Para uma roda de conversa a partir do cinema e da literatura com jovens do sertão do Seridó e os processos de subjetivação dos discursos sobre a seca no nordeste

O cinema tem se ocupado bastante da educação (e por que não dizer se ocupado da escola?) e já há algum tempo as salas de aula dos mais diversos lugares e realidades têm servido de cenário para uma rica cinematografia, assim como os atores sociais que circulam pelos corredores escolares têm se transformado em personagens na tela grande. Teixeira (2010) analisa filmes que têm como tema principal a instituição escolar. A seguir seguem algumas considerações da autora a respeito de duas obras fílmicas que têm a escola como ponto de partida para discutir uma série de outras questões.

Em Pro dia nascer feliz (2006), de João Jardim, a direção tenta abarcar um panorama da educação no Brasil visitando escolas de ensino médio e seus personagens em várias capitais do país. Ainda que para isso tenha que sacrificar boas e pequenas histórias desses mesmos personagens, o que só a intimidade e o close da câmera poderia trazer, o grande trunfo desse documentário é justamente se tratar de obra-documentário, gênero, a princípio, não tão visitado pelo grande público, e por dar mais voz aos alunos do que a seus professores.

Em Entre os muros da escola (2009), de Laurent Cantet, a grande protagonista passa a ser de fato a sala de aula, cenário de conflitos e tensões entre corpo docente e discente. O  filme mostra uma escola francesa que, assim como no Brasil, é miscigenada e heterogênea, sendo a maioria de seus alunos de famílias não-francesas, trazendo à baila a questão da imigração. 

O filme se confunde com a linguagem documental embora seja uma obra de  ficção, mas e quando a escola pensa o cinema? Para falar de uma experiência com o cinema no ensino médio é preciso trazer o conceito de “experiência” em Benjamin (2012) e  contrapor a “experiência” do viajante que corre o mundo com a “experiência” de vida  do velho ancião, figuras tão caras a esse autor. Para o filósofo alemão, “experiência” e “narrativa” são conceitos que estão, epistemologicamente, relacionados: “experiência é todo processo que o indivíduo acessa elementos, mundos e partes de si” (Migliorin, 2015, p. 57).

A lei 13.006/14, de autoria do senador Cristovam Buarque, ainda em 2008, prevê duas horas semanais de filme brasileiro na grade de horário das escolas de Educação Básica. Argumentando a favor da lei, o senador disse em entrevistas que criar “uma massa de cinéfilos”, palavras dele,  seria a única forma de dar liberdade para a indústria cinematográfica, e a escola seria o espaço ideal para isso. 

Isso impõe, necessariamente, um desafio para o espaço escolar em termos de estrutura para que isso aconteça, tanto no que toca a escassez de equipamentos quanto no que toca a própria formação docente nesse sentido. Uma vez que o trabalho com o material fílmico e, de modo geral, com o material audiovisual na sala de aula requer do próprio docente um outro modo de pensar a sua prática, um outro modo ver, um outro modo de olhar a sua própria docência.  

Outra questão que se coloca a partir da 13.006/14 seria a ideia de que o cinema seria bom em si, sem refletir, pelo menos em um primeiro momento, a respeito da qualidade desse material. Quem faria a seleção do material fílmico que chegaria às escolas? Como seria feita a seleção desse material? 

Pensar o cinema na escola, ou mesmo a escola no cinema, é também, em alguma medida, repensar as formas de avaliar esse alunado e refletir sobre a avaliação, o que é obrigatoriamente repensar a própria estrutura escolar já há muito tempo desgastada. Trabalhar com o cinema na educação básica é contribuir também para que esses filmes sejam discutidos, pensados e experimentados de uma outra forma, que não a clássica avaliação escolar com perguntas e respostas fechadas, sem qualquer espaço para a fruição. 

