Relatos a partir da experiência com o longa-metragem A Besta Pop
1. Introdução
A Resolução do Ministério da Educação nº 10, de 27 de junho de 2006, documento que instituiu diretrizes para o ensino de cinema e audiovisual no país, qualifica em seu artigo 3º o perfil do egresso, que deve estar capacitado para atuação nas áreas técnicas (produção e gestão de projetos, economia e política), bem como no campo teórico (pensamento crítico e análise do cinema e do audiovisual, direcionado para a área da pesquisa).
Por sua natureza mediada pela tecnologia, as formações em cinema e audiovisual demandam uma infraestrutura técnica (laboratórios com equipamentos capazes de “rodar” programas de edição, softwares, equipamentos de captação de áudio e vídeo, iluminação, dentre outros), a fim de que o processo de aprendizado seja melhor compartilhado com o corpo discente e que as diretrizes apontadas na resolução sejam atendidas.
Como causa natural, o uso contínuo destas estruturas provoca sua deterioração e, aliada à obsolescência tecnológica sofrida pelos equipamentos, fazem com que estes cursos necessitem de constantes investimentos, caminho que não é muitas vezes viável no cenário atual, sobretudo das instituições públicas de ensino.
Esta conjectura, por si só, se apresenta como desafiadora ao ensino de cinema e audiovisual no Brasil para todos os envolvidos – docentes, discentes e cursos – principalmente no aspecto prático, isto é, a vivência das dinâmicas de um set cinematográfico pelos discentes, essencial para o aspecto da qualificação técnica requerida do ensino em audiovisual.
Este artigo busca refletir a respeito da importância e dos desafios da prática audiovisual no contexto universitário. Pelo fato de não possuir dados para tratar o assunto de maneira geral, tomei como exemplo a realidade que me é familiar: o Bacharelado em Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Pará, local onde completei a formação superior.
O texto, organizado em formato de relato, é um desdobramento da pesquisa realizada em nível de mestrado que traz à memória experiências pessoais com o aprendizado de cinema e audiovisual na Amazônia brasileira, consubstanciado no longa-metragem A Besta Pop (2018)1, realizado durante a graduação.
Por fim, de maneira bem sucinta, apresenta algumas análises de pesquisa feita junto a plataforma Catarse de financiamento coletivo, a respeito do uso desta ferramenta para capitanear recursos para a realização universitária, apresentando nas considerações uma reflexão acerca de propostas que pretendem, em um longo-prazo, incrementar a produção no contexto universitário.
2. A produção audiovisual nas universidades e seus desafios a partir da realidade do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Pará – UFPA
Ao ler o termo produção, somos levados por seus diversos sentidos: o departamento que viabiliza e fornece a estrutura para a obra, o período de filmagens propriamente ditas ou todas as fases que envolve o fazer audiovisual, conforme aponta Chris Rodrigues (2007). O sentido que tomamos quando falamos a respeito da produção no contexto universitário se refere às experiências de set, isto é, aquela composição de etapas que tira o roteiro do papel e o transforma em obra cinematográfica ou audiovisual.
A estrutura das universidades e institutos de ensino público brasileiro, ainda que não seja o ideal, é um resultado possível, arduamente conquistado por processos de defesas, avanços e retrocessos, e a luta de milhares de agentes que antecederam calouros que ingressam a cada ano. Na qualidade de egressa de uma universidade pública é, de fato, um privilégio ter recebido o suporte de uma instituição que busca oferecer condições de permanência no contexto acadêmico.
Porém, na vivência, no cotidiano da vida universitária, surgem questões que nem sempre podem ser respondidas de pronto pelo empenho da administração superior das universidades. Tratam-se de peculiaridades que são reflexos das disparidades brasileiras na comunidade universitária, no tocante à renda e acessos de camadas social e historicamente excluídas, que conseguem ter acesso por políticas de cotas, mas que carregam consigo um background de falta de recursos, até mesmo para sua chegada até a instituição.
Outro fator que dificulta este processo diz respeito às burocracias públicas que requerem tempos maiores, por mais boa vontade que as universidades e institutos tenham, como afirmado acima a respeito da manutenção de equipamentos e estruturas de um curso permeado por elementos técnicos – como é o caso de cinema.
