1. Introdução

Entre 2016 e 2018, coordenei e mediei oficinas de audiovisual para jovens em privação de liberdade, através do projeto Cartas ao Mundão1. A privação de liberdade é uma medida socioeducativa de internação que pessoas entre 12 e 21 anos estão sujeitas a cumprir, após condenação decorrente de algum ato infracional. Em Pernambuco, esta medida é cumprida nos Centros de Atendimento Socioeducativo (CASE), unidades onde os adolescentes permanecem de seis meses até três anos, ou ao completar 21 anos de idade – o que ocorrer primeiro. Em cada CASE, existe o anexo de alguma escola estadual da comunidade, onde são oferecidas aulas pra turmas de ensino fundamental e médio, de segunda à sexta-feira, nos turnos da manhã e tarde.

Com o Cartas ao Mundão, atuei em seis CASEs, distribuídos em cinco municípios diferentes, entre a Região Metropolitana do Recife e a Mata Sul Pernambucana. Em parceria com o projeto nacional Inventar com a Diferença: Cinema, Educação e Direitos Humanos, produzido pelo Laboratório Kumã do departamento de Cinema e Vídeo da Universidade Federal Fluminense, elaborei uma ação pedagógica que incluía uma formação para os professores da escola anexa que nos acompanhariam nas oficinas, além de sessões cineclubistas mensais e a própria oficina de vídeo com os jovens, com carga horária de 15h/aula aproximadamente.

As oficinas eram baseadas na metodologia do Inventar com a Diferença, que reúne várias propostas de atividades chamadas de “dispositivos”, com objetivo geral de articular uma cena de criação que envolva alunos, professores e comunidade – no caso das escolas que não funcionavam dentro das casas de internação. Esta cena de criação é forjada a partir de regras e provocações iniciais que podem se desdobrar na elaboração de um enquadramento ou um plano, na busca pela narração de memórias a partir de um retrato de família ou na escuta ativa dos sons do entorno, por exemplo. Ao final de cada oficina, produzimos com os adolescentes um filme-carta, espécie de escrita fílmica que opera como uma correspondência entre os realizadores e um ou mais destinatários, reais ou imaginários. Toda esta vivência fortalecia um intenso sentimento de pertencimento, autoestima e autonomia, especialmente pela possibilidade de articulação das próprias narrativas e da produção de imagens de si.

Em minha pesquisa de mestrado, que está sendo desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco, dedico-me a investigar quais os limites de conceitos como identidade, visibilidade e autoria nas produções audiovisuais do Cartas ao Mundão uma vez que, para que possam circular, as imagens em que os jovens aparecem devem sofrer alguma intervenção de natureza gráfica, como tarjas sobre os olhos ou borrão desfocado sobre o rosto; além disso, seus nomes reais devem ser reduzidos a inicias, caso constem em qualquer crédito da obra. Estas são exigências jurídicas para fins de proteção da imagem dos envolvidos, apesar de que seu amplo e recorrente uso em meios de comunicação massivos e programas de sensacionalismo policial acabaram estigmatizando o recurso e associando os sujeitos a um imaginário de marginalização e violência.  Neste sentido, a (auto) representação, desejada e celebrada pelos adolescentes como uma qualidade da experiência com o cinema naquelas circunstâncias, escancara uma crise: em um contexto em que o reconhecimento de si está pautado pela visibilidade, o exercício mesmo da visibilidade esbarra em interdições jurídicas que maculam a própria imagem.

A experiência que relato a seguir não envolveu a produção de imagens com a câmera, portanto a questão da intervenção gráfica para preservar os jovens não esteve diretamente em jogo; porém, ela revela tensões, brechas e potências que busco pensar neste artigo como alternativas para os processos de subjetivação na produção audiovisual em espaços de privação, algo que me parece fundamental de ser aprofundado em minha pesquisa. Ensaio aqui algumas possibilidades iniciais de abordagem, a partir do já citado relato de experiência, associando-o a uma análise teórica posterior, baseada na obra dos autores Manuel Castells, Stuart Hall, Félix Guattari, Suely Holnik e Gilles Deleuze.