Para Fresquet e Migliorin (2015), a lei estará fadada ao fracasso se, de alguma maneira, favorecer os mesmos recortes, as mesmas estéticas já consolidadas no mercado, rechaçando a diferença e a diversidade, porque nesse sentido corremos o risco de levar às escolas filmes que não interessam aos estudantes. E aí, já é um grifo meu, talvez, mais do que isso, impor ao alunado filmes com as mesmas tomadas, os mesmos recortes do mercado, padronizado, com os quais eles já estão acostumados, tiramos desses mesmos alunos a oportunidade de sentir o estranhamento com o cinema, e com a arte de um modo geral. 

Para Xavier (2008), a relação do cinema com a educação se dá quando esse mesmo cinema se opõe a simplificações, a discursos moralistas, quando se opõe a certo tipo de discurso que insere a própria análise da imagem em um “terreno suspeito” que, de alguma maneira, corrobora com a ideia de que a imagem deve estar sempre sob vigilância, se não do Estado, de determinadas instituições religiosas. 

Por outro lado, ao reivindicar uma autonomia do campo do cinema por conta de saberes e códigos específicos, corre-se o risco de se ter uma discussão fechada em si mesma, como o cinema falando para o próprio cinema. Por conta disso, estaria também fadado ao fracasso, uma vez que, para o autor, a “experiência de cinema”, se é que podemos chamar assim, está presente em toda a experiência fílmica, inclusive nos debates fora da sala escura. Assim como nos debates com quem não domina os códigos específicos do campo, tal como aquele que é merecidamente chamado de cinéfilo, nas “salas de cinema” que, a princípio, não foram feitas nem pensadas para tal objetivo como as salas de aula, por exemplo. 

No trabalho com o cinema na sala de aula é importante sensibilizar o alunado  ao processo que faz com que filmes de duas horas se transformem em um trailer de cinco minutos, personagens que não existiam no livro, por exemplo, mas que no filme ocupam um lugar central. Ao levar todas essas questões para a educação básica, estamos tratando de materialidade e imaterialidade textual nesse segmento. Logo, estamos discutindo com os jovens os fundamentos de uma materialidade e autoria.

A presente pesquisa se dá em um Instituto Federal, na cidade de Caicó, sertão do Rio Grande Norte. Por isso, o recorte da pesquisa é justamente filmes que têm o sertão como cenário, a fim de refletir junto com os jovens a respeito desse espaço, dessa “ invenção” chamada nordeste, dessa invenção chamada sertão. O que tem de invenção e de estereótipo nesse nordeste, nesse sertão que vem representado no cinema e, mais do que isso, quantos nordestes e sertões o cinema é capaz de inventar?

 O que podemos encontrar de comum em todos esses discursos, vozes e imagens (…), é a estratégia da esteriotipização. O discurso da esteriotipização é um discurso assertivo, repetitivo, é uma fala arrogante, uma linguagem que leva a estabilidade acrítica, é fruto de uma voz segura e autossuficiente que se arroga o direito de dizer o que é o outro em poucas palavras. O estereótipo nasce de uma caracterização grosseira e indiscriminada de um grupo estranho, em que as multiplicidades e as diferenças individuais são apagadas (MUNIZ, 2011, p. 30)

Por outro lado, o próprio Muniz (2011) diz que tanto o nordeste quanto o nordestino são frutos desta e, quiçá, de outras relações de poder. Inerentes a um saber e a um poder que, de alguma maneira, a eles corresponde. Ainda segundo o próprio autor, ao insistir num suposto discurso essencialista, como defendia, por exemplo, a escritora Rachel de Queiroz, corre-se o risco de acreditar que, de alguma maneira, o discriminado tem “uma verdade  a ser revelada” (MUNIZ, 2011, p.31). “Não aguento com filme que mostra o sertão com chão rachado”, me disse certa vez A.J. (15 anos) após a exibição do curta Vida Maria (2017), do diretor cearense Márcio Ramos, fazendo referência ao solo gretado, utilizado muitas vezes como representação do sertão no cinema. 