Para entender melhor este contexto, tomo como exemplo o bacharelado em Cinema e Audiovisual na UFPA que nasceu em um momento em que o Governo Federal injetou investimentos na educação superior, incentivando a expansão e reestruturação das universidades federais (Programa REUNI – Decreto nº 6.096, de 24 de abril de 2007), objetivando “criar condições para a ampliação do acesso e permanência na educação superior, no nível de graduação, pelo melhor aproveitamento da estrutura física e de recursos humanos existentes” (art. 1º). Aprovado pela Resolução nº 3.960, de 31 de março de 2010, o curso de Cinema e Audiovisual da UFPA iniciou suas atividades em janeiro do ano seguinte com a primeira turma de vinte e seis pessoas e, diferente de outras realidades, a graduação ficou vinculada ao Instituto de Artes, e não o de Comunicação, onde em geral é alocado. Nesta estrutura, o curso passou a integrar a Faculdade de Artes Visuais, que já contava com o bacharelado e a licenciatura em Artes Visuais e Museologia.
Pensando na realidade do ensino público, é compreensível que um curso novo em uma universidade pública, que enfrenta constantes dificuldades para se manter, não se inicie plenamente aparelhado em estrutura física e de equipamentos para as disciplinas práticas e para a produção audiovisual. Com o curso de Cinema e Audiovisual da UFPA não foi uma exceção. Desde sua inauguração até o ano de 2018, a graduação em Cinema e Audiovisual da UFPA possuía pouca estrutura voltada ao campo da realização.
Posterior a este período, o curso recebeu novos investimentos e pôde constituir uma estrutura robusta que envolveu aquisição de câmeras e lentes, equipamentos de iluminação, som, aparelhamento das ilhas de edição de imagem e som, laboratório de informática com computadores modernos, dentre outras melhorias – atuando de forma positiva em algumas deficiências iniciais do curso, agindo em benefício de incontáveis produções universitárias que vieram e virão posteriormente. Esta estrutura, certamente, colocou o curso da UFPA entre os melhores estruturados do país.
Em um contexto acadêmico, tem-se que o objetivo da prática audiovisual consiste em exercitar o conhecimento teórico aprendido nas salas de aulas, tornando a existência de equipamentos de captação de áudio, vídeo e edição essenciais para o aprendizado pedagógico das disciplinas práticas. Nelas os alunos podem experimentar a linguagem audiovisual na vivência de um cotidiano de set de filmagem.
Estas disciplinas práticas, no contexto da UFPA, costumam solicitar filmagens de curtas ficcionais ou documentais como parte da avaliação acadêmica. Sendo assim, o curso cede sua estrutura em equipamentos e ilhas de edição para que a atividade prática possa ocorrer. Muito embora parte dos problemas estejam resolvidos, outro problema socio-estrutural se apresenta: o investimento financeiro que estas produções demandam.
A realidade das práticas em realização universitária acaba tendo que se adaptar à escassez de recursos para realizar até mesmo os projetos que são demandas das disciplinas, e que acabam ficando às expensas dos estudantes. Tendo em vista a desigualdade da realidade financeira no meio discente em aportar recursos em suas produções.
Para solucionar esta questão, os discentes de Cinema e Audiovisual fazem uso de um sistema de empréstimos das mais diversas naturezas: desde a roupa da tia até a casa do amigo para rodar as cenas necessárias para contar a narrativa que se propuseram. E, ainda assim, é necessário que haja uma parte do recurso em dinheiro para responder por pequenos custos da produção, como o transporte do elenco e a alimentação da equipe, que trabalha sem receber nenhum valor, pois o que se almeja com essas atividades, na perspectiva acadêmica, é praticar a teoria, conquistar experiência e portfólio para o mercado de trabalho.
Durante a minha existência na graduação em Cinema e Audiovisual da UFPA, enfrentei com meus colegas de turma essas mesmas dificuldades nas produções. Muitas das saídas utilizadas para arrecadar verba para as produções vinham de pequenas vendas, bazares e rifas, a fim de levantar recursos mínimos para uma direção de arte e despesas com elenco. Dentre elas, a que trago como forma de relato é a experiência com a realização de um longa-metragem, financiado em parte com recursos de crowdfunding, o popular financiamento coletivo.
3. A iniciativa “A Besta Pop”: relatos
A Besta Pop, longa-metragem ficcional de 82 minutos, com captação e finalização digital, em cores, que narra neste tempo três núcleos de histórias que se cruzam na festa que dá nome ao filme, um dia antes do país ser tomado por um regime totalitarista: um grupo de adolescentes que foge de um culto evangélico para ir à festa, um cara de classe média alta que acaba se relacionando com um garoto de programa durante a festa, e uma jovem documentarista crítica da sociedade que acaba se fundindo àquilo que criticava.
