Produção de podcast como ferramenta de comunicação alternativa por comunicadores indígenas

1. Introdução

Como podemos encarar o protagonismo de sujeitos indígenas em produções de comunicação no formato podcast, tendo em vista a podosfera enquanto um território conflituoso e em relação contínua com outros conflitos territoriais, como no caso da Amazônia brasileira? 

Neste trabalho, interpretamos duas produções experimentais em formato de podcast produzidas e protagonizadas por comunicadores indígenas. Tais produções foram executadas ao longo de uma oficina de podcast no Iº Encontro Regional de Comunicadores Indígenas de Roraima, que ocorreu em 2020. Este recorte se insere no contexto de uma pesquisa mais ampla que busca compreender negociações entre normatizações e movimentos de subversão na podosfera brasileira como estratégias de emancipação das relações de colonialidade impostas à América Latina. 

Temos como base reflexões teórico-bibliográficas sob a perspectiva de um país colonizado e que mantém relações de assimetrias com suas produções culturais e as produções culturais estrangeiras. Partimos das considerações de Boaventura Santos (2010) sobre um pensamento pós-abissal que reconhece no chamado “sul global”, a inteligibilidade das expressões culturais de seus sujeitos, junto com as considerações de Jesús Martín-Barbero (1987), sobre as construções de identidades periféricas diante da urbanidade globalizada contemporânea. 

Acionamos também Obici (2014) e Boufleur (2013) e seus apontamentos sobre o conceito de gambiarra, e como podemos pensar este fenômeno, a partir de uma perspectiva antropofágica de ressignificações e emancipação dos sujeitos colonizados.  Destas considerações, analisamos os podcasts, apoiados nos conceitos de territorialidade (SAQUET, 2010), de territorialidades antropofágicas (HAESBAERT, MONDARDO, 2010) e territorialidades indígenas (DI FELICE, PEREIRA, 2017). 

Encaramos esta pesquisa a partir da antropofagia enquanto uma filosofia que antecipou um pensamento decolonial, buscando contextualizar a natureza geo-histórica de sua produção, nos instigando a pensá-la como formas de resistência, recriando, pelo hibridismo, outras formas de identificação com o território. 

2. Gambiarra: Territorialidades Estratégicas  

De forma síncrona ao movimento da urbanização, que muitos nos é relevante para pensar as relações de territorialidade na contemporaneidade, emergiu também o conceito de gambiarra. Surge com o crescimento desordenado das cidades e com a instauração dos bairros urbanos periféricos. É o contexto de desenvolvimento urbano e tecnológico que apresenta ao mundo sua face da desigualdade urbana: as moradias precárias, com pouca infraestrutura ou falta de regularização, que abrem margens para práticas ilícitas ou subversivas (OBICI, 2014). 

As definições de gambiarra passam por

extensão de cabo elétrico adaptada com uma lâmpada na extremidade para levar luz a diferentes pontos em uma área extensa. Rosário de lâmpadas para cobrir e aumentar a luminosidade de um local. Relacionada tanto ao uso de extensões, de eletricidade quanto de gás, num contexto urbano; ou ainda como “relação extraconjugal” (OBICI, 2014. p. 5). 

Pensar a própria extensão de cabo elétrico fazendo chegar a luz a uma outra extremidade, insere a gambiarra nesse contexto urbano, em que a eletricidade passa a ser considerada como algo comum e banal, mesmo quando sua ausência indica a necessidade de improvisação (com gambiarras). Metaforicamente é a gambiarra que leva a luz, eletricidade, e por consequência a introdução no mundo urbano capitalista moderno para os bairros periféricos e para as favelas. Ela então coexiste com a energia elétrica, nos processos de subjetivação e significação dos sujeitos. 

Propomos aqui pensar as significações de gambiarra a partir de quatro categorias, tendo como base definições indicadas por Boufleur (2013) e Obici (2014). A primeira delas, prática ilícita, sendo definida como: um meio de tirar vantagem, um hábito irregular, desonesto, marginal, ilegal, fraudulento, malandro. Também na categoria depreciativa de precariedade, como: desleixado, rústico, grosseiro tosco, ‘feito às pressas’, imperfeito, inacabado. 