2. Escrever com o movimento

Cabo de Santo Agostinho, 26 de junho de 2017, dez horas da manhã. Jonas2 foi o primeiro a chegar à sala, naquele dia em que começamos a oficina no espaço da Escola Estadual Luísa Guerra, anexa ao CASE Cabo, Região Metropolitana do Recife. Inquieto, ele nos cumprimentou e perguntou em seguida sobre o propósito daquele encontro. Tentei resumir, destacando o fato de que iríamos produzir um filme juntos, dentro daquela mesma semana. Com um olhar entorpecido e aproximadamente 20 anos de idade, o jovem não se interessou muito pelo que apresentei, o que ficou claro pra mim na inflexão impaciente que acompanhou a pergunta subsequente: “Vai até que horas?”. Falei um pouco mais sobre a carga horária e o cronograma dos encontros, além de esmiuçar brevemente nossos objetivos. “Mas eu não sei nem desenhar”, disse Jonas, resistente, como se desenhar fosse a habilidade mínima para realizar qualquer atividade ligada às artes. “Nem a gente. Bora! Fica aí, vai ser massa”, respondeu Anna Andrade, diretora de produção do projeto, que também atuava como monitoria nas oficinas que eu ministrava.

A réplica ligeira e convidativa de Anna revela muito da essência do Cartas ao Mundão e da metodologia do Inventar com a Diferença; buscávamos mediar uma vivência através da imagem que permitisse aos estudantes o compartilhamento de uma mesma experiência de criação, para além de suas habilidades (ou carências). Essa possibilidade deixou Jonas visivelmente desconcertado, mas temporariamente convencido. Em seguida, ele mudou de assuntou e contextualizou a situação do seu processo na justiça; faltava pouco tempo para que “pegasse mundão” – ressocialização após a expedição do alvará de soltura – e aquele me parecia o motivo principal que o deixava, mais que impaciente, ansioso. Era como se, por estar com seus dias de internação contados, com sua liberação num horizonte próximo, ele não quisesse arriscar o envolvimento com algo que, por qualquer motivo, o expusesse a uma situação que pudesse resultar na prorrogação de seu tempo sob a medida restritiva. Segundo Jonas, o registro da participação naquela oficina em seu Plano Individual de Atendimento (PIA) – um tipo de relatório de acompanhamento interno -, poderia ser interpretado pelo juiz como um aspecto positivo de seu cotidiano na Unidade, o que, segundo ele, acarretaria na decisão pela sua permanência por mais tempo ali. Fazendo uma observação prévia sobre minha ignorância a respeito dos pormenores disciplinares do sistema, eu disse que, na minha leitura, a frequência dele na oficina poderia fortalecer a constatação de sua aptidão para ser reinserido no mundão, já que aquela era uma vivência coletiva diretamente associada a uma competência socioemocional que poderia facilitar o convívio com o outro – dentro e fora da Unidade. Ele não contestou. 

Os demais jovens que formavam a turma foram chegando e, após alguns minutos em silêncio, Jonas voltou a nos perguntar sobre o horário e agenda da oficina. Voltei a falar do nosso cronograma e comecei a introduzir a proposta daquele dia, que previa a confecção de flipbooks – um pequeno livro com imagens dispostas em sequência que, ao ser folheado, promove a ilusão do movimento. Este é um dispositivo presente no Cadernos do Inventar3, que estimula os estudantes a fazerem pequenos “filmes de bolso”, com recursos muito simples. Destaquei que não precisaríamos só desenhar, mas também brincar com as cores ou o alfabeto, por exemplo. “Mas eu mal sei ler e escrever, tio”, argumentou, como se aquela condição fosse ainda mais comprometedora do que a já rebatida falta de habilidade com os desenhos ou a dúvida sobre o impacto daquela experiência em seu PIA. “Mas aqui a gente vai escrever com o movimento das imagens”, defendi e, já me antecipando a qualquer resposta: “E, de algum modo, com as imagens você já está acostumado a lidar”. Jonas suspirou e se acomodou na cadeira, como se estivesse dando mais uma chance ao que eu estava propondo.

Com a turma já completa – trabalhamos incialmente com dez estudantes, selecionados pela equipe técnica do CASE e da escola – começamos a atividade, nos apresentando e assistindo juntos a alguns filmes já produzidos em oficinas como aquela que estávamos iniciando. Jonas acompanhava tudo de braços cruzados, em silêncio e, à medida em que avançávamos, sua atenção se dividia menos entre o conteúdo que exibíamos na TV e a necessidade de saber que horas o meu relógio marcava. 

