Cinema e abordagem triangular na aula de arte

1. Introdução

As disciplinas de arte (artes plásticas ou visuais1) vêm adquirindo o reconhecimento da sua importância na formação cidadã de jovens na educação básica proporcionando a eles “uma situação de aprendizagem conectada com os valores e os modos de produção artística nos meios socioculturais” (BRASIL, 2001, p. 35). Isto vem ocorrendo devido a relevância de pesquisas no campo da arte-educação e elaboração de metodologias como a Abordagem Triangular de Ana Mae Barbosa (2005).

Desenvolvida nos anos 1980, esta abordagem tem como principal objetivo promover o reconhecimento da arte-educação como uma área de pesquisa e possibilitar um aumento de pesquisadores nesta área na qual Ana Mae Barbosa foi a primeira brasileira a obter o título de doutorado. A abordagem tem como base três eixos para serem trabalhados em uma obra de arte em aula: 1) Contextualização da obra, 2) Apreciação artística da obra e 3) Fazer artístico.

Porém, vivencia-se ainda uma predominância em grande parte de dois princípios errôneos que atravancam um desenvolvimento mais pleno das oportunidades que a disciplina comporta. Primeiramente, há as escolas que compreendem a disciplina de artes plásticas como existente em parte para incumbências decorativas de festejos escolares que muitas vezes contêm pouco ou quase nenhum real significado pedagógico ou quaisquer relações com o conteúdo curricular de artes plásticas (BRASIL, 2001; MAK, 2013).

Em segundo lugar, verifica-se também a existência de uma forte crença estética que a arte bela é baseada no realismo do Renascimento, ou que arte tem a necessidade de ser muito bem-feita. Essa crença muitas vezes é refletida na relação dos alunos com a disciplina, ou na maneira como o corpo escolar encara a produção das aulas de artes plásticas.

Os alunos frequentemente alegam que não sabem desenhar quando o docente pede algum trabalho prático na aula de artes plásticas. Essa afirmação e outras parecidas têm implícito o significado da inibição, que pode começar a surgir por volta da época da alfabetização. Muitas podem ser suas razões, mas uma delas é a convicção de que para se desenhar algo bonito há de se ter talento.

“O bom desenho continua associado ao desenho realista. Enquanto isso, aqueles que não desenvolvem tal técnica afastam-se cada vez mais da prática artística