Outras significações para gambiarra podem ser encontradas relacionando-a com um projeto estético externo, tais como: adaptação, adequação, ajuste, conserto, reparo, remendo. Também pode ser acionada enquanto uma capacidade de ressignificações e qualidade ativa como: improvisação, jeitinho, artimanha, traquinagem, técnica, atitude inventiva, criatividade, solução não convencional e alternativa de um problema, tecnologia popular (BOUFLEUR, 2013; OBICI, 2014). 

Sob uma perspectiva antropofágica, ao qual nos propomos a olhar para as práticas políticas da podosfera, podemos problematizar essas quatro categorias definidas a partir de duas perspectivas. Do olhar de fora, que se localiza do “outro lado da linha abissal” (SANTOS, 2010), este que normatiza as práticas a partir de suas vivências e experiências (por vezes construídas sobre a invisibilização do outro) e subjuga e criminaliza-as quando subvertem essas normatizações. Outra perspectiva é a do sujeito antropófago, aquele que ressignifica o lugar que lhe é dado pelo outro, que aceita o que vem de fora, busca e reconhece no outro seus pontos positivos, e age enquanto um sujeito ativo-devorador, possibilitando outras significações para o lugar comum dado aos dispositivos normalizados do outro lado da linha. 

A antropofagia, cunhada neste contexto de tensionamentos de poder e negociações colonizadoras, pode ser vista como uma ferramenta, “devorar é instigar a re-criação constante, o brotar de um pensamento mítico-poético indomável pelo utilitarismo e a domesticação do pensamento e das identidades euro-colonizadoras” (HAESBAERT, MONDARDO, 2010, p. 28). 

É uma teoria que nos serve para pensar o ethos da cultura brasileira, encarando uma fase da positividade do hibridismo cultural, a partir da atualização de culturas pretéritas. Desta forma, uma sociedade antropofágica busca violar o intocável, romper com os limites, “des-territorializar-se num espaço onde a multiplicidade não é simplesmente um estorvo […], é uma condição de existência e de re-criação não-estabilizadora do novo” (HAESBAERT, MONDARDO, 2010, p. 29). Como nos pontua Roberto Schwarz (1989), este papel ativo mediador entre a cultura local e a assimilação não passiva da cultura do outro, assim como a capacidade de regeneração dos brasileiros, deve ser celebrado enquanto nosso diferencial no que ele considera como o mapa da história contemporânea. 

A gambiarra, neste contexto de desestabilização, de ressignificação e hibridismo, coloca-se também em uma perspectiva antropofágica como estratégia conflitiva de sujeitos periféricos. Duas considerações apontadas por Obici (2014) valem destaque aqui.  Quanto mais a sociedade torna-se dependente da tecnologia, mais propício é o cenário para a criação e consolidação de gambiarras. Se em sua origem, estava relacionada a puxar energia elétrica de um lado para o outro, ela já adquiriu funcionalidade para diversos outros dispositivos, como computadores, celulares, carros e até serviços de internet. Tal característica nos conduz ao segundo destaque: o autor nos indica que as ações ligadas a gambiarra não correspondem a um projeto estético e que no geral emergem em cenários de precariedade. 

Podemos problematizar que, se a subversão não é um projeto, o cenário sob o qual ela é acionada faz a manutenção projetada para este território subalterno. Desta forma podemos pensar seus usos como uma forma de apropriação política frente a impossibilidade de acesso a recursos (OBICI, 2014). Neste ponto a antropofagia propõe a ressignificação da estética periférica com claras projeções políticas da mesma, nos possibilitando trazer o próprio conceito antropofágico para a discussão de produções de podcast na Amazônia junto com a conceituação de gambiarras sonoras. 

A antropofagia de Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral encara o desajuste à norma como algo a ser encorajado e exaltado. O povo brasileiro, feito de gambiarras, não corresponde a ausência estética. Considera a gambiarra como estética própria. Subversiva. Regenerativa. Criativa. Híbrida. E por que não resiliente? Diante da falta de recursos, a gambiarra. Ela indica uma vontade de fazer apesar do modelo hegemônico, apesar da falta de recursos. Ela nos entrega reapropriações e usos do cotidiano, e reivindica espaços e bens que nos foram historicamente negados. Em outras palavras, gambiarra é resistir e fazer prosperar. Apesar de qualquer outro fator negativo. “Num mundo onde a habilidade de invenção e reparação tornam-se meio de sobrevivência e, às vezes, única forma de desfrutar do conforto que tais dispositivos podem oferecer, não há como deixar de pensá-las como práticas políticas” (OBICI, 2014, p. 13).