Avançando para um segundo momento do encontro, conduzi a discussão para contextualizar os primeiros anos do cinema, quando os filmes eram produzidos em películas – ou “fitas”, como os jovens identificaram os fragmentos do rolo de 35 mm que eu levei pra mostrar.  Com o objetivo específico de comparar os equipamentos caseiros que eram usados há mais de 50 anos com os que podemos carregar nos nossos bolsos atualmente, passei de mão em mão uma câmera Super-8, que era sempre associada a um revólver – acho improvável que qualquer pessoa, inserida ou não num contexto de violência, não faça a essa mesma associação. Essa relação acabava sendo muito oportuna porque, a partir dela, tentamos contornar a ideia da arma como objeto concreto e da violência como um ato literal, pra pensar na câmera e no cinema como arma simbólica, e na própria violência no campo da representação mesmo. Dizendo de outro modo, pensar como essa linguagem pode nos ajudar a “disparar ideias”, pensamentos e possibilitar que pudéssemos extravasar nossos desejos e fantasmas, através do artifício alegórico dos sons e imagens. 

Àquela altura, eu já não me preocupava tanto em convencer Jonas a ficar conosco, uma vez que ele, como os demais estudantes, parecia minimamente envolvido com a atividade – ou, no mínimo, mais tolerante a ela. Aproveitando os negativos que tínhamos em mãos, lançamos a questão: “Mas como essas imagens que estão aí fixas, se movimentam no cinema?”. Os adolescentes preferiram não arriscar, com exceção de um ou outro que abortava sua resposta, antes mesmo de começar a elaborá-la de fato. Jonas continuava em silêncio, como estava desde o início. Distribuí alguns flipbooks entre os alunos, explicando que, basicamente, seria tudo uma espécie de truque ótico; assim como naquele livrinho, as imagens fixas do cinema eram impressas em sequência na película, com uma pequena variação de posição, e exibidas a certa velocidade que nos davam a ilusão de que estavam em movimento. 

O encantamento da maioria dos jovens, diante daqueles pequenos livros com imagens como as do primeiro filme dos irmãos Lumière e de um gol de Pelé na Copa do Mundo de 1958, foi uma constante nas oficinas que mediamos. É um encantamento que parte de certa ludicidade – algo escasso no cotidiano hostil da internação – e que, ao mesmo tempo, os conecta a um território de interesse quase científico, que se traduz na minúcia da observação de cada página dos livrinhos ou nas perguntas ligadas aos meandros de sua confecção. Na prática, parece-me que isto se vincula a algo do pensamento de Paulo Freire que nos apegamos bastante nas nossas ações experimentais, que ele chamou de “curiosidade epistemológica” (FREIRE, 2015, p. 386). É como se esse estímulo que operamos junto aos alunos, buscando a superação de uma certa curiosidade ingênua, evoluísse para algo próximo de um interesse ontológico mesmo sobre determinado objeto de estudo – aqui, o cinema.

Porém, ao contrário da maioria de seus colegas, Jonas não revelava grande entusiasmado ao folhear os flipbooks. Ele continuava em silêncio, seu olhar seguia entorpecido, mas me animava o fato dele ter permanecido até ali, o que o aproximava do momento de experimentar a feitura do seu próprio filme de bolso. Não obrigávamos estudante algum a permanecer em sala e alinhávamos esta prerrogativa junto à coordenação da Unidade e da escola para que isto também partisse da casa. Se o jovem, por qualquer motivo, desejasse abandonar o projeto, nós não associaríamos sua opção a qualquer retaliação disciplinar. Nossa única exigência, pactuada coletivamente com o grupo de alunos, era que o desinteresse em continuar fosse claro e manifesto, para que pudéssemos, se fosse possível, preencher a vaga com outro interno interessado.

