Mapeando a escola com imagens, sons e afetos

1. Introdução

É necessário inventar, sempre, com o mundo, outros modos de habitá-lo. (FRESQUET, 2013, p. 34) 

Com essa escrita, trago reflexões sobre a prática cartográfica – destacando seu caráter subjetivo. Investigo relações entre a cartografia e o campo das artes – percebendo as possibilidades não-utilitárias e criativas de representar territórios. Abordo, brevemente, o campo da arte digital – reforçando a importância das mídias locativas na criação cartográfica colaborativa.

Em sequência, compartilho uma experiência realizada no Colégio Estadual Guilherme Briggs em 2019, chamada CEGUIB Afetivo1. Durante uma oficina de três dias, propomos aos alunos uma prática cartográfica da escola – feita a partir de dispositivos, dinâmicas e entrevistas. Acredito que ao trabalharmos com o campo dos afetos que perpassam o território, transformamos as práticas cotidianas, os caminhos e as ações concretas realizadas no espaço físico – fortalecendo nosso senso de comunidade, de pertencimento e nossa autonomia. 

2. Mapa enquanto representação – relação com as artes

Mapas são imagens

Mapas são autorretratos

Mapas são manifestações de percepções

Mapas são retratos do mundo da forma

Que aqueles que os criam gostariam

Que o mundo fosse entendido

Mapas são subjetivos

Mapear… é um ato de poder

(Sen, 2007)

Durante a nossa formação escolar, a maioria dos mapas com os quais entramos em contato se propõem analistas e objetivos – apresentando informações factuais. De forma recorrente, somos apresentados a narrativas cartográficas hegemônicas, que colaboram na construção de conceitos fundamentais na nossa percepção dos territórios – como fronteira, nacionalidade e migração. Dessa forma, percebemos o mundo como um território dado, imutável – com rígidas demarcações. No entanto, todo mapa é uma representação da realidade, envolvendo pensamentos políticos e pessoais; narrativas e finalidades. Um mapa não é um objeto dado, é uma forma de linguagem. Mapear é como contar uma história.

Como afirma o filósofo Nelson Goodman, todo mapa é esquemático, seletivo e convencional – feito de escolhas. Escolhemos mostrar certos dados em detrimento de outros; certas cores para cada um dos dados e por aí vai. Ao mesmo tempo em que essas escolhas e recortes são a expressão de estruturas de poder, também fabricam estruturas. Portanto, na medida em que cartografar é representar o mundo, também é atuar na construção deste. 

Um mapa se caracteriza justamente por ser representação; pela sua impossibilidade de ser mundo – pela incapacidade de representar toda a complexidade e imensidão de um território. A imperfeição, a falta e a escolha são intrínsecas à cartografia. Nos limitamos a tentar organizar o que é vasto e, naturalmente, não-organizável – posicionando objetos extremamente complexos e distintos uns dos outros sob o mesmo plano – tornando-os comparáveis e propondo caminhos entre um e outro. De acordo com Tilberghien, ao realizarmos três ações – nomear, figurar e traçar – temos um mapa.

Tal natureza intrínseca ao mapa – subjetiva e narrativa – fez com que a cartografia se tornasse uma prática muito explorada no campo das artes – principalmente a partir de 1960, com o desenvolvimento da chamada arte conceitual. Tais obras possibilitam expressões espaciais múltiplas de um mesmo território. Uma expressão não exclui a outra: por valorizarem processos que atuam no imaginário de um espaço, elas podem coexistir. Assim, pode-se ter diversos mapas, feitos sobre o mesmo território físico – propondo organizações distintas dos afetos sobre o espaço.

Nas artes, a função utilitária do mapa de indicar trajetos, por vezes, desaparece. O próprio significado da palavra mapa se transforma e a obra não pode ser utilizada para chegar-se a algum lugar. Eventos efêmeros ou detalhes que não costumam estar representados, ganham destaque – deslocando relações pré-estabelecidas de importância e de não-importância. Podemos ter um mapa que é feito para se perder – ou para perder as nossas relações habituais com o mundo. 

Enquanto obra de arte, o mapa se faz, ao mesmo tempo, representação e imagem. Representação, pois ele faz referência a um território físico – por mais que esse território possa estar quase irreconhecível dentro da obra. Imagem, pois ele organiza elementos e afetos distintos em um mesmo plano, aproximando figuras que não seria possível aproximar no território físico. Portanto, ao explorarmos na arte o desvio, intrínseco à cartografia, entre o mundo e sua representação, acabamos por ir além da representação – criando um encontro de potências único à imagem/cartografia criada – possibilitando uma nova construção imaginária de um espaço.

