” capaz de prestar atenção no filme, na aula ou no que quer que seja interagindo com o celular.Em certo momento , me recordo de L e mais 5 ou 6 alunos em torno do seu celular.

De repente percebi que os alunos estavam assistindo cenas de passinho no celular de L. O que faz os jovens preferirem se aglomerar em torno de um aparelho mínimo e acessar o conteúdo no celular a acompanhar pela TV ? O celular é individual, a TV da ordem do coletivo, mais pessoas podem se aglomerar em torno da TV. É preciso destacar que L e seus amigos não estavam acessando no celular o mesmo filme que passava na TV e sim outras cenas de pessoas nos bailes, de outros bailes do passinho, essa é a vocação hipertextual do cinema, o que reforça ainda mais a tese de que o professor não é mais o detentor absoluto do conhecimento.

O professor é muito mais que um articulador, um organizador desse conhecimento , um mobilizador dessa e de muitas outras discussões dentro e fora da sala de aula. Ainda para Migliorin (2010), o cinema na sala de aula coloca , de alguma forma, professores e alunos em um mesmo patamar , possibilitando ao professor passar a ser , não mais, o único detentor do conhecimento. O cinema na sala de aula possibilita , de alguma maneira, um momento de partilha, como diria Ranciére (2016): Uma partilha do sensível.

Retomando Haesbart e Mondardo (2018), é essa relação entre o real e o virtual que, de alguma forma, se configura como uma saída possível para essa narrativa que, de alguma maneira, a juventude vem construindo, costurando, ainda que, nesse limiar de identidades forjadas, mestiças, híbridas, quando, de ,certa maneira, se misturam ali, entre o celular e a tela da TV, entre o real e o imaginário, com todas as suas contradições, enquanto um espaço/território, uma territorialidade, também de disputa, que se configura rapidamente, não em uma possibilidade de fuga do real, como alguns teimam em dizer, mas como uma solução possível encontrada, pelo menos, para aquele momento, no qual o discurso do hibridismo assume certamente um sentido positivo sobretudo, dentro da escola, entre crianças e jovens.

É importante deixar claro que esse artigo, faz parte de uma pesquisa maior, uma investigação, uma reflexão, ainda bastante modesta, a respeito de como crianças e jovens interagem em seus cotidianos, sobretudo na escola, com os diversos gêneros textuais e textos imagéticos, com uma atenção especial para as produções cinematográficas de um modo geral, filmes e séries, a nova febre do momento entre os adolescentes, mas não só isso.

O presente trabalho, faz parte de uma pesquisa, que, entre outras coisas, investiga a forma de como a escola recebe todo esse escopo, esse material vindo dessas crianças e desses jovens, e que também, de uma maneira ou de outra, acaba por recortar, ainda que sem querer, a sua narrativa, “ ela faz crochê com os pés”, me diz certa vez M, a respeito de uma imagem que encontrou na internet, de uma senhora que não tinha os braços.

A maneira como os jovens hoje manipulam e lidam com seus smartsphones, acessando de redes sociais ao youtube, também faz parte do recorte de uma pesquisa maior , uma vez que esses aparelhos nos trazem, a eles e a nós, uma série de outras imagens, imagens outras, desde memes a video caseiros.

A escola não sabe o que fazer com essas imagens, embora elas estejam nos cotidianos das salas de aula, concorrendo com um conteúdo que, muitas vezes, não leva esse material em consideração passa a ser também um traço bastante distintivo para essa investigação, sobretudo no que toca à formação docente.

Na tarde do dia 08 de outubro de 2018, resolvi também passar de supetão o documentário “A batalha do passinho” para turma 1702. Naquela altura, também já havia comentado do filme com S, professora da biblioteca, que comentou com a coordenadora da escola e já estávamos tentando trazer o Emílio para feira cultural do dia 28 de novembro daquele ano.

Logo no início da exibição para a 1702, T comenta : Professoor, isso é filme ??? no que eu respondo que sim ela retruca: TEM CERTEZA ??? É o que a gt faz na favelaaa!!!, “EU NÃO SOU FUNKEIRO NÃO”, também me diz a certa altura , F, 12 anos. E  eu fico pensando em como deve ser difícil para eles  se verem como sujeitos, produtores de algum conhecimento. Logo T e sua turma de amigos perdeu o interesse pelo filme. Toda hora pedindo para ir ao banheiro, tentando fugir de alguma forma. Daí eu me lembro do meu contrato com eles.

Quando se trata de exibição de filmes , cinema na escola, era preciso deixá-los livres para entrar e sair. Fingi que não vi T e sua turma fugindo. O contrato com eles precisava seguir dessa forma, porém, talvez, isso só fosse possível ser cumprido porque aquela era uma escola muito tranquila nesse sentido.

Eu sabia que do outro lado da sala havia uma turma que estava gostando muito, que inclusive frequentava baile. “ ah, o Gambá aparece …”, disse um deles logo no início da exibição, “ o que ?, vão matar o Gambá ?”, retrucou um mediador de um dos alunos especiais.