Mas se o brasileiro é antropófago por vocação, seu apetite não é pelo saciar da fome de sobrevivência, mas sim pelo ritual de devorar o outro. Esse ritual tem suas proximidades com o fazer da gambiarra. Abre-se o outro, corta-lhe os pedaços, os reconfigura de acordo com as qualidades que nos apetece, até que em um dado momento, o outro já não é mais outro, mas elemento híbrido, digerido e deglutido juntamente com o sujeito antropófago. Oroza (2012) nos fala sobre esse processo diante da gambiarra. De tanto abrir os dispositivos, repará-los e fragmentá-los a sua conveniência, deixam de zelar pelos signos, pela unidade e identidade do projeto estético ao qual este pertencia. 

Não encaramos esse desajuste como negativo, como pressupõem as lógicas normatizadoras coloniais pensadas “do outro lado da linha” (SANTOS, 2010). Neste trabalho consideramos esse desajuste a norma como característica de inovação, a possibilidade de tecer outros caminhos, inclusive caminhos críticos às normatizações. Além de pensar “as faltas” presentes nas gambiarras, por que não pensar nas estruturas deficientes que fazem a manutenção de tais ausências? E destas constatações, porque não problematizar os caminhos alternativos que os sujeitos subalternos encontram para superar assimetrias? A gambiarra, como movimento crítico, evidencia a fragilidade de uma mídia supostamente universal (OBICI, 2014). 

Do ponto de vista do podcast, ele surge justamente em contexto de gambiarra. Em 2004, o jornalista Adam Curry percebeu como as deficiências que as normatizações morais, estéticas e tecnológicas que o rádio impunha impediam outras possibilidades de uso da comunicação oral. Foi então que, com o trabalho de fazer uma gambiarra ao adaptar a tecnologia do RSS já existente na época de acordo com sua necessidade, passou a indexar nesse sistema produções de áudio. Assim surgiu a linguagem emergente do podcast, que por muito tempo era conceituada dentro e fora da academia como produções sonoras veiculadas por RSS (SANTOS, 2020).  Porém, a própria definição sofreu alterações à medida em que outras gambiarras foram sendo evocadas pelos usuários, que foram transformando o podcast nesse produto com vocações híbridas (e por que não antropofágicas), por excelência. 

Essa característica híbrida e com potencial gigantesco para gambiarras, evidencia outra propriedade do conceito de gambiarra que nos é muito útil ao estudar podcasts. Trata-se da instabilidade. Presumindo que a gambiarra é uma ação sem projeto, de improviso e da ordem do experimento, “com o que se tem disponível”, nos coloca a prerrogativa de que a qualquer momento a própria gambiarra pode ser desfeita. O próprio Brasil, no início do século XX era pensado desta forma, não promissora por muitos antropólogos europeus, que considerava a Nação como fadada ao colapso e ao fracasso por conta de nossa falta de coesão, desajuste e intensa miscigenação (BOUFLEUR, 2013). 

A emersão de termos como hibridismo, multiculturalismo, transculturação, mestiçagem, cultura migrante, trânsito identitário, entre outras, nos remete a este momento de intensificação da mobilidade e da multiplicidade do espaço que configuram um grande potencial para trocas culturais, indicando outras realidades sócio-espaciais de reinvenções de territorialidades (HAESBAERT, MONDARDO, 2010). 

Bertha Becker (1991) nos propõe pensar as territorialidades como estratégias de poder de diferentes grupos e sujeitos sociais sobre uma região, resultante da relação entre processo coletivo, decisões tecnocráticas, prática social e prática de poder. Desta forma, como podemos encarar o protagonismo de sujeitos indígenas em produções de comunicação no formato podcast como uma estratégia de territorialidade, considerando a podosfera enquanto um território conflituoso em relação contínua com outros conflitos territoriais, como no caso da Amazônia brasileira?