As filmagens de A Besta Pop tiveram início em 20 de julho de 2016 e se estenderam por seis semanas, até findar o mês de agosto. Foram vinte e nove diárias, em dias não consecutivos, com duração de 9h por dia, em média, com uma equipe constituída por cerca de sessenta pessoas, em sua maioria alunos do curso de Cinema e Audiovisual, além de mais de cem atores e não atores, entre elenco e figuração, e vinte e nove locações, inclusive com muitas externas.
A movimentação em torno do filme iniciou em 2016, quando um grupo da minha turma abriu um concurso de roteiros aos discentes do curso, que trazia como premissa a escrita de curtas-metragens que em algum momento fizessem a menção da festa ou que seus personagens aparecessem na festa Besta Pop. Do concurso, três roteiros foram selecionados e trabalhados para gerar uma história única e coesa, ambientada em um futuro distópico, influenciada pelos anos de 1980.
Essa mobilização iniciada pelos discentes veio para atender aos anseios da falta de experiências em produção e para marcar a história do jovem Cinema e Audiovisual da UFPA, lembrado que em 2016 o curso não estava aparelhado como está atualmente, e como estudantes, embora compreendêssemos aos poucos o funcionamento burocrático da universidade, era bastante frustrante não termos o contato adequado com equipamentos essenciais para a prática cinematográfica.
Com o projeto, pretendíamos experimentar o exercício prático do fazer cinematográfico, estimular a produção universitária e colocar o Bacharelado em Cinema e Audiovisual da UFPA em evidência na cena local. Além de fomentar a produção audiovisual regional, se tornaria um dos poucos longas-metragens depois de uma lacuna de mais de 40 anos, desde a última produção por Líbero Luxardo nos anos de 1960 – integrando ao cenário da produção local ao lado de diretores que estavam produzindo com editais públicos, tais como Jorane Castro, Roger Elarrat e Fernando Segtowick.
Para viabilizar financeiramente o projeto, o grupo resolveu iniciar uma campanha de financiamento coletivo na plataforma Catarse, que envolveu o trabalho de mais de um mês entre a escrita da campanha e a produção dos materiais gráficos que compuseram a página na plataforma de financiamento coletivo, à época, a mais popular do país. A campanha visava arrecadar o valor de R$10.000,00 (dez mil reais) para cobrir a direção de arte, elenco, alimentação e figurino, que seriam as despesas mais significativas para o projeto que tinha uma estética bem específica de distopia retrô-futurista. Ao final, o valor arrecadado superou os R$12.000,00 (doze mil reais), complementado com ações locais, como vendas de bebidas e bazares em pontos turísticos da cidade. No total, para a fase de produção contávamos com cerca de R$15.000,00 (quinze mil reais).
Como é sabido, os valores de mercado para a produção de um longa-metragem são muito superiores ao que o grupo possuía na ocasião da realização. Da mesma maneira, as demais etapas de produção sofreram com adaptações e não seguiram estritamente o que sugerem os manuais de produção de Chris Rodrigues (2007) e Aída Marques (2007), mas sim considerando a realidade posta e as dificuldades do projeto.
Nas produções universitárias é comum trabalhar com empréstimos do que é possível articular com as parcerias que o projeto angaria no percurso, sendo preciso antecipar variáveis desde o planejamento da produção. Por esta razão, é essencial que a atuação do Produtor caminhe em consonância com o da idealização fílmica para a direção.
Trabalhar com a ideia de Diretores-Produtores no projeto estimulava que o chefe de equipe igualmente pensasse em soluções criativas para algumas necessidades. No contexto de A Besta Pop, esta solução estava, em muitos casos, na busca de parcerias com instituições, pessoas físicas e jurídicas que pudessem ceder bens e equipamentos, a fim de serem utilizados nas filmagens.
Há de se reconhecer que o fato de sermos graduandos do Bacharelado em Cinema e Audiovisual da UFPA foi muito relevante na busca por tais parcerias, e fizemos uso do peso da Instituição, seja ao buscar apoio interno em outras Faculdades, como também ao contatar produtoras locais.