No pós- filme, pouquíssimos alunos retornam do recreio. A maioria preferiu ficar no pátio matando aula. Na sala , apenas 6 alunos. Começo perguntando se eles gostaram do filme e eles me respondem afirmativamente.

Logo em seguida, pergunto se eles frequentam o baile, eles respondem que sim, “…mas frequentamos mais resenha…” me explicam a diferença entre resenha e baile. Resenha “pode ser uma festa na laje…”, “que toca de tudo” , “só não tem fumo, só se a dona da laje quiser…” , “resenha é mais seguro que o baile”, concordam todos. Coloco na lousa a seguinte questão :

FUNK: MANIFESTAÇÃO CULTURAL OU DE VIOLÊNCIA?

3. Conclusão

Para Canen e Moreira ( 1999), é preciso um multiculturalismo que supere as desigualdades sociais e culturais, muitas vezes, geradas no seio da própria escola , não basta um multiculturalismo que apenas evidencie essa diferença, é preciso superar essas diferenças , sejam elas étnicas ou culturais. Combater uma educação racista não é o suficiente, é preciso, antes de tudo, operar, manejar os mecanismo de uma educação antirracista. Caso contrário, corre-se um sério risco de massacrar e mascarar ainda mais, no terreno da educação, as identidades culturais pertencentes a grupos minoritários que, de alguma forma, estão forjadas e inseridas em uma macropolítica, ou mesmo uma necropolítica , a política de extermínio que vem assolando o estado do Rio de janeiro nos últimos 15 anos.

A princípio todos respondem ser o funk uma manifestação cultural, “pode ser os dois …”, alguém retruca, “ tem funk falando de bandido tb”, alguém responde. “ tem funk falando de pornografia, mas isso não é violência….” fez questão de marcar uma das alunas, “ mas tem funk falando de mulher …”, se referindo a alguns funks que reduzem a mulher a objeto, “…alguns funks são cultura e tb violência …”, “ …o funk pode ser amor, pode ser desabafo e também putaria…”, diz B, 14 anos, emendando logo em seguida, “…já a parte de putaria é o funk proibidão…” , “ Alguns funks tem letras agressivas …”, “A mina vai sentando na boca do fuzil”, alguém cantarola lá de trás.

Para Facina ( 2009), o funk , sobretudo aquele nascido nas comunidades cariocas, está no cerne da criminalização da pobreza. Ainda para a autora, os que criminalizam tal estilo de música são os herdeiros daqueles que , em tempos mais remotos, perseguiam os batuques e atabaques dentro das senzalas.

Em algum momento, pergunto onde eles moram. A maioria vive em comunidade. L.A faz questão de me explicar que mora no Santa Marta mas na saída do Tabajara. “O baile é um lugar que tem pó, arma, mas você usa se quiser…”, faz questão de me explicar uma delas, “ muitas daquelas armas que são filmadas pelo drone nem tão carregadas, a maioria deles nem é bandido, é só para tirar onda…”, diz outra. “ E mais a maioria dos PM são todos bandido que estão metidos no tráfico…”, grita alguém lá do fundo. “Funk Proibidão toca muito nos bailes. Tem uma coisa que eu fico indignada porque falão (sic) que todos que morão (sic) no morro é (sic) favelado e bandido…” , só então me dou conta de como a palavra “favelado” ainda possui um sentido bastante estigmatizado para alguns deles, “…tipo quando tem baile não só tem gente do morro…”, comenta uma delas, “ tem gente que é play-boy(sic), patricinha, filinho (sic) de papai…” reitera.

Para Facina ( 2012), o funk evidência , de alguma maneira, como a juventude negra e favelada, necessariamente, é criativa e se reinventa, a cada momento, subvertendo essa mesma ordem que insiste em situá-la como perigosa, baderneira e periférica. Por outro lado, para os herdeiros de uma suposta casa-grande, o funk , enquanto um artefato cultural, patrimônio imaterial desde 2009, é o produto, ou mesmo o subproduto, de uma série de faltas : falta de educação, de consciência política ou de classe, de bom gosto , de bom senso ou mesmo de moral.

Ainda para a autora, o inimigo é jovem , preto , pobre, favelado e, não por acaso, é , comumente, chamado de “traficante” dentro dessa narrativa de criminalização da pobreza. A relação entre o “traficante” e o “funkeiro” não é casual , uma vez que a figura do “bandido” vai se transformando, cada vez mais, nessa figura do funkeiro , pobre e morador de favela/ comunidade , com um gosto cultural “duvidoso” que vai do funk ao reggae.