A seguir, a jovem faz uma comparação com o filme Faroeste Caboclo (2013) do diretor René Sampaio, em que, segundo a própria jovem, aparece esse tipo de solo: “seria o cinema padronizando os nossos sertões, visto que estamos falando de regiões do Brasil completamente diferentes nessas duas narrativas?”.

“Só em ela cantar Roberto Carlos já mostra que ela é diferente…”, me diz J.P. comparando a personagem de Cláudia Abreu em A caminho  das nuvens (2003), de Vicente Amorim, e a Maria de Vida Maria. É possível que J.P., mesmo sem saber, já domina o conceito de “Capital Cultural” cunhado por Bourdieu quando ele marca a distinção das duas personagens. E assim o cinema segue construindo e ampliando mundos dentro e fora de nossas salas de aula. 

É importante deixar claro que a cidade de Caicó não possui um cinema, apesar de possuir um festival de cinema, o Curta Caicó, que já vai para sua 5a edição em 2022. Ainda com relação ao premiado curta Vida Maria, do cearense Márcio Ramos, a maioria dos jovens disse mostrar “um sertão de antigamente”, palavras deles, ao mesmo tempo que dizem “mas você ainda encontra”, “ainda tem sim essa realidade…”. E assim,  passado e presente vão meio se misturando na narrativa desses alunos, no discurso desses jovens que ainda que sem querer acabam por evocar a seguinte questão: De que cinema e de que sertão é esse que estamos tratando?

Me recordo de A.J. em uma de nossas conversas, durante uma de nossas aulas remotas. Conversávamos sobre a minha ida, enfim, para Caicó, conhecida como a capital do Seridó: “…aqui tem água também…”, me dizia a certa altura, quando eu explicava a minha necessidade de esportes na água. Eu, o sulista que não sabia nada de nordeste, volta e meia eles colocavam em cheque a minha identidade como nordestino, quando eu dizia que minha vó era de Quixadá, terra de Rachel de Queiroz, no sertão do Ceará, e de que eu havia morado em Fortaleza na primeira infância. 

É importante dizer que havia entre nós uma relação, claramente de poder, como em toda relação entre alunos e professores, mas estava claro também que eu desejava quebrar isso quando propunha uma roda de conversa. Se por um lado eu tinha o poder porque eu era o professor e eles os alunos, por outro é eles que detinham o conhecimento daquele lugar, o que por si só já relativizava meu lugar de professor como detentor do conhecimento, sobretudo quando nossos encontros eram remotos: eles no sertão do Seridó e eu no Rio de Janeiro. 

Um dia sou surpreendido por uma pergunta: “Professor, por que você está no Rio de Janeiro?”. Eu, talvez porque estivesse me sentindo desconfortável com a situação, devolvi a pergunta para eles: “Por que vocês acham que eu estou aqui?”. Alguém responde rapidamente “eu acho que o senhor está fazendo uma experiência!”. Nessa altura nem tinha me dado conta de que a pesquisa já tinha começado, mas eu também não sabia se era exatamente desta pesquisa que eles estavam falando. Eu, talvez porque estivesse constrangido com aquela interpelação, com aquela indagação, prontamente respondi: “Estou aqui esperando as minhas duas doses de vacina”. Talvez essa fosse a forma mais rápida de encerrar aquele assunto.

 ”….Não aguento quando alguém me pergunta se aqui tem água…” , me disse, certa vez, A.J., após a exibição de algumas cenas do filme O auto da Compadecida (2000). E me vem agora à cabeça uma outra aluna, em uma outra situação: C., do curso de design de moda, em uma roda de conversa sobre o livro A bolsa Amarela, de Lygia Bojunga, coloca a seguinte questão: “enquanto não houver a transposição do Rio São Francisco vai haver o problema da seca…”.

Trazendo novamente a fala de A.J., “Não aguento quando alguém pergunta se aqui tem água…”, é curioso pensar como o discurso, enquanto uma enunciação, sobretudo o discurso sobre a seca, é da ordem  do subjetivo. “…É impressionante  que na cidade de todo mundo chove, menos na minha…” me fala Z., depois de vermos uma cena de A caminho das nuvens, mais um filme sobre o sertão, quase que indignada. 