Com o apoio do Colegiado e da Secretaria do curso, elaboramos ofícios e memorandos, e partimos para apresentar o projeto a potenciais parceiros. De posse desses documentos e com o endosso da UFPA, os Diretores de Som e Fotografia visitaram o acervo técnico de outras instituições. A busca por equipamentos de captação de imagem, som e iluminação resultou em êxito parcial, uma vez que o que foi encontrado nos acervos destes locais não atendia completamente às necessidades do filme. Ressalto que a parceria dos discentes com a sua Instituição resultou em seis memoriais descritivos (formato de trabalho para conclusão de curso na UFPA) nas áreas de Direção, Direção de Produção, Direção de Arte, Direção de Fotografia, Som Direto e Montagem.
Sob uma perspectiva bastante particular sobre o projeto, cabe ressaltar sua importância para o exercício de uma função pouco vista na grade curricular dos cursos de graduação de Cinema e Audiovisual, a de assistência de direção, que me chegou ao conhecimento pelas vias de um curso de formação, promovido pela Fundação Estadual de Cultura.
A assistência de direção é a função responsável pela organização geral das filmagens e quem melhor conhece do filme como um todo, além de entender as intenções da direção e busca conciliar estas com a capacidade de produção do projeto. É uma função essencial nas fases de pré-produção e nas filmagens, se igualando, em nível de importância aos demais chefes de departamento (direção de fotografia ou de arte, por exemplo), muito embora receba a nomenclatura de assistente. Suas habilidades e competências envolvem organização, bom relacionamento com os departamentos, uma postura firme para conseguir respeito da equipe no set de filmagem e atenção aos detalhes da produção e roteiro.
Em todo o período que antecede as filmagens, o 1º assistente de direção executa tarefas gerenciais e de organização, tendo como principal atributo “ser o elo entre a produção e a direção” no cumprimento do planejamento do filme (MARQUES, 2007, p. 79). Mas é necessário que aja com criatividade em sua função primordial que é a de auxiliar a direção a executar sua visão, oferecendo soluções eficientes para os imprevistos.
São características indispensáveis a quem se propõe atuar na assistência da direção a iniciativa, a organização, a autoridade e a diplomacia, além de sensibilidade em perceber e solucionar situações e, sempre que possível, antecipá-las. Para Malfille (1992), estas habilidades que advêm da boa preparação deste profissional devem ser acompanhadas de um senso de antecipação. Este autor entende que:
O Assistente de Direção deve saber imaginar e prever todas as dificuldades que podem surgir e então dar a maior margem possível, resolvê-las antecipadamente ou pelo menos preparar uma alternativa. O Assistente deve sempre pensar ao mesmo tempo no momento presente e segundo os problemas – na hora, no dia ou na semana que vem (MALFILLE, 1992, p. 32).
Passado o período da realização, a pós-produção se apresentou como um outro grande e complexo campo de conhecimento a ser explorado pela equipe, em se tratando do processo de ensino-aprendizado dos processos que circundam o fazer cinematográfico. Em razão dos recursos terem se esgotado na fase de produção, a equipe de produção associada à orientação de um professor da cadeira de som, Dr. André Villa, transformou a montagem do filme em um projeto de extensão em nossa universidade, após conquistar o V Prêmio PROEX/UFPA de Arte e Cultura (2016). A ação promoveu duas oficinas de formação nas áreas de edição de imagem e som, abertas à comunidade externa.
Posteriormente, o projeto atraiu o interesse de uma produtora local, a Cabocla Filmes, que investiu financeiramente em uma finalização de cor e mixagem em Recife, um dos pólos que vem despontando na produção audiovisual, com profissionais de bastante experiência no mercado brasileiro. No total, para a fase de pós-produção foram levantados cerca de R$20.000,00 (vinte mil reais).
Com o filme pronto no início de 2018, começamos o processo em que o filme encontra o seu público e se cumpre a cadeia produtiva do audiovisual. Inscrevemos o filme em festivais de cinema e enquanto as seleções não saiam, cuidávamos da exibição para equipe e apoiadores, que ocorreu primeiramente no Centro de Convenções Benedito Nunes – da própria UFPA – com espaço para 1000 pessoas, aproximadamente.
Depois disso, o filme teve uma carreira em exibições em todos os espaços alternativos da cidade e em cinemas de rua de Belém, além de alguns festivais e encontros, principalmente no contexto universitário, conforme demonstra o fluxograma abaixo (Fluxograma 1):
Fluxograma 1 – Trajetória de exibições do filme A Besta Pop
Fonte: Feito pela autora com informações retiradas das redes sociais do filme (Facebook e Instagram) até maio de 2021.