Trago um exemplo dessa relação entre cartografia e arte: o trabalho de Diane Savon, Mapa das percepções da minha cidade natal2. Essa obra é feita a partir de tecidos variados que a artista conseguiu com moradores dos bairros da cidade de Clifton (EUA). Ela cria uma espécie de colcha de retalhos – bordando o nome de cada bairro nos tecidos. Por mais que seja um trabalho que leve o nome de uma pessoa; uma artista – ele é feito a partir de um grupo: do ato de remendar tecidos pessoais, aparentemente sem grande importância para o todo, mas que – juntos – criam a representação afetiva de um lugar. E é isso que nos interessa aqui.

3. Cartografias colaborativas – uso de mídias locativas

Os mapas digitais já ocupam parte importante do nosso cotidiano – traçamos trajetórias diárias a partir do Google Maps; buscando caminhos que nos levem de forma rápida e segura ao nosso destino. Nosso corpo, geralmente, se movimenta pelas ruas em rotas previamente traçadas. O GPS, utilizado no Google Maps, é uma mídia locativa – um aparato de localização e posicionamento virtual, que possui uma relação direta com uma localização espacial. A relação entre a cartografia e a arte vem adentrando o mundo digital, principalmente pela utilização de mídias locativas.

Ao investigar essas ferramentas virtuais para criar uma cartografia artística, abrimos espaço para a criação em rede – de forma colaborativa. A obra deixa de ser individual – sendo feita por muitos; e deixa de estar pronta – sendo constantemente atualizada e alterada por novas contribuições. 

Cartografia colaborativa é um termo recente surgido a partir de propostas coletivas de grupos artísticos ou culturais, muitas vezes veiculadas em redes mundiais de computadores ou em meios de comunicação midiáticos. No contexto das redes computacionais, como espaço cíbrido, encontra-se a possibilidade de construção em tempo real de uma poderosa cartografia de movimento nos meandros dos processos de subjetivação contemporâneos, com elementos vindos de toda parte do planeta, não importando onde se esteja. (ROLNIK, 2009 apud VENTURELLI, 2009)

Essas cartografias são criadas conjuntamente a partir de elementos subjetivos e pessoais que, agrupados, formam um todo e dialogam entre si (como o mapa de retalhos visto anteriormente) – redesenhando o espaço e os caminhos a partir de sua apropriação afetiva pelos sujeitos.

Dessa forma, sobrepomos uma paisagem mental à paisagem real, criando uma espécie de território híbrido: a base é o território físico – mas o território virtual é construído como uma segunda camada, encontrando brechas – através das mídias locativas – para influenciar na matéria física; nos caminhos e nas relações.

Um exemplo é o trabalho Mapeando Lençóis3, da artista Karla Brunet. Esse trabalho foi realizado durante o evento Submidialogia#3 em 2008. Um mapa foi construído com participantes do evento e com a comunidade – principalmente crianças. Trata-se de uma cartografia colaborativa que propõe um mapeamento fenomenológico – descrevendo fluxos e trajetos. A partir de um exercício de deriva (caminhar pela cidade se atentando ao ato de caminhar – mais do que à chegada a um destino) os participantes faziam anotações analógicas e digitais (enviando fotos, sons e vídeos para o site do projeto).

A deriva, como método de criação e de conhecimento dos espaços, propõe outra relação com o lugar. Percorrer o espaço sem “objetividade”, atento às outras possibilidades de interação com o urbano que se apresenta. Trata-se de uma forma de (re)conhecer a cidade, de se permitir a experiência e contaminar-se pelo acaso e pelas relações. Além do mapa construído colaborativa e coletivamente, em trabalhos como este se tem também a riqueza da experiência dos participantes (LEIRIAS, 2011 p. 78)

Dessa forma, tem-se um mapa extraoficial da cidade – criado por habitantes locais e visitantes; um mapa que, ao mesmo tempo, é memória – organizando trajetos e percepções passadas – e atualização – influenciando o olhar e o caminho de quem escolhe percorrer a cidade guiando-se por esse mapa. 