É importante deixar claro, que Z. é uma paulistana cuja família mudou para ficar perto dos avós da menina. O mesmo aconteceu com A.D., também paulistano, e P.A., que é de Balneário Camboriú. E fico me perguntando o porquê dessa migração tão peculiar, “por que não levaram os avós para o sul???”, mas talvez seja eu pensando com uma cabeça de pesquisador do sul. Minha subjetividade já interferindo nesta pesquisa.  

Me recordo do filme Central do Brasil (1998), de Walter Salles, que faz justamente esse movimento: começa na capital, no Rio de Janeiro, e termina no interior  do nordeste, numa cidade muito parecida com Caicó, que em 2021 não chegava a 70 mil habitantes… 

Me recordo também que meus alunos da informática 1M, de quinta de manhã, em 2021.1, quando eu estava ainda no Rio de Janeiro, me relataram nunca terem visto o filme Central do Brasil (1998). Combinamos de ver no último dia de aula, o que não chegou a acontecer. No máximo vimos o compacto de algumas cenas, e eles me disseram que nunca haviam visto o filme inteiro, embora já tenha sido bastante veiculado na TV, palavras deles. 

É preciso então retornar a Muniz (2011) para tentar entender porque “mecanismos de poder e de saber nos incitam a colocarmo-nos sempre no lugar de vítimas, miseráveis física e espiritualmente…” (MUNIZ , 2011, p. 31). O autor segue chamando essa responsabilidade para si e para todos os nordestinos que, de alguma maneira, em suas práticas discursivas acabam por legitimar esse lugar de vítima. Logo, será que cabe também ao cinema pensar essa questão, sobretudo, ao cinema na sala de aula, uma sala de aula do sertão do Rio Grande do Norte?

Entrando em campo…

Pela primeira vez eu encontro meus alunos de informática 2M no campus do IFRN-Caicó, muitos abraços, muita partilha, muita emoção. De repente, uma aluna de cabelos avermelhados chega perto de mim e me diz: “Muito obrigado por ter me apresentado A invenção do nordeste (peça). Nunca tinha pensado no nordestino dessa maneira. Pena que o livro é muito caro”. E daí, eu sigo pensando na força do audiovisual e também em seu alcance. A invenção do nordeste é uma peça que foi filmada, uma peça que fez uma sessão online na pandemia. É quase impossível não seguir pensando na potência do material audiovisual após uma fala dessas. 

Apesar do grupo de teatro Carmin ser norte-rio-grandense, muitos daquela turma nunca foram ao teatro, nem mesmo ao cinema. E se essa mesma peça não tivesse se transformado em um material audiovisual, talvez aquela menina nunca tivesse tido tamanho estranhamento, nunca tivesse se deparado consigo mesma, como ela mesma me disse.

Me recordo que essa mesma aluna me indicou o disco Nordeste Ficção, de Juliana Linhares, dizendo ser uma prima sua distante, que morava no Rio de Janeiro . Pouco antes de vir de vez para Caicó, estive no show dessa artista no RJ, e foi um encontro arrebatador : “Um dia eu sonhei que era um cacto / Desses que eu tenho em casa e eu não cuido / (…) / Vivo intacto / O cacto”. 

Esses versos são parte da letra Nordeste Ficção da artista, que também dá nome ao disco. No decorrer da letra, Linhares (2021), vai reforçando as relações das palavras “Cacto”/intacto, e é importante destacar que o cacto é uma planta bastante comum na região do Seridó, e para quem chega do sudeste, talvez se deparar com um cacto seja um deslumbramento, coisa que só se via em livros na escola… E talvez viver intacto, seja viver em cacto, será? Mais tarde, a  artista também problematiza a sua própria  condição de imigrante: “Olha eu em SP na portaria / Da brecha eu te mando um bom dia / O senhor bate os seus pés, sobe a fumaça / Tragando o mundo eu sigo e você passa”. Percebe-se que o que se traga ali é o mundo, não a fumaça. 