3. Territorialidades Indígenas em Podcast  

Como objeto desse estudo, com a proposta de tensionar territorialidades indígenas em produções de podcast, selecionamos algumas produções amazônicas-roraimenses produzidas por comunicadores indígenas no Iº Encontro Estadual de Comunicadores Indígenas de Roraima, promovido pelo Conselho Indígena de Roraima (CIRR) em janeiro de 2020. As duas produções aqui analisadas foram elaboradas como resultado da oficina de podcast, ministrada pelo autor e que tinha como objetivo apresentar a linguagem como possibilidade de ferramenta de luta em um projeto de emancipação.

A oficina foi a principal atividade da programação do Encontro no dia 30 de janeiro e teve duração de 10 horas, divididas em três unidades: a) apresentação do conceito de podcast, seus usos e potencialidades; b) Ferramentas para a construção de um programa em formato podcast e; c) elaboração dos programas. Estas etapas vislumbraram uma visão ampla da linguagem, dando condições para que os participantes conhecessem todos os processos de produção, passando pela elaboração de uma pauta, até gravação e edição. As unidades A e B foram feitas por todo o grupo de forma simultânea. Durante a unidade C, os comunicadores foram divididos em grupos, para que pudessem produzir as comunicações. Ao final do dia, cada grupo socializou sua produção com os demais. 

Os dois programas de podcast trazidos para interpretação nesse artigo são: “Grupo A – Cultura indígena e o avanço da tecnologia” e “Grupo B – Terceira Idade e Cultura Indígena”. Ambos trazem as territorialidades indígenas para o centro das discussões, buscando explorar as potencialidades da linguagem podcast. Os programas foram compartilhados pelos participantes com outros membros de suas comunidades através do aplicativo WhatsApp e fazem parte do acervo do Conselho Indígena de Roraima e da Agência de Produção de Podcasts da Amazônia – AmaCast, vinculada ao grupo de pesquisa Observatório Cultural da Amazônia e Caribe – AmaZoom. 

Para acionar territorialidades indígenas, compreendemos que as territorialidades estão ligadas a questões de identidade e espacialidade. Pensar identidade nos possibilita tratar as diferentes maneiras como o território se relaciona com continuidades e rupturas histórico-sociais, simbólicas, inerentes de um certo grupo social em determinado lugar. As formas como estas continuidades são agenciadas podem sofrer mudanças, porém são fundamentais para a reprodução das identidades (SAQUET, 2010). 

Desta maneira, o primeiro programa que analisamos (Podcast A) trata justamente da relação da identidade indígena na comunidade Barro, região Surumu, em Roraima, sua relação com a agropecuária e as transformações do processo de manutenção das identidades indígenas roraimenses. O episódio é composto por quatro vozes, sendo elas de Tais Cristina Barbosa, da comunidade Barro, região Surumu (narrador 01); Ricardo Peterson Rodrigues, comunidade Tabalascada, região Serra da Lua (narrador 02); Ronileson Souza Queiróz, comunidade Pedra Branca, região Serra (narrador 03) e Elissiane Henrique Oliveira, da comunidade Barro, região Surumu. 

O podcast é composto por dois momentos. No primeiro, cada um fala sobre suas percepções acerca da manutenção da cultura indígena local em contraste com a tecnologia. Nessa etapa, podemos identificar dois tipos de discursos presentes nas falas dos narradores. O discurso inicial dos narradores contextualiza as temporalidades indígenas contemporâneas, dizendo “que a cultura indígena era mais respeitada antigamente” (narrador 01); “vivia-se mais em coletividade, em comunidade e união” (narrador 02). “Um sempre ajudava o outro” (narrador 03) e “a tecnologia começou a mudar essa união, as comunidades que agora tem wi-fi deixaram um pouco de lado as tradições” (narrador 04). 

Saquet (2010) indica que a sociedade, construindo o território, se relaciona com o ambiente historicamente. O autor define identidade como “código genético local, material e cognitivo: é um produto social, da territorialização, e se constitui no patrimônio territorial de cada lugar, economia, política, cultural e ambientalmente” (2010, p. 148). As identidades são definidas e consolidadas através de línguas, mitos e ritos, religião e pelos atos territorializantes dos atores sociais históricos. Como podemos observar nestes quatro primeiros discursos do podcast A, existe essa preocupação na manutenção das identidades indígenas locais em relação às suas territorialidades e suas formas de expressão contemporâneas. 