A visibilidade que a III Mostra SESC deu ao filme fez com que outros contextos tomassem conhecimento de nossa produção, especialmente o universitário. O filme foi convidado para encerrar a 3ª edição do METRÔ – Festival do Cinema Universitário Brasileiro, na cidade de Curitiba, e para exibição no CINUSP, de São Paulo. O filme também foi selecionado para o Festival Maranhão na Tela de 2020, levando cinco premiações: Melhor Ator para Cássio de Freitas (Pete), Melhor Atriz para Eliane Flexa (Açúcar), Melhor Ator Coadjuvante para Leoci Medeiros (Martin), Melhor Atriz Coadjuvante para Erika Fiore (Mãe de Sam) e para João Luciano e sua equipe de Direção de Arte.
4. Questões pertinentes ao uso do financiamento coletivo para custear a realização audiovisual nas universidades brasileiras
Quando tratamos da produção universitária, de modo geral, percebemos que é o discente quem arca com as despesas de produção, uma vez que é incomum que as instituições de ensino aportem recursos financeiros no projeto – até pelas burocracias envolvidas em liberação de valores pelas universidades –, concentrando sua participação na infraestrutura, no empréstimo de equipamentos, espaço físico para locações e figurinos, quando há acervos existentes, sem que isso desmereça os esforços da universidade pública.
Considerando o cenário nacional, a produção cinematográfica e audiovisual tem sido realizada com o apoio de editais de investimento e de fomento. Contudo a comunidade universitária não conta com as mesmas janelas e o financiamento mediado pelas plataformas virtuais, em determinado momento, se constituiu em um caminho possível para auxiliar na diminuição de custos nas produções de acadêmicos de audiovisual. Tanto é que esse tipo de financiamento foi essencial para a realização de A Besta Pop.
O crowdfunding é fruto da revolução digital que se caracteriza pela consolidação da internet, pelo aprimoramento de computadores e equipamentos e pelo baixo custo das tecnologias digitais (AGUIAR, 2016) e se destina ao financiamento de produtos variados. A palavra de origem inglesa significa, literalmente, financiado pela multidão (crowd = multidão e funding = financiamento) e consiste na busca de recurso monetário para realizar um produto, porém feita por meio da internet. Na prática, denota um “modelo de criação e/ou produção baseado em redes de conhecimento coletivo para solucionar problemas, criar conteúdo ou inventar novos produtos de forma colaborativa” (VALIATI; TIETZMANN, 2012, p. 2).
O objetivo primário do financiamento coletivo é o de viabilizar seu produto criativo, levando o maior número de pessoas a aportar pequenos valores e, com isso, ratear as despesas de produção, bem como servem para a divulgação antecipada para o projeto e proporciona uma prática semelhante à encontrada no mercado, guardadas as devidas proporções, investigando o interesse que o produto audiovisual gera no público de forma antecipada (STEINBERG E DEMARIA, 2012). Essa forma de contato com o público consumidor antes de sua execução possibilita que outras ideias e estéticas circulem e atendam a nichos específicos, muitas das vezes não contemplados em estruturas mais tradicionais.
Imbuída na pesquisa acadêmica, realizei um levantamento junto à plataforma Catarse que foi dividido em duas etapas. Em um primeiro momento, ocorrido ao longo do primeiro semestre de 2019, busquei os projetos que se autodeclararam universitários, fazendo o recorte com projetos realizados entre 2016 a 2018 na categoria Cinema e Vídeo. Em seguida, foram considerados apenas os projetos financiados, ressaltando que até antes de 2016 só existia a modalidade “Tudo ou Nada”, isto é, os projetos que não atingiram suas metas eram classificados como “não financiados” e, portanto, não entraram na contagem geral de projetos da categoria. Da busca, chegou-se ao número de 211 (duzentos e onze) projetos.
A segunda etapa consistiu na produção de um questionário enviado a todos os projetos universitários cadastrados no período para entender aspectos qualitativos da experiência com o financiamento coletivo. Contudo, apenas vinte e oito questionários retornaram, número que é pouco expressivo para fins de uma análise qualitativa e inviabiliza uma percepção mais acurada do impacto das campanhas na prática audiovisual dos estudantes e no resultado final, que é a obra.
