A urgência de fazer sem pensar nas condições contrárias impostas de como e porquê

1. Intro

Quanto mais Paulo Freire melhor.

Os cineastas estão por aí desde sempre, assim como os cinéfilos, assim como os músicos de chuveiro e os jogadores de futebol que usam chinelo como trave no famoso ”golzinho”. Eles estavam aí quando existiam locadoras, alugando filmes na sexta-feira só para pular o final de semana e entregar só na segunda, podendo assistir o mesmo filme mais de uma vez, ou algumas. Eles estavam lá acordados até tarde esperando a Tela Quente e se esforçaram para não dormir depois do programa do Jô, ansiosos pela sessão coruja.  Só eles sabem o quanto valia a pena esperar.

Eles (e elas), estavam lá. Ninguém disse à eles que aquilo era uma possibilidade, ninguém disse que era uma profissão, ninguém disse que aquilo dava futuro, ninguém colocou como currículo obrigatório no ensino fundamental ou médio, ninguém moveu uma vírgula para dizer que o cinema existia, que era palpável, que era físico, saudável, quente, acolhedor, ou apenas familiar. Nem mesmo os filmes disseram essas coisas. E como o Mano Brown disse ali em 2018: ”Se em algum momento a comunicação falhou aqui, vai pagar o preço”, E ele ainda completou: ”A  comunicação é a alma”.

2. A alma guarda o que a mente tenta esquecer

O cinema foi privado, não apenas privatizado, foi tratado como um produto, o cinema foi totalmente descaracterizado como algo ligado a cultura e educação. Foi colocado como artigo de luxo junto a seus cursos caríssimos a 3 ou 4 ônibus de distância da casa dos cineastas da sessão coruja.  

Afinal, o músico de chuveiro canta, o poeta de calçada escreve, o jogador de golzinho para a bola quando passa o carro, mas e o cineasta da sessão coruja? Esse se atrasa pra escola porque dormiu tarde e não conseguiu levantar cedo. E acabou reprovado naquela matéria importante, além de levar uma bronca, quando não uma surra dos pais que o proibiram de ficar vendo TV até tarde para o seu próprio bem. Foi lhe tirado tudo. Tudo, menos sua alma. Tudo menos a fofoca na hora do intervalo da escola quando ele conversou com os amigos sobre o filme da sessão coruja, que, para o desespero do sistema, foi um filme nacional à la Cidade de Deus, que consequentemente despertou no cineasta da sessão coruja o ator que grita ”pega a galinha!”, o músico que canta a trilha sonora do filme que ele já escutou em algum lugar, a fotografia que lembra uma rua onde ele mora. Sem TV o cineasta de qualquer forma não dorme cedo. Ele tem ansiedade, ele pensa no filme horas até dormir, e se deixassem, ele assistiria mais 3 filmes só nessa noite.

3. Que Deus me guarde, pois eu sei que ele não é neutro, vigia os rico, mas ama os que vem do gueto

O cinema chegou no cineasta da sessão coruja. Demorou para um caralho, mas chegou. Veio por meios totalmente não convencionais, com metodologias totalmente não convencionais, com equipamentos totalmente não convencionais, em espaços, à princípio, não convencionais, que hoje chegam a  ser tradicionais. Consequentemente os cineastas que vieram desses movimentos são em sua totalidade não convencionais aos padrões industriais do cinema, de certa forma opostos, afrontosos ou mesmo contrários a este sistema padrão. Linguagens diferentes, narrativas diferentes, diversidade e um puta pertencimento do caralho com o que faz.

O cinema chegou onde o pré-vestibular de laje chegou: Na laje, dã!

Filmes feitos com celular, filmes feitos por pessoas pretas, filmes feitos por moradores de periferia, filmes feitos por pessoas LGBTs, festival de filmes de pessoas pretas, festival de filmes de pessoas periféricas, cineclube de mulheres, cineclube projetado em muros, sessão de cinema em bar, cinema como corpo, cinema como vivência, cinema de denúncia, cinema de identidade, cinema experimental, cinema de garagem, cinema de periferia, cinema de quebrada, cinema marginal, cinema de pedreiro, cinema música, cinema feito em qualquer lugar imaginável, cinema na casa do caralho. Cinema.