Outro exemplo é o projeto Aqi4, lançado em 2011 e desenvolvido no LART- Laboratório de Pesquisa em Arte e Tecnociência do FGA-Gama, coordenado por Tiago Lucena. O projeto consiste na criação de uma plataforma para a web e um aplicativo, por meio do qual usuários podem produzir conteúdos (fotografias, vídeos e textos) no espaço urbano. Esses conteúdos são geolocalizados e inseridos no site. Usando o aplicativo, as pessoas são avisadas quando estão perto de um ponto que contém informações – podendo interagir com elas. Dessa forma, cria-se uma camada narrativa à cidade, feita de forma colaborativa. No site do projeto, temos que “Lugares possuem histórias. Cada esquina, cada árvore e cada prédio podem guardar um elemento importante na vida de alguma pessoa. Passear pela cidade contando suas histórias, inventando outras, lembrando dos fatos ocorridos em determinadas ruas, criticando problemas no seu bairro são ações que podemos fazer usando um aparelho celular.”

Esse exemplo se assemelha com o que buscamos criar no CEGUIB: uma camada afetiva sobreposta ao espaço físico do território, acessada através de uma plataforma em constante atualização.

4. Cartografando a escola: CEGUIB Afetivo

Feita essa contextualização, compartilho uma prática realizada em 2019, no Colégio Estadual Guilherme Briggs. Dentro da programação do FBCU (Festival Brasileiro de Cinema Universitário), eu e Bruna Massa – licencianda de cinema – mediamos a oficina CEGUIB AFETIVO, em parceria com a professora Gláucia Andreza.

Essa oficina teve duração de três dias e trabalhamos com um grupo de, aproximadamente, 20 alunos. Nossa proposta era criar uma cartografia colaborativa digital a partir do território da escola. A cartografia seria criada com elementos audiovisuais (vídeos, imagens e sons). Queríamos que o espaço virtual da cartografia fosse um espaço mutável – o qual os alunos poderiam continuar atualizando, inserindo outros elementos e repensando a disposição dos lugares. Não partiríamos de um roteiro, mas de dispositivos – que, de acordo com Migliorin, são:

(…) a introdução de linhas ativadoras em um universo escolhido. O criador recorta um espaço, um tempo, um tipo e/ou uma quantidade de atores e a esse universo acrescenta uma camada que forçará movimentos e conexões entre os atores (personagens, técnicos, clima, aparato técnico, geografia etc.). O dispositivo pressupõe duas linhas complementares; uma de extremo controle, regras, limites, recortes e outra de absoluta abertura, dependente da ação dos atores e de suas interconexões; e mais; a criação de um dispositivo não pressupõe uma obra. O dispositivo é uma experiência não roteirizável, ao mesmo tempo em que a utilização de dispositivos não gera boas ou más obras por princípio. (2019, p.83)

Basicamente, é um conjunto de regras que dispara imagens e acontecimentos. Trabalhar com dispositivos é propor a criação como encontro – se direcionando para lugares e pessoas com uma câmera e algumas regras, deixando o acaso agir sobre a imagem.

No primeiro dia, conversamos sobre arte e território. Refletimos sobre intervenções que transformam a nossa relação com o espaço físico, criando uma camada informacional alternativa à aparente rigidez da cidade. Debatemos sobre grafitti, lambe-lambe e pixo – em seguida, partimos para o digital, conversando sobre Video Mappings (técnica que permite a projeção de vídeos sobre superfícies irregulares – como fachadas de prédios e muros). Por fim, abordamos a cartografia, trazendo como exemplo o Mapa Sonoro de Curitiba5: um mapa virtual, feito de forma colaborativa, que apresenta paisagens sonoras e relatos de moradores sobre memórias, experiências e percepções relativas aos espaços da cidade.

Lançamos um dispositivo: fotografar intervenções – feitas por alunos – no espaço físico da escola. Vimos as fotografias tiradas e conversamos sobre elas – debatendo sobre como essas intervenções afetam a dinâmica do espaço.

No segundo dia, os alunos se dividiram em duplas e escolheram uma área da escola. Utilizando o próprio celular enquanto câmera e gravador de som, criaram a partir dos seguintes dispositivos:

  1. Gravar um som ambiente do espaço escolhido.
  2. Conversar com alguém que frequente esse espaço sobre memórias e afetos relativos à ele. Gravar essa conversa.
  3. Filmar dois planos: um plano geral e um detalhe; ou
  4. Tirar duas fotografias: uma mais aberta e outra mais próxima. Explorar as diferenças entre o espaço vazio e o espaço preenchido por pessoas e ações.