O que se destacam como características destes projetos, de forma bastante sucinta, a partir dos dados levantados na pesquisa quantitativa, tem-se que:
- Valor: o valor médio estabelecido pelas campanhas foi de R$8.000,00 (oito mil reais) por projeto, aproximadamente, e em sua esmagadora maioria, sem levar em consideração o pagamento da equipe, reforçando a ideia de que nas produções universitárias a prática e o aprendizado advindo dela são os valores mais importantes;
- Finalidade: a maior parte dos projetos se destinava aos Trabalhos de Conclusão de Curso, que é uma etapa obrigatória na formação. Das 211 (duzentas e onze) campanhas hospedadas no site Catarse, 108 (cento e oito), se destinavam a TCCs e 91 (noventa e um) estavam vinculadas às exigências disciplinares ou para a livre experimentação da linguagem;
- Duração: dos projetos universitários levantados na pesquisa, se verifica uma preferência pela produção de curtas-metragens2 ficcionais, podendo apontar duas razões para tal fato. A primeira é que a ficção possui a mesma complexidade de um longa, porém com tempo de execução e custos reduzidos, e a segunda motivação diz respeito às janelas de exibição em festivais universitários, que contemplam filmes de menor duração, até 20 minutos;
- Meta pretendida: apenas 34 (trinta e quatro) projetos dos 211 (16% – dezesseis por cento), conseguiram atingir a meta total pretendida na campanha;
- Geografia (distribuição dos projetos): o levantamento permitiu observar como os projetos universitários estão dispostos pelas cinco regiões brasileiras. Em levantamento anterior (VALIATI, 2013) havia a participação de 30 cidades, com grande concentração no eixo Rio de Janeiro – São Paulo, que detinham também a maior taxa de arrecadação, e não havia nenhuma representação do Norte do País. Na pesquisa atual, todas as regiões brasileiras encontram-se representadas, com a Norte sendo representada por três projetos da UFPA3. Ainda no quesito geográfico, é importante destacar a participação do estado de São Paulo na liderança da quantidade de campanhas hospedadas na plataforma Catarse, podendo ser explicado pelo fato do Estado possuir muitos cursos de formação em audiovisual com enfoque prático, o que gera, em consequência, mais produções;
- Exibição: uma particularidade dos projetos universitários que buscaram o financiamento coletivo na plataforma foi que não utilizaram a internet como janela de difusão das obras produzidas. Dos 211 projetos, apenas 29 (13%) disponibilizaram o conteúdo em plataformas de vídeo, demonstrando que as primeiras janelas ainda consistem em festivais universitários, uma vez que foi possível encontrar os filmes participando deles. A visibilidade em plataformas como YouTube ou Vimeo garantiria lisura da campanha, em certa medida, ao demonstrar que a obra foi de fato concluída.
Em relação à produção audiovisual universitária, percebe-se que ao passo que existe um distanciamento do mercado quanto ao propósito – aprendizado – e ao modo de planejamento – sobretudo pelo orçamento inexistente ou quase inexistente, que necessita se adaptar à diversos fatores – é preciso considerar a produção que vem das universidades como parte da cadeia produtiva, não somente pelo volume das produções, como também pelo papel pedagógico que ela cumpre na formação profissional e na reflexão crítica da linguagem audiovisual, fazendo-a sempre viva.
5. Considerações finais
O relato apresentado diz respeito a uma experiência sensacional de financiamento coletivo em uma universidade pública do norte, que teve como resultado um filme de longa-metragem e o encaminhamento de muitos participantes para o mercado audiovisual pela forma como o trabalho ficou conhecido em Belém, demonstrando a capacitação destes profissionais oriundos de um curso superior de Cinema e Audiovisual. Todavia, como se percebeu no breve relato dos resultados da pesquisa, esse cenário não se repetiu em todos os casos, pois uma campanha de financiamento coletivo demanda muito trabalho e com um retorno nem sempre garantido.
Enquanto pesquisava para a dissertação, deparei-me com duas iniciativas que existiam até antes do período pandêmico e que ainda restam dúvidas a respeito de sua continuidade, voltadas especificamente para o público universitário, que podem inspirar gestores tanto de universidades quanto da administração pública. Uma delas é o Edital Elipse, uma parceria da Secretaria Estadual de Cultura e Economia Criativa do Rio de Janeiro e da Fundação CESGRANRIO, que tem como público discentes de graduação nas áreas de Audiovisual, Cinema, Vídeo, Rádio e TV, Estudos de Mídia, Produção Cultural e Comunicação Social sediadas neste estado; e o Projeto Curtas Universitários, edital de abrangência nacional promovido pela parceria entre o Grupo Globo, o Canal Futura e a Associação Brasileira de Televisão Universitária, que contempla vinte projetos de discentes que optem pela produção de filmes documentários na ocasião do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC).