Propus aos estudantes que produzissem seus próprios flipbooks. Todos concordaram, inclusive Jonas. Mas, antes de distribuir os blocos de post-it e canetas coloridas que seriam usados nessa produção, enfatizei o aspecto que nos serviu de argumento na conversa com Jonas: não era preciso saber ler, escrever ou desenhar; o mais interessante, aliás, seria a possibilidade de brincar com formas geométricas, cores ou rabiscos, por exemplo. Para ajudar a estimular este caminho, eu exibia nas oficinas as animações Dots (1940) e Boogie-Doodle (1948), do cineasta escocês Norman McLaren. Aquela me parecia uma escolha decisiva para engajar os jovens em formas alternativas de pensar a imagem e pra que eles não se dedicassem tanto a produzir apenas traços elaborados, realistas e cenas complexas, como a reprodução do gol de Pelé – situação que era recorrente quando os filmes não eram exibidos. Além de frustrar os estudantes pela precariedade do acabamento, as tentativas de reproduzir uma cena mais narrativa e detalhada também foram desanimadoras porque não tínhamos tempo suficiente pra completar todas as páginas do bloco, o que, naturalmente, comprometia a fluidez do movimento.

Após assistirmos aos filmes, os estudantes começaram a produzir. Jonas refutou o uso das canetas coloridas e começou a rabiscar seu bloquinho com uma Bic comum, que tinha catado ali, entre as nossas coisas. Em menos de cinco minutos, enquanto a maioria ainda estava sem ideia do que fazer ou ainda preenchia as primeiras páginas em caráter de estudo, Jonas veio até mim, dizendo que já havia concluído. Ao folhear o livrinho, encontrei só três ou quatro páginas – de um total de quase 40 – com riscos aleatórios. “Incrível!”, exclamei. “Vai ficar ótimo, mas é preciso preencher mais folhas, pra que o movimento fique afiado. Tenta aí, desenha mais”. Jonas parecia nem acreditar no que eu propunha. Me ocorria que, de algum modo, ele achasse que provaria sua inabilidade ou até me ofenderia, pelo fato de ter proposto traços supostamente tão negligentes. Ou não; talvez, diante da abertura que apresentávamos desde o início, aquilo poderia ser realmente o suficiente para que, enfim, ele fosse embora, sem que insistíssemos em sua participação. Mas Jonas não protestou. Voltou à sua banca e, percebendo que eu o acompanhava com os olhos, começou a friccionar a ponta da caneta pelas demais páginas do bloquinho, sem mesmo olhar pra elas. 

Cerca de cinco minutos depois, Jonas me abordou novamente. “Posso ir agora?”, indagou, enquanto me entregava seu trabalho. Ele tinha preenchido mais páginas com seu garrancho, mas havia pulado várias delas. Eu insisti: “Olha, tem muito intervalo vazio aqui. Tá ficando legal, mas se você deixar completo, o movimento vai ficar ainda mais interessante”. Folheei o bloquinho, ele reparou nos intervalos sem movimento. Não comentou nada, voltou a sentar e riscar mais folhas. Eu começava a ficar realmente interessado no resultado do trabalho de Jonas, por mais que seu esforço fosse o de, ao menos incialmente, se livrar logo daquilo. Depois de produzidos, sempre levávamos os flipbooks pra casa e os digitalizávamos; colocávamos tudo em sequência num programa de edição, o que acabava resultando em pequenas animações artesanais, que levávamos de volta pra Unidade, onde assistíamos em grupo. Entusiasmava-me imaginar o efeito que o trabalho de Jonas causaria e como isto poderia representar alguma melhora na sua autoestima, afinal, ele teria produzido algo, apesar de suas limitações.

Em sua última investida, já convencido de que eu não insistiria mais, Jonas me mostrou seu flipbook completo. “Que viagem, isso tá parecendo Brakhage!”, comentei, já tomado pela empolgação. “Era um cineasta americano que fazia umas doideiras que nem essa tua, só que era com tinta e outros materiais, direto na película. Vou trazer um filme dele pra oficina amanhã, você vai ver”. Sem reações expansivas, Jonas não comentou nada, mas me ouvia com certa atenção e, desta vez, como se começasse a acreditar naquilo. “Pinta essas páginas, usa as canetas coloridas, vai ficar ainda mais doido isso aí!”, lancei a proposta enquanto já me dirigia para folhear a produção de outro aluno.