Porém, também é importante ressaltar que a identidade, assim como as territorialidades e temporalidades, não é estanque ou essencialista, mas constantemente reconstruída, histórica e coletivamente, e que ganha sua materialidade especialmente através de ações políticas e culturais. Considerando este pensamento, podemos acionar o outro tipo de discurso presente no podcast A, introduzido pelo terceiro narrador, Ronielson, que segue uma linha de conciliação entre costumes antigos e mudanças trazidas pelas novas tecnologias: “A tecnologia também veio ajudar, principalmente quando usamos para os estudos. Podemos ver muitas coisas boas […] O desafio é tentar conciliar a tecnologia e a cultura, mostrar como podemos resgatar a nossa cultura através dela”. 

Observamos que esse discurso entra em sintonia com a proposta da oficina de pensar as novas ferramentas tecnológicas (e no caso específico, da comunicação) relacionadas com formas de preservação, assim como a atualização das territorialidades indígenas locais. Neste ponto do podcast A, os narradores trazem um exemplo de como estes aspectos podem andar juntos nas comunidades locais, citando a Escola do Centro de Formação Indígena, que fica na comunidade Barro, da região Surumu, cuja proposta é apresentar uma educação diferenciada e específica pensando as territorialidades indígenas. Como explica o segundo narrador, Ricardo Peterson Rodrigues, “além do suporte técnico para as comunidades, existe a formação de lideranças, que busca o resgate da identidade dos povos indígenas”. 

É interessante notar que, neste momento, o podcast muda sua dinâmica narrativa. Se na primeira parte os discursos dos narradores eram voltados a um público externo, neste segundo momento a dinâmica assumida é mais interna, parecida com uma roda de conversa, em que os protagonistas perguntam e respondem curiosidades entre si. Aqueles que não frequentaram a Escola do Centro de Formação têm então a curiosidade de saber mais sobre seu funcionamento. O narrador 01 problematiza: “como a diversidade é ensinada? Como levar para casa o que se aprende no centro?” 

Existe também uma demarcação no campo cultural que permeia as falas dos narradores nos últimos minutos do podcast. O narrador 02 então questiona e logo em seguida complementa: “E essa cultura que tu fala é de que tipo? São cultivos, né?! Cultivos de plantas, tipos de solo das diferentes regiões. Saber de tudo isso resgata a cultura indígena, é uma forma de nos fortalecer. Não são todas as escolas que ensinam”. O debate então segue com um detalhamento sobre os cultivos indígenas e como eles são acionados dentro desse ensino específico. 

Podemos interpretar essa demarcação do campo cultural associada ao cultivo agrário e sua relação com a produção do podcast como uma forma em que a natureza passa a ter significações inéditas a partir do desenvolvimento de novas tecnologias. Para isso, compreendemos a comunicação em rede, que permite a constituição de circuitos e interações, que manifestem conexões de várias naturezas, nas quais os sujeitos, os media e o território estão imersos de forma indissociável em uma dimensão que os conecta e envolve, ao tempo que também lhes constitui. Desta forma, “a prática comunicativa não é mais aquela do sujeito com a natureza, mas aquela complexa e interativa entre sujeito-media-circuitos informativos-territorialidades” (DI FELICE, PEREIRA, 2017, p. 27). 

O exercício podcasting, dentro dessa dinâmica, também nos possibilita pensar na multiplicidade que a dimensão território-sujeito se inscreve junto com os media, para além da linguagem escrita. Por meio da ação humana, por muito tempo a natureza esteve submetida à inteligibilidade da sua representação por uma lógica da centralidade da escrita. O ambiente tornou-se texto, realidade conceitual abstrata. A partir da eletricidade e o desenvolvimento de novas tecnologias, como no caso das redes digitais, “a natureza moderna passa a adquirir multiplicidade informativa, gerando a emancipação do território em relação a interpretações conceituais produzidas por suas representações escritas” (DI FELICE, PEREIRA, 2017, p. 25). Com esse processo de eletrificação do território, este transforma-se cada vez mais em interação comunicativa, o que gera, por consequência, alterações na percepção de espaço e as formas de interagir com a natureza (DI FELICE, PEREIRA, 2017). 