A partir desta breve reflexão, surge a urgência de as instituições de ensino superior e técnico, amealhando esforços do poder público municipal e estadual, considerarem acerca das especificidades de cada curso em sua grade. Pensarem em políticas que permitam suplantar as dificuldades enfrentadas na realização de produtos audiovisuais, e no caso do ensino em Cinema e Audiovisual, uma saída podem ser os editais e prêmios.
Em minha visão, a existência de editais e prêmios de estímulo voltados ao público universitário, como o PROEX nos cursos relativos ao audiovisual, se constituem em uma excelente maneira de o estudante exercitar aspectos práticos da captação, com os quais irá se deparar quando concluir a graduação e ingressar no mercado. Além de assumir responsabilidade com os prazos, entrega da obra, administração de recursos, participação em circuitos de festivais e até a negociação com janelas de exibição.
Estes prêmios podem ou não estar vinculados a uma disciplina ou professor, mas existe uma urgência dos cursos se estruturarem para investir financeiramente nos seus projetos, pois, cabe lembrar, que os produtos criados nas universidades pertencem também a ela. Acredito que ações como essas que incrementem a produção universitária, em médio e longo prazo, terão produções cada vez mais criativas, não limitadas às circunstâncias vivenciadas atualmente pelos discentes de instituições de ensino.
6. Referências bibliográficas
AGUIAR, Carlos Eduardo Magalhães Vieira de. Crowdfunding no Brasil: um estudo sobre a
plataforma Catarse. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de São Carlos – Centro de Educação e Ciências Humanas – Programa de Pós-Graduação em Imagem e Som. São Carlos, 2016. 183 p.
MARQUES, Aída. Ideias em movimento: produzindo e realizando filmes no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 2007.
RODRIGUES, Chris. O cinema e a produção: para quem gosta, faz ou quer fazer cinema. 3ª Ed. Rio de Janeiro, RJ: Lamparina, 2007.
STEINBERG, Scott; DEMARIA, Rusel. The Crowdfunding Bible: How To Raise Money For Any Startup, Video Game, Or Project. Read.Me, 2012.
VALIATI, Vanessa Amália Dalpizol; TIETZMANN, Roberto. Financiamento coletivo no cinema brasileiro: um panorama a partir da plataforma Catarse. Sessões do Imaginário. Porto Alegre, 2015. v. 20, n. 33. pp. 59-68.
______. ______. Crowdfunding: o financiamento coletivo como mecanismo de fomento à produção audiovisual. INTERCOM, 2012.
VALIATI, Vanessa Amália Dalpizol. Crowdfunding no cinema brasileiro: um estudo sobre o
uso do financiamento coletivo em obras audiovisuais brasileiras de baixo orçamento. Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – Faculdade
de Comunicação Social – Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social, Porto Alegre,
2013. 167 p.
______. Crowdfunding e Indústria Cultural: as novas relações de produção e consumo
baseadas na cultura da participação e no financiamento coletivo. Verso e Reverso, n 64,
jan/abril 2013. Unisinos. pp. 43-49.
7. Notas
- O filme está disponível para visualização no Youtube do Sesc-PA, quando foi selecionado para a Mostra Audiovisual SESC/Aldir Blanc, disponível para visionamento em: https://www.youtube.com/watch?v=NtSxM4xGR78&t=3s, bem como na plataforma AmazôniaFlix, na mostra Égua do Filme, disponível para visualização em: https://amazoniaflix.com.br/degustacao-gratis/mostra-egua-do-filme/filme/52/a-besta-pop. ↩︎
- Sua definição é dada pela Medida Provisória nº 2.228-1, de 2001, que afirma ser o filme de curta-metragem aquele cuja duração é igual ou inferior a quinze minutos (art. 1º, inciso VII). ↩︎
- A Besta Pop, de Artur Tadaiesky, Fillipe Rodrigues e Rafael B. Silva, o documentário Gritos de Agonia, de Márcio Cruz e o videoclipe Deixo a Órbita, com direção de Antônio de Oliveira. ↩︎