Finalmente deixando de lado sua pseudo origem industrial e comercial, o cinema deixou de ser produto e passou a ser priorizado como arte.

4. Forrest Gump é mato, eu prefiro contar uma história real.

A gente demorou demais pra entender que o cinema nunca precisou das estruturas impostas pelo capitalismo. Grande prédios, grandes equipamentos, cêenepêjôtas e os caralho a quatro. A gente tem que aprender com os pré-vestibulares que acontecem em lajes. O cinema só precisa chegar na laje e sair da salinha com portas automáticas que travam quando é a vez do pobre entrar.

Eu, por exemplo, como um cineasta de sessão coruja e cinéfilo que alugava filme na sexta-feira pra entregar na segunda, fui me entender como cineasta e fazer um filme já próximo dos meus 20 anos.

Hoje, durante alguns trabalhos como arte-educador no eixo cinematográfico, percebo como a educação falhou, como o cinema não chegou por um detalhe. Nem precisava de tanto esforço, era só ter esbarrado, mas nem isso aconteceu.

Imagina só eu chegando nesses cursos dos ”sescs” da vida, nesses cursos super quadrados com equipamentos caros para um caralho, completamente iniciante tendo que ouvir sobre filmagens em 4k e contra-plongée? Coé, isso não é pra mim. Olha aquela câmera, custa mais que um carro, mano. Sai fora.  Em contrapartida, o primeiro curso periférico que eu fiz foi com professores que não eram professores, com pessoas que faziam sem os equipamentos ditos necessários, sem os recursos ditos necessários, me dizendo que para fazer bastava-se um recurso: A ideia.

Eu, tolinho, ingênuo, principiante da vida pensei: ”É uma cilada essa porra”. E não era. O cinema depois dessa experiência se mostrou uma das artes mais acessíveis dos dias atuais, por mais incrível que possa parecer ler isso em voz alta enquanto escrevo. Mas repito. O cinema é uma das paradas mais acessíveis atualmente. Basta saber diferenciar o cinema arte. Do cinema como indústria. Ou melhor, separe o cinema da indústria, pronto. Sem estranhamento. São coisas totalmente diferentes. Agora sabendo disso, pegue seu telefone, e olhe pra ele como um potencial equipamento para fazer um filme. Terceiro passo, vá filmar. Sem compromisso, só vá filmar! ”Ah, mas eu não tenho um celular”, ok, mas você conhece alguém que tem. E o cinema é coletivo.

Sentiu?

Pois é, foi esse o baque que eu tive quando vi um filme feito com celular exibido numa tela de cinema. Como se fosse ontem, eu pensei: 

É isso que eu quero fazer.

Penso, logo sou. Sou cineasta.

5. Eu vou mandar um salve pra comunidade do outro lado dos muros. As grades nunca vão prender nosso pensamento.

É sobre isso mesmo, mano.

Vamos acabar com todos os padrões cinematográficos impostos. Desde a metodologia ao professor, desde o tipo de cabelo do personagem ao embranquecimento dos dentes. Vamos filmar o dito feio e usar a metodologia chula, vamos quebrar as pernas da linguagem padrão e deixá-la agonizando nas filas de nossas UTIs. Vamos abraçar o desconhecido e fazer disso um descobrimento do revolucionário pós-moderno e chamá-lo de ”Cinema lindo”. Um cinema à moda bangú, um cinema quente, de calor humano, de suor salgado e contato físico à la sarração em baile lotado pré-pandemia. Um cinema vivo e cativante que vai transformar o dito como elite em povão.

Um dia estaremos sentados em um bar e alguém vai dizer que faz cinema.

E vai ser como quem diz que joga futebol ou trabalha com telemarketing. A coisa mais corriqueira vai ser fazer cinema.

Eis a lenda que esse dia já aconteceu. Outros dizem que foi ontem.

6. Referências bibliográficas

Racionais Mc’s

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