Por volta das onze da manhã, boa parte do grupo já havia concluído os trabalhos – compostos por páginas que se dividiam entre palavras soltas, frases sobre liberdade, jogo da velha, bandeiras de São João, formas geométricas simples e rasuras4 como as de Jonas -, enquanto eu e Anna acompanhávamos de perto os que estavam com dificuldades e sem muita ideia do que colocar nas folhas restantes. Na última olhada que eu lembro de ter dado no flipbook de Jonas, reparei que, assim como fez com a Bic, as canetas coloridas haviam sido usadas pra dispor as cores de forma aleatória, imprimindo e arranjando-as de modo aparentemente ocasional. Elas não dialogavam exatamente com o sentido dos traços, nem criavam continuidade de uma página para outra.

Eu nem percebi quando o par de funcionárias, que entregava comprimidos e copos d’água aos jovens, entrou na sala. “É só um remediozinho de verme, menino”, dizia uma delas a um estudante receoso, após perguntar seu nome e anotá-lo na ata. Sem nosso consentimento, os que já haviam tomado a medicação iam sendo (ou sentiam-se) liberados. Quando me dei conta, Jonas já não estava na sala. Como ele, parte do grupo tinha saído sem se despedir. Ficamos com três ou quatro alunos na sala, enquanto a funcionária se retirava, pedindo desculpas pelo transtorno.

Por conta da logística da equipe de segurança daquela manhã e do horário do almoço, fomos forçados a antecipar a conclusão da atividade e suspender o debate previsto pro final, para que os últimos jovens voltassem juntos com os que já estavam fora da sala. “De uma e meia, a gente se encontra aqui de novo, conversa sobre o que fizemos agora pela manhã e seguimos pra produzir umas fotos, combinado?”, preferi ser genérico e evitar qualquer antipatia por parte dos seguranças mais apressados. Os três ou quatro que ficaram, mesmo já tendo tomado o remédio e concluído a atividade, continuavam ali, não só porque eu não tinha dado o encontro por encerrado formalmente, mas também pra comentar ou perguntar algo mais – fato que já vinha sendo comum nas outras aulas. “Massa, professor. Deveria ter isso todo dia”, me disse um deles.

Após nos despedirmos dos últimos jovens, fui conferir seus flipbooks com mais calma. Procurei logo pelo de Jonas, ansioso por descobrir como ele havia sido finalizado. Mas só tínhamos nove, dos dez livrinhos que deveriam estar ali conosco. Faltava justamente o de Jonas. Mesmo não tendo contato com o resultado final, e apesar de estar condicionado à nossa insistência, eu estava conformado por termos conseguido fazer com que Jonas produzisse e compartilhasse um mesmo instante de criação, apesar das carências que ele vinha elencando sistematicamente, desde o início da atividade. De qualquer forma, esperava tê-lo de volta à tarde. 

Algumas horas depois, já tínhamos reorganizado a sala e testávamos os arquivos que iríamos exibir enquanto esperávamos a chegada da turma. Passada cerca de meia hora, nove meninos chegaram acompanhados dos agentes socioeducativos e de um técnico da casa. Jonas já não fazia parte do grupo. “Ele disse que não quer mais vir, posso trazer outro adolescente pra ocupar sua vaga?”, perguntou-me o técnico. Antes de responder, eu queria saber mais detalhes sobre a decisão de Jonas. “Ele só nos disse que não quer mais. Vou trazer um menino ótimo pra substituí-lo, super interessado, você vai ver”, afirmava o técnico, tentando contornar minha decepção.

Pensando sobre o fato de Jonas não ter deixado rastros criativos de sua passagem pela oficina – há apenas o registro de sua presença na ata -, Anna imaginava que, se estivesse na mesma condição dele, também pensaria em não deixar seu flipbook conosco; qual o sentido de se expor ao julgamento dos demais para alguém que já se sente tão inferiorizado? Concordei com ela e também arrisquei supor que, não dando a possibilidade para que eu pudesse apreciar seu trabalho completo – algo que já tinha deixado claro que me agradava -, eu não teria mais chance de insistir para que ele continuasse no projeto. Ou se trataria ainda da relação que fazia entre o PIA e o risco de ficar mais tempo sob a medida socioeducativa? Não tínhamos como saber de fato mas, no fim das contas, ele também poderia não ter gostado, simplesmente – o que, pra gente, talvez fosse mais difícil de admitir. 