Tais considerações encontram reforço nos dizeres finais do podcast A: “Assim percebemos a grande importância da cultura dentro da nossa comunidade. E que a tecnologia possa nos ajudar a divulgar a cultura em si” (narradora 01, Tais Cristina). Desta forma, podemos trazer brevemente as considerações acerca desses processos de centralidade de aspectos da urbanidade, como no caso da eletrificação da natureza. Pensando as relações de acesso e possibilidade de produção, a adaptação de processos podcasting pode se consolidar como estratégia de comunicação, inclusive de significação das territorialidades indígenas, o que nos leva a problematizar: quais as potencialidades do podcast para tratar a multiplicidade da natureza, do território e das territorialidades indígenas? 

Essa multiplicidade narrativa também pode ser colocada em perspectiva quanto a outro traço de territorialidade dos povos indígenas: a língua materna. Este é o assunto central do podcast B, intitulado “Terceira idade e cultura indígena”. O mesmo também segue uma estrutura com quatro narradores, sendo eles: Vanderson da Silva Machado, Wapichana da região Amajari (narrador 01); Carlos Henrique, Macuxi da comunidade Serrinha (narrador 02); Beatriz Silva Bento, Macuxi, comunidade Anta 2 (narrador 03) e; Elivanilda da Silva, Wapichana, comunidade Pium (narrador 04). Durante o podcast, os quatro conversam entre si, no formato “mesa redonda”. Mais uma vez, há a indicação do conflito entre preservação da cultura local e as novas tecnologias de comunicação, mas desta vez com foco nos sujeitos da terceira idade como importantes agentes diante dessa dinâmica. 

A problemática central deste episódio gira também em torno de pensar as novas tecnologias de comunicação como ferramentas, mas não apenas como estratégia de luta e preservação de identidades, como também uma forma de aproximar gerações. “Os idosos são os verdadeiros protagonistas para que as conquistas da era digital pudessem acontecer […] A população indígena hoje é muito jovem e não liga muito para a nossa história, para como conquistamos o que temos hoje”, relata a narradora 03. 

“Aconteceu de alunos não quererem fazer a formatura deles aqui no malocão da comunidade, que é o nosso cartão postal. Em toda a minha vida eu nunca falhei em nenhuma formação que tive aqui dentro da comunidade. Hoje estou na área da medicina, mas nunca falhei com nenhum curso aqui. Toda a minha formação foi aqui dentro”, relata a narradora 04.

É interessante pensar tais problematizações trazidas pelos protagonistas, especialmente quando pensamos em uma abordagem múltipla do território, que reconhece inclusive sobreposições em uma mesma zona. Saquet (2010) define quatro visões sobre o território que nos permitem compreender essas reivindicações. Assim, podemos pensar um território cotidiano, que é local de uma territorialidade imediata, banal e original. É o cotidiano vivido simultânea, territorial e linguísticamente (SAQUET, 2010). Quando a narradora propõe pensar que “o mais importante é a língua materna”, evoca justamente as territorialidades presentes nos cotidianos das comunidades. Como consolidar estratégias políticas a partir do uso cotidiano das línguas maternas? Essa evocação problematiza as relações de poder sócio-históricas dos povos indígenas que tiveram, em vários momentos de conflito com o “povo branco”, esse traço destituído. 

O podcast, a partir de suas potencialidades, pode ser uma ferramenta nessa constituição estratégica de retorno das línguas maternas indígenas em seus cotidianos digitais, além de ser uma ponte entre gerações. Saquet (2010) também define um território das trocas, em que há um fluxo contínuo entre articulações do que é regional, nacional e internacional. Nesta perspectiva, podemos pensar as próprias negociações da língua portuguesa no território brasileiro e nos territórios indígenas, mas também os usos e apropriações do podcast nesses constantes processos de territorialidades. 

Consideramos os territórios de referência, articulados de forma material e imaterial. Não se trata de um território que se habita, mas sim aquele que se habitou, evocado a partir das manifestações culturais ou das narrativas históricas dos povos indígenas. “São imagens que nutrem a identidade atual” (SAQUET, 2010, p. 150). 