E qualquer semelhança com Sampa de Caetano Veloso segue sendo mera coincidência. “Quando eu te encarei frente a frente não vi o meu rosto / Chamei de mau gosto o que vi, de mau gosto, mau gosto / É que Narciso acha feio o que não é espelho”. Porém, o que Caetano não contava é que o Narciso da vida real se acha mesmo feio no espelho, uma vez que não é fácil se encarar frente a frente, como a própria letra da canção propõe. 

De alguma maneira, a canção de Linhares (2021) dialoga com o livro A invenção do nordeste de Muniz (2011), que gerou a peça de que M. gostou tanto. E ainda, de alguma  maneira, tanto o disco de Linhares (2021), quanto o livro de Muniz (2011) trazem em seus bojos a mesma pergunta que também atravessa toda essa pesquisa: O que é  ficção?. E ainda que ela pareça se esgotar em algum momento, na verdade ela nunca sequer esteve tão pulsante, sobretudo, numa pesquisa sobre a relação da arte, do cinema  com a instituição escolar, que tem como sujeitos jovens da região do Seridó que estão, a todo momento, produzindo discursos sobre si e sobre o mundo. E talvez seja interessante trazer Fernandes (2010), sobretudo no que toca as narrativas de si e seus limites com a ficção:

O uso do termo narrativa foi entendido na tese como tudo que é  expresso em forma de uma história que marca o sujeito ao contar e criar. Tais narrativas podem  acontecer em diferentes linguagens, recursos e suportes, não se restringindo à expressão pela escrita ou pela oralidade, mas acontecendo, também, por meio de imagens e sons.. Nesse sentido, a narrativa reporta-se, principalmente, ao “contar de si”. (FERNANDES, 2010, p.49)                                                              

Nesse sentido, o que seria esse contar de si? Talvez fosse preciso trazer, também, Bakhtin para distinguir o que o autor chama de discurso e o próprio conceito de narrativa que Fernandes (2010) carrega em seu texto. Talvez esse “contar de si” tenha muito mais de ficção do que de qualquer outra coisa, porque ao falar de si, de nós mesmos, também inventamos mundos e espaços, percursos, e quem sabe, esse “contar de si” seja muito mais complexo do que a gente imagina:

Nossa vida atualmente parece ser tecida por um grande tear, em que as diferentes imagens vão, de alguma forma, fazendo parte da nossa experiência, das histórias que contamos uns para os outros. Zaccur (2000) comenta que o narrar se entretece de tal modo à experiência humana que seria impossível situar no tempo e no espaço a origem das narrativas. Em meio a esse contar e recontar de histórias todos formamos e crescemos. As histórias nos falam de valores e crenças que nos ajudam a conhecer e pensar sobre a realidade que nos cerca. (FERNANDES, p. 45, 2010)

Lembrando que pensar ficção, narrativas de si numa pesquisa com crianças e jovens e sua relação com texto imagético é, necessariamente, pensar o próprio conceito de autoria, uma vez que estamos a todo momento produzindo discursos/narrativas, sejam elas ficcionais ou não. O que faz dessa narrativa uma ficção? O que faz dessa imagem uma ficção? E como é forte trabalhar com imagens junto a crianças e jovens que, em alguma medida, já nasceram imersas numa sociedade extremamente imagética. Como é forte trabalhar imagens com crianças e jovens que, como disse certa vez um aluno do Seridó: “já nascemos com um celular na mão”. Logo em seguida, o outro retruca “eu só fui ter celular com 11 anos”. E para compreender todo esse universo, e todo poder que é  trabalhar com imagens nesse contexto, é preciso então trazer Barthes e seu encantamento quase juvenil, quase pueril com a fotografia em seu livro A câmara clara: notas sobre a fotografia