“O relógio na cadeia anda em câmera lenta”, diz um verso de Diário de um detento, dos Racionais MC’s (1997). Era assim que Jonas provavelmente sentia as horas passarem mais fortemente, enquanto esperava pelo seu alvará de soltura. Para nossa equipe, que estava começando a experimentar formas de estar com o cinema no sistema socioeducativo, o tempo com os meninos ainda parecia curto e o formato ideal das atividades só deveria amadurecer a longo prazo. Mas eu continuo me perguntando sobre as consequências daquela breve experiência na vida de Jonas e se ele fazia alguma ideia de que as imagens que produziu permaneceriam na minha retina até hoje.

3. Se inscrever com o movimento

T. transformou em jangada a porta entortada do bagageiro do carro abandonado que estava no galpão.

Enfiou-se no meio do canal-pântano. Passou o dia todo e os seguintes deitado todo enrolado, solitário, desaparecido.

Sem o pântano e sem a chapa oca, T. teria por acaso conseguido “desenhar-se”, tal como se sente, para mim? (DELIGNY, 2018, p. 83)

O que me chamava atenção, a partir daquilo que me parecia uma pequena conquista do Cartas ao Mundão, era como o cinema experimental nos ajudou a forjar aquela cena de invenção. De algum modo, foi a partir do contato com um universo abstrato e da possiblidade de uma expressão não-narrativa, que provavelmente Jonas tenha se sentido à vontade pra criar também. Por mais que seu método oscilasse entre o deboche, a indiferença e a inconsequência, sua escrita automática e agressiva me remetia ao expressionismo abstrato e às vanguardas que definiram o modernismo nas artes. No contexto de um aparelho disciplinar rigoroso e em regime de privação de liberdade, produzir um filme de bolso que desafia os padrões normativos, a partir de um dispositivo onde a nossa única exigência era a do preenchimento da maior quantidade de páginas possível, parece-me algo muito revelador da potência do cinema no sistema socioeducativo.

Nesta perspectiva, tento fazer uma aproximação da experiência aqui narrada para investigar que aspecto ou aspectos da potência desta produção especificamente podem me ajudar a pensar as provocações que me mobilizam na pesquisa. Retomando a pergunta sobre quais seriam os limites de conceitos como identidade, visibilidade e autoria nas produções dos jovens encarcerados, penso que a questão da identidade, em especial, encontra aqui implicações interessantes já que, de alguma maneira, a criação do flipbook de Jonas envolveu um processo de subjetivação talvez pouco evidente num primeiro momento.

Não é objetivo deste artigo dissertar sobre a origem e os desdobramentos do conceito de identidade ao longo da história, logo vou me deter à noção que julgo mais pertinente na fricção com o corpus analisado. Grosso modo, uma das definições do dicionário Michaelis talvez já nos bastasse, ao colocar que identidade é uma “série de características próprias de uma pessoa ou coisa por meio das quais podemos distingui-las”5. Porém, gostaria de desdobrar um pouco mais essa referência semântica, por assim dizer, para uma dimensão mais sociológica. Para isso, lanço mão das ideias do espanhol Manuel Castells, para o qual identidade é “a fonte de significado e experiência de um povo” (2018, p. 190) e, no que se refere aos atores sociais, o “processo de construção de significado com base em um atributo cultural, ou ainda um conjunto de atributos culturais inter-relacionados, o(s) qual(ais) prevalece(m) sobre outras fontes de significado” (2018, p. 191). A esta definição, justapomos ainda a classificação de sujeito pós-moderno de Stuart Hall (2006), na qual a identidade é definida historicamente, e não biologicamente; Para Hall, “o sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um ‘eu’ coerente” (2006, p. 13).