J, 15 anos, assumidamente gay, diz amar “aquelas mina do baile com o braço pra cima, com cecê, tudo feia se achando bonita…”, “com aquele  cabelo cheio de creme na minha cara…tipo M…” se referindo a uma colega de turma, “…eu quero sair do baile e ver neguinho se esfregano (sic) no meu portão…”, “… eu quero toda sexta-feira saber que e u não vou durmi (sic), “eu quero ouvir o funk no útimo (sic) volume…”, e encerra dizendo : “ O brasil que eu quero é com mais baile funk.” Penso na campanha da globo “O Brasil que eu quero”, Na ocasião das eleições 2018, a emissora pediu que todos enviassem um vídeo falando sobre o Brasil que gostaria e muita gente mandou videos dizendo querer um Brasil sem influência da emissora, me dou conta então de como esses jovens são, de alguma forma, atravessados pelo discurso midiático.

Sinto a necessidade de trazer Butler para discutir a narrativa desses corpos atravessados pelo funk, pelas narrativas dos bailes , da violência dos corpos. Sinto a necessidade de trazer Butler para compreender Joana ( nome fictício) que certa vez , ao me ouvir gritar seu nome me respondeu : Jefferson !!!

A escola é uma instituição que, por si só, está o tempo todo colocando em jogo “sexo” e “sexualidade”, seja na educação infantil quando separa  as caixas de brinquedo de menina e brinquedo de menino, seja no segundo segmento do ensino fundamental quando separa em filas meninas e meninos.

É essa mesma escola que o tempo todo fala de corpo , sexo e sexualidade quando proíbe o uso do short que, quando é permitido é apenas nas aulas de educação física, que censura o uniforme cortado e customizado pelo próprio alunado porque deixa a barriga das meninas de fora. Ainda que não seja o tema principal deste artigo, uma reflexão a respeito do campo da sexualidade e gênero na escola é necessária, é impressionante o potencial que o próprio cinema, e a própria narrativa fílmica adquire quando inserido no território escolar, “Ele tá com Aids , ele dá a bunda , esqueceu?”, diz B , durante a exibição do filme “Uma aventura incrível”, naturalizando , relacionando dois fatos distintos : ser gay e ser soropositivo. O filme da cineasta do Reino Unido Debs Gardner-Paterson, trata de uma viagem de um grupo  de jovens de  Ruanda à África do Sul a fim de participar da abertura da copa do mundo de 2010.

O filme tem como um dos seus recortes, embora não seja esse o assunto principal, o alto índice de soropositivos no continente africano, falas que se iniciam  com “ se a gente tivesse aí”, foi recorrente entre os jovens durante a exibição da película, o que explica uma forte identificação desses jovens com a narrativa de ficção, com a chamada “jornada do herói” de Aristóteles, o que, normalmente, não encontramos nos documentários, “ vai para uma coisa que não tem nada a ver e depois volta …”, me explicou certa vez L.N, 13 anos, sobre o seu descontamento com o cinema documental.

Para Migliorin ( 2010), há uma fenda, um hiato entre a intenção do professor ao escolher um filme para ser exibido na sala e os reais efeitos sentidos pelos alunos em sala ao se deparar com uma película. Por isso, segundo o autor , o filme na escola é mesmo “perigoso”, uma vez que tais efeitos fogem do controle do professor, da sala de aula, do território da escola , “ é a descontinuidade entre obra e fruição” (Migliorin, Pipano, 2018), é a vocação hipertextual do cinema, evocando, trazendo para dentro da escola os mais diversos assuntos e temas, mesmo os proibidos, ou mesmo aqueles que a escola não sabe, não deseja e não quer se deparar.

Lembro de um colega professor, colega também de disciplina, que era um excelente curador de filmes na escola, seus alunos assistiam verdadeiras pérolas do cinema mundial e da produção nacional, porém, após a exibição, eram obrigados a preencher fichas com nomes dos personagens, ordem dos acontecimentos na narrativa, o que os deixava bastante irritados. Retomando Migliorin ( 2010), espero mesmo que a despeito da intenção do professor, os alunos de K tenham conseguido aproveitar sua primorosa seleção cinematográfica, mesmo depois de preencher as tais fichas : Evoé!

4. Referências

AFM Barbosa, VM Candau,Educação escolar e cultura (s): construindo caminhos – Revista brasileira de educação, 2003 – redalyc.org

CANEN, Ana, AFB, Moreira, Reflexões sobre o multiculturalismo na escola e na

 formação docente, Revista Ednectucação em Debate, 2017 – periodicosfaced.ufc.br

GARCIA, Nestor Caclini. Diferentes, desiguais e desconectados.UFRJ, Rio de janeiro, 2015

HAESBART, Rogério, MONDARDO, Marcos. Transterritorialidades e antropofagia:

 Territorialidades de trânsito numa perspectiva brasileiro latino –americana , Revista de

 pósgraduação em geografia da UFF, acesso em :

 http://200.20.0.39/geographia/article/view/13602/8802, último acesso em: 28/07/2018.

MIGLIORIN, Cezar, PIPANO, Izacc, Cinema de brincar , Relicário, 2019, Rio de Janeiro.

MIGLIORIN, C., Cinema e escola sob o risco da democracia – Revista Contemporânea de educação, 2011 – revistas.ufrj.br

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