A narradora 03 conta um pouco sobre algumas relações entre esse território de referência e problemáticas que devem ser consideradas para que se efetue seu acesso: “Os jovens só nos procuram quando precisam fazer alguma atividade da escola que vale ponto”, e é complementada pela quarta narradora: “Eles falam, ‘não vou na casa daquele vovô não, porque ele é chato, fala muito, não para mais de falar’, mas isso é bom, porque é o passado que está nos ensinando”. 

O narrador 02 então complementa: “Quem mais batalha para que a gente mantenha a língua materna é a 3ª idade […]. São pessoas que não tiveram a oportunidade de conhecer essas novas ferramentas […] e que precisam de ajuda dos mais jovens”. Tal problemática reforça a potencialidade que a prática podcasting pode assumir dentro dessas relações inter-geracionais. Além disso, reforça também os esforços estratégicos dos protagonistas em manter e atualizar este território de referência das territorialidades indígenas locais.

O podcast, então, é encerrado com o depoimento da narradora 04, Elivanilda da Silva, em língua Wapichana, que utiliza o momento de podcasting para forjar o que Saquet (2010) denominou como território sagrado, ligado a aspectos políticos e de religião, a partir dos rituais de identidade localizados em determinados territórios. Ao fazer este gesto de grande simbologia, sua narrativa atualiza traços do próprio podcast, das territorialidades indígenas e torna possível uma ação política como resultado dessa hibridização. 

Como já indicado, ao final da oficina foram reproduzidos os podcast para que todos os participantes pudessem contemplar e comentar. No geral, os comunicadores sentiram-se satisfeitos com suas produções, tanto em âmbito técnico, como em relação ao conteúdo produzido. Nos comentários finais, prevaleceu a interpretação de que a linguagem de podcast pode se configurar enquanto uma ferramenta de comunicação na luta por emancipação dos povos indígenas, assim como refletimos sobre a importância de consolidar espaços de interculturalidade crítica, como no caso da oficina.

 

4. Considerações

Nossas identidades estão se diluindo com a globalização? Pelo contrário, estas podem estar se fortalecendo, em formas tidas como reessencializadas, recriadas pelas próprias mobilidades e as formas mais híbridas, atravessadas por outras, numa amálgama de caráter múltiplo e fronteiriço (HAESBAERT, MONDARDO, 2010). Podemos interpretar o uso das tecnologias e do próprio podcast nas comunidades indígenas enquanto uma diluição de territorialidades indígenas, mas se pensarmos nas concepções de instabilidade das identidades, trazendo ainda uma perspectiva antropofágica, podemos considerar a ressignificação de tecnologias estrangeiras para a atualização das territorialidades indígenas. 

É possível nos territorializarmos pelo movimento? O podcast e a antropofagia nos indicam a possibilidade desse caminho. Territorialidades ditas cada vez mais instáveis, não nos oferecem, como num passado, referenciais estáveis para a construção de nossas identidades  (HAESBAERT, MONDARDO, 2010). Se o podcast é um território em sobreposição, ele também problematiza conflitos identitários ligados a sobreposição de múltiplas territorialidades de seus sujeitos. 

A prática podcasting, observada durante a oficina e nos produtos aqui interpretados, nos indicam que o hibridismo opera de maneira dupla, simultaneamente. Ao mesmo tempo que cria novos espaços, estruturas e cenas, homogeneizando-as, disporiza-as a partir de suas subversões, traduções e transformações (HAESBAERT, MONDARDO, 2010). Se podemos pensar no campo da podosfera contemporânea, relações de poder que institucionalizam algumas práticas normatizando-as, também podemos pensar em negociações, como as encaradas nas territorialidades indígenas expressas nesses exercícios de fazer podcast. 

Em um contexto decolonial, culturalmente tão rico e complexo como a América Latina, o Brasil e os territórios indígenas, o hibridismo não é apenas um instrumento de ruptura com a matriz do colonizador, mas representa também formas de resistência e de reterritorialização, recriando pela mistura, e às vezes pela gambiarra, outras formas de construção e de identificação com o território.

5. Referências bibliográficas

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