Para Castells, não é difícil concordar que toda e qualquer identidade é construída, como proposto pela sociologia. A questão essencial para ele é “a partir de que, por quem, e para que isso acontece” (2018, p. 195). O autor completa:

 “A construção de identidades vale-se da matéria-prima fornecida pela história, geografia, biologia, por instituições produtivas e reprodutivas, pela memória coletiva e por fantasias pessoais, pelos aparatos de poder e revelações de cunho religioso. Porém, todos esses materiais são processados pelos indivíduos, grupos sociais e sociedades, que reorganizam seu significado em função de tendências sociais e projetos culturais enraizados em sua estrutura social, bem como em sua visão de tempo/espaço” (2018, p. 195-196)

Como abordei aqui na introdução, a crise da produção da autoimagem dos jovens em privação de liberdade se estabelece à medida em que o reconhecimento almejado através das imagens de si, esbarra em dispositivos jurídicos de interdição que, através da massificação de seu uso na mídia, por exemplo, voltam a condenar os jovens. Isto porque a reiteração deste artifício, sempre associado a um contexto de violência, marca a identidade desses adolescentes, mesmo que seus discursos, práticas e modos de ser se (re)configurem em outro sentido. Desta maneira, percebemos que o que está em jogo é também a fabricação de uma subjetividade, mediada pela maquinação de um discurso. Félix Guattari e Suely Holnik nos ajudam a fazer essa leitura:

A subjetividade é produzida por agenciamentos de enunciação. Os processos de subjetivação, de semiotização – ou seja, toda a produção de sentido, de eficiência semiótica – não são centrados em agentes individuais (no funcionamento de instâncias intrapsíquicas, egóicas, microssociais), nem em agentes grupais. Esses processos são duplamente descentrados. Implicam o funcionamento de máquinas de expressão que podem ser tanto de natureza extra-pessoal, extra-individual (sistemas maquínicos, econômicos, sociais, tecnológicos, icônicos, ecológicos, etológicos, de mídia, enfim sistemas que não são mais imediatamente antropológicos), quanto de natureza infra-humana, infrapsíquica, infrapessoal (sistemas de percepção, de sensibilidade, de afeto, de representação, de imagens, de valor, modos de memorização e produção de idéia, sistemas de inibição e de automatismos, sistemas corporais, orgânicos, biológicos, fisiológicos, etc.). (GUATTARI, ROLNIK, 1996, p.31)

Se é no agenciamento de enunciação que a subjetividade dos jovens é maculada, podemos inferir que é nela também onde se pode operar algum tipo de resistência. Naquela manhã de atividade do Cartas ao Mundão, Jonas talvez não soubesse, mas seu garrancho não só não poderia ser capturado pela estigmatização das tarjas e borrões – que, de novo, o relega reiteradamente à marginalização – como forjava um processo de subjetivação onde ele poderia ser outro, sem deixar de ser a si próprio. Dizendo de outro modo, ao descarregar nas páginas daquele post-it sua ansiedade e indiferença, Jonas transfigurava seu “eu” interditado da superficialidade discriminatória em uma sequência de quadros indomáveis, capaz de desnortear as formas sistematizadas de identificá-lo, mas que não deixava de representá-lo, com seu incontornável anseio por liberdade. Esta é certamente uma formulação que Gilles Deleuze me ajuda a esclarecer:

Um processo de subjetivação, isto é, uma produção de modo de existência, não pode se confundir com um sujeito, a menos que se destitua esse de uma interioridade e mesmo de toda identidade. A subjetivação se quer tem a ver com a “pessoa”: é uma individuação, particular ou coletiva, que caracteriza um acontecimento (uma hora do dia, um rio, um vento, uma vida…). É um modo intensivo e não um sujeito pessoal. (DELEUZE, 1992, p. 123-124). 

Quando pontuo que Jonas se transfigura num “eu” que desnorteia e escapa, sem deixar de ser a si próprio, me baseio na leitura de que, neste processo, se mantém a posse de sua interioridade e identidade como escreve Deleuze, já que o que se produz é um modo de existência, uma configuração de ser na forma, na imagem, no garrancho. Não pretendo desdobrar aqui as consequências desta reflexão nos casos em que os adolescentes usaram ou usam a câmera na produção audiovisual no regime de internação, mas me parece claro que é essencialmente nesse processo de subjetivação que encontraríamos brechas pra sair da prisão que a própria imagem pode apresentar como armadilha. Mais uma vez, lanço mão das palavras de Deleuze pra consolidar o argumento: 