Um dia há muito tempo dei com uma fotografia do último irmão de Napoleão Jerônimo (1852). Eu me disse então com um espanto que jamais pude reduzir “ Vejo os olhos que viram o imperador”. Vez ou outra eu falava desse espanto, mas como ninguém parecia compartilhá-lo, nem mesmo compreendê-lo (a vida é assim, feita a golpes de pequenas solidões) eu o esqueci. Meu interesse pela fotografia adquiriu uma postura mais cultural. Decretei que gostava da foto contra o cinema, do qual todavia eu não chegava a separá-la. Essa questão se fazia interessante. Em relação a fotografia eu era tomado por um desejo “oncológico”, eu queria saber a qualquer preço o que ela era em “em si”. (Barthes, 2011, p.7)

Barthes (2011), a partir de seu encanto pela fotografia, nos leva a pensar, em contrapartida, também no cinema e, sobretudo, no cinema na escola, no cinema na sala de aula. “Decretei que gostava da foto contra o cinema, do qual todavia eu não chegava separá-la” (idem). E certamente essa experiência arrebatadora que Barthes (2011) teve com a fotografia será experimentada pelo professor na sala de aula.

Peço licença, então, para contar uma experiência que tive com meus alunos do integrado da turma informática 2M, na leitura do conto A igreja do diabo, de Machado de Assis. O resultado foi um filme de animação, produzido pelos alunos a partir do texto de Machado e ambientado no sertão do Seridó. É importante deixar claro que eu apenas havia pedido que se tentasse transformar o conto em um cordel, e o que eles me apresentaram foi um cordel animado, um filme de animação. 

Em algum momento, eu desejava produzir filmes sobre o sertão com os alunos, para que eles falassem sobre o lugar que eles vivem, e só assim discutir o conceito de autoria com eles (aliás, autoria seria um conceito ou um processo? Talvez essa também seja uma das perguntas desse trabalho). E eu gostaria que tivesse sido exatamente como foi, que partisse deles. Porém, jamais imaginei  que fosse ter essa resposta tão rápido. Bem, tão interessante quanto falar  do produto final, da animação apresentada pelos alunos, é falar também de como foi esse processo e como algumas questões ficaram ecoando dentro de mim durante um bom tempo, e ainda ecoam, por conta dessa  produção com o alunado, com os jovens. Tão interessante quanto o resultado final foram os desdobramentos dessa experiência-processo.

Ao ler A igreja do diabo, do Machado de Assis, com meus alunos do sertão do Seridó em uma de nossas aulas remotas que já aconteciam desde junho, eles colocaram, quase que de uma forma unânime que o conto A igreja do diabo falava que o ser humano tem dois caminhos: o caminho bom e o ruim. Todos falaram longamente sobre isso: esse tal “livre arbítrio” do ser humano de ser bom ou ruim. Todos quase em unanimidade nas duas turmas imprimiram essa leitura ao conto de Machado, o que, de alguma maneira, me incomodou. Essa mesma leitura me despertou uma certa indignação com relação às igrejas neopentecostais. 

Resta saber se essa era realmente uma leitura do conto do Machado contaminada por uma educação cristã, ou era uma leitura infantil mesmo, pueril, tão própria dessa idade. Quando levantei a possibilidade de não ser exatamente uma escolha, mas de o próprio ser humano carregar dentro de si a maldade e bondade, alguns concordaram comigo. Porém, foi uma péssima abordagem essa. Eu deveria ter perguntado a respeito do assunto: “vocês acham que o  ser humano pode carregar dentro de si a bondade e a maldade ao mesmo tempo?”. Volta  e meia  me pergunto o que me fez levar Machado para meus alunos do sertão do Seridó. A que interessa a eles as peripécias do bruxo do Cosme Velho? Talvez seja porque esse tal bruxo toque naquilo que é humano, ou naquele fio de humanidade que ainda nos resta.