Passamos as imagens e os sons para o computador e assistimos juntos parte das criações.

No terceiro dia, refletimos sobre os nomes dos espaços da escola. Queríamos nomear os lugares da forma como eles são chamados pelos alunos. Por exemplo: uma das salas de aula é chamada, por eles, de O Point – se utilizássemos o nome oficial, ela não seria reconhecida imediatamente – mas, ao dizer O Point, todos sabiam a que lugar estávamos nos referindo. Realizamos uma dinâmica para encontrar palavras afetivas referentes a cada lugar: citávamos um espaço – biblioteca, por exemplo – e cada aluno tinha em torno de 3 minutos para escrever as palavras que vinham à mente ao pensar naquele lugar. Cartografamos, brevemente, o espaço da escola de forma analógica a partir de colagens, desenhos e palavras – os alunos experimentaram, de forma bem livre – a associação de imagens à lugares e a proposição de trajetos.

Por fim, partimos para a cartografia digital. A ideia era fazer um site onde reuniríamos todo o material criado. O site estaria dividido por lugares (biblioteca, point, lanchonete etc.). Cada lugar teria sua própria página virtual, onde veríamos as imagens e escutaríamos os sons. A URL de cada página estaria conectada a um QR Code específico – que iríamos imprimir e colar nos respectivos espaços físicos. Assim, ao transitar pela escola, o aluno poderia escanear os QR Codes e acessar as imagens, conversas e sons criados ali – como uma camada virtual que revelaria aspectos sensíveis e afetivos sobre aquele lugar.

Na prática, foi um pouco mais difícil. Iniciamos a criação do site pelo WIX. Tínhamos apenas um monitor – que conectamos ao projetor. Assim, íamos debatendo e decidindo juntos como ficaria o site, a organização do material e a disposição dos elementos. Conseguimos fazer até certo ponto, mas não foi possível finalizá-lo dentro do tempo da oficina. Eu e Bruna finalizamos o site em casa e voltamos à escola na semana seguinte. Conversamos sobre mídias locativas e entregamos um passo a passo de como gerar um QR Code para uma URL. Exploramos o site junto com eles, conversamos sobre a experiência e entregamos os QR Codes a serem colados na escola.

Apesar de não conseguir terminar o site dentro do contexto da oficina, a experiência foi muito positiva. Os alunos saíram motivados, apresentando ideias de atuação no espaço – desejos e projetos que gostariam de realizar. Acredito que o ponto central da oficina foi deslocar a escola de um território dado; conhecido, experimentando-a enquanto um espaço em construção; investigando trajetos e memórias. Feita de forma colaborativa, a cartografia apresenta os espaços enquanto um emaranhado de ideias e imagens – que coexistem e interferem umas nas outras. Perceber a escola como esse espaço relacional; emaranhado – construído a partir de processos de subjetivação – reforça a posição do aluno enquanto agente cocriador, fazendo da escola um território a ser explorado e reinventado conjuntamente.

5. Referências bibliográficas

FRESQUET, Adriana. Cinema e educação: reflexões e experiências com professores e estudantes de educação básica, dentro e “fora” da escola. Autêntica Editora, 2013.

GOODMAN, Nelson. Problems and Projects. Indianapolis: Hackett Publishing Co.,

1972.

LEIRIAS, Ana Gabriela. Novas cartografias on-line: arte, espaço e tecnologia. 2011

MIGLIORIN, Cezar. O dispositivo como estratégia narrativa. Narrativas

Midiáticas Contemporâneas. Livro da XIV Compós/2005. Porto Alegre: Sulina. P.82-

94 (2006)

ROLNIK, Suely. Cartografia sentimental, transformações contemporâneas do desejo. Porto Alegre: Sulina, Editora da UFRGS, 2007.

TIBERGHIEN, Gilles. Imaginário cartográfico na arte contemporânea: sonhar o mapa nos dias de hoje. Trad. Inês de Araujo. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, Brasil, n. 57, p. 233-252, 2013.

6. Notas

  1. https://mapaafetivoaudio.wixsite.com/ceguibafetivo ↩︎
  2. Tradução nossa. http://www.dianesavonaart.com/#/maps/ ↩︎
  3. http://lencois.art.br/blog ↩︎
  4. http://aqi.unb.br/ ↩︎
  5. http://www.mapasonoro.com.br/ ↩︎

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