Pode-se com efeito falar de processo de subjetivação quando se considere as diversas maneiras pelas quais os indivíduos ou as coletividades se constituem como sujeitos: tais processos só valem na medida em que, quando acontecem, escapam tanto dos saberes constituídos como aos poderes dominantes. Mesmo se na sequência eles engendram novos poderes ou tornam a integrar novos saberes. Mas naquele preciso momento eles têm efetivamente uma espontaneidade rebelde. Não há aí nenhum retorno ao “sujeito”, isto é, a uma instância dotada de deveres, de poderes e saberes. (DELEUZE, 1992, p. 217-218) 

Escapar dos saberes constituídos e poderes dominantes me parece enfim a constatação essencial desta breve investigação; penso que esse escape ou fuga seja não só a potência que reside nessa experiência do Cartas ao Mundão como, em certa medida, define a razão de ser do cinema em centros de atendimento socioeducativo. Talvez esta síntese arriscadamente radical seja provisória, efeito de um argumento montado sem o atravessamento de outras dimensões que também estiveram em jogo na minha vivência com os jovens e que não coube desenvolver aqui. De todo modo, se foi no limite de sua razão de ser ou pela simples contingência de sua presença, foi o cinema que deu a ver o problema e, de alguma maneira, relevou – se não a solução – uma saída. Ou, se quisermos ser mais modestos, nos colocou perguntas fundamentais. Assim como o jovem T., personagem de Fernand Deligny que através da chapa oca e do pântano “desenhou-se” para o autor – que naquela ocasião era diretor pedagógico de um Centro de Observação para crianças inadaptadas da França -, teria Jonas por acaso se revelado tal como se sentia, sem o cinema?

Como abordagem inicial que é, certamente esta breve investigação apresenta lacunas e demanda maior aprofundamento numa elaboração mais minuciosa; penso que, por exemplo, estas inferências a respeito da identidade devam ganhar contornos mais complexos à medida em que eu volte a atravessa-la pelas noções de visibilidade e autoria – as duas outras que pretendo investigar na pesquisa e que me parecem de fato muito interligadas na produção dos jovens. De toda maneira, não gostaria de perder de vista a potência destas análises por serem inicias, pois acredito que elas constituam o alicerce do desenvolvimento da pesquisa.

É aliás a partir deste embasamento que podemos identificar um limite para o conceito de identidade nessa produção audiovisual, que vai se dar justamente no fluxo da fuga dos poderes dominantes, não se caracterizando por algo que distingue, mas que desorienta; que não baseia seu significado num conjunto de atributos culturais específico, mas numa multiplicidade difusa de efêmeros modos de (r)existência. Reformulando o que eu disse a Jonas, sobre “escrever com o movimento”, aqui me parece que, na verdade, a potência se constitui na possibilidade de se inscrever com o movimento, no sentido de esculpir a si mesmo na animação do fluxo e, nessa agência, fazer (trans)correr identidades que escapem à estática conformação que já foi enquadrada e fadada à condenação. 

4. Referências bibliográficas

CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. 1ª edição. São Paulo: Paz e Terra, 2018. 

DELEUZE, Gilles. Conversações, 1972-1990. 1ª Edição. São Paulo: ed. 34, 1992.

DELIGNY, Fernand. Os vagabundos eficazes – Operários, artistas, revolucionários: educadores. São Paulo: n-1 edições, 2018.

FRERE, Paulo. À sombra desta mangueira. 11ª Edição.  Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015.

GUATTARI, Félix; ROLNIK, Suely. Micropolítica: Cartografias do Desejo. 4ª edição. Petrópolis: Vozes, 1996.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 11ª edição. Rio de Janeiro: DP&A ed., 2006.MC’S, Racionais. Diário de um detento. In: Sobrevivendo no inferno. São Paulo: Cosa Nostra, 1997. CD (1h13min).

5. Notas

  1. Página oficial do projeto no Facebook disponível em: <https://shorturl.at/kyDH6>. Acessado em: 10/02/2021. ↩︎
  2. O nome verdadeiro de Jonas foi omitido para não expô-lo. ↩︎
  3. Livro pedagógico organizado pela coordenação do Inventar com a Diferença, que reúne propostas de encontros e exercícios a serem desenvolvidos com os alunos. ↩︎
  4. Disponível em: <https://shorturl.at/emK67>. Acessado em: 09/02/2020. ↩︎
  5. Disponível em: <https://shorturl.at/kCLR4>. Acessado em: 18/02/2021. ↩︎

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