Krenack (2019)  questiona como ao longo de 2, 3 mil anos nós construímos a ideia de humanidade. Levanta inclusive a possibilidade de a tal ideia que temos hoje de humanidade esteja relacionada, de alguma maneira, a várias escolhas erradas que fazemos, inclusive  imprimindo tal leitura ao  uso da violência. Mais adiante ainda questiona: “somos mesmo uma humanidade?”.

O autor chega ainda a comparar a tal humanidade a um clube, ou mesmo a um seleto grupo, e a pergunta que fica é: Por que que insistimos tanto em participar desse clube, ou mesmo desse seleto grupo? Krenack denuncia ainda a falácia da sustentabilidade e em como tudo isso alterou a forma de contar e ouvir histórias, sobretudo, ouvir histórias. Acho que, de alguma forma, desaprendemos a fazê-lo.

Estar com aquela turma me fez refletir sobre o mito da sustentabilidade, inventado pelas corporações para justificar o assalto que fazem à nossa ideia de natureza. Fomos, durante muito tempo, embalados com a história de que somos a humanidade. Enquanto isso – enquanto seu lobo não vem –, fomos nos alienando desse organismo de que somos parte, a Terra, e passamos a pensar que ele é uma coisa e nós outra: a Terra e a humanidade. (KRENACK, p. 10, 2019)

Para finalizar, é preciso trazer Freire (2021) e seu livro A importância do ato de ler, quando o autor diz que “… a leitura do mundo precede a leitura da palavra…”. O que fica daí talvez seja a seguinte pergunta: De que mundo e de que palavra estamos falando? Ainda nesse mesmo trecho, Freire nos diz: “… leitura e realidade se prendem dinamicamente …”.

Só conseguimos inferir aquilo que nos atravessa, só conseguimos atribuir sentido àquilo que, de alguma maneira, já nos faz muito sentido, mesmo antes do próprio ato de ler. Por isso a importância da animação produzida pelos alunos, a partir do texto de Machado, estar  ambientada no sertão, porque quando se fala em letramento, seja ele um letramento digital, imagético ou mesmo o escolar, que não é menos importante do que todos os outros, é preciso partir daquilo que nos é conhecido para só depois ancorar o novo.

Referências bibliográficas 

ASSIS, Machado de. Papéis Avulsos. Rio de Janeiro: Garnier, 2020.

BARBOSA, Rafael; LINHARES, Juliana. Nordeste Ficção. In: LINHARES, Juliana. Nordeste Ficção. Rio de Janeiro, 2021. Web. Faixa 5 (4min 59s).

BARTHES, Roland. A câmara clara: notas sobre a fotografia. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova. Fronteira, 2011. Coleção Fronteira.

BOJUNGA, Lygia. A Bolsa Amarela. Casa Lygia Bojunga, Rio de Janeiro, 2021.

FERNANDES, Adriana Hoffmann. O Cinema e as narrativas de crianças e jovens: reflexões iniciais. Revista Contemporânea de Educação, V. 5, N. 10 (2010): CINEMA E EDUCAÇÃO: UMA RELAÇÃO SOB A HIPÓTESE DA ALTERIDADE (2A PARTE), Rio de Janeiro, 2010.

FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler. 52. ed. São Paulo: Cortez, 2021.

KRENAK, Ailton. Teses para adiar o fim do mundo. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2020.

MIGLIORIN, Cezar. Inevitavelmente cinema: educação, política e mafuá. Rio de. Janeiro, RJ: Azougue Editorial, 2015.

MUNIZ, Durval Jr. A invenção do nordeste. Cortez, São Paulo, 2011.

TEIXEIRA, Inês Assunção de Castro. O que nos retém aqui? O cinema interroga a docência. Coleção Didática e Prática de Ensino: Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2010.

VELOSO, Caetano. Sampa. In: VELOSO, Caetano. Muito (dentro da estrela azulada). São Paulo: Philips, 1978. 1 CD. Faixa 7 (3min 19s).

XAVIER, Ismail. Um cinema que “educa” é um cinema que (nos) faz pensar. Entrevista. Revista Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 33, n. 1, p. 13-20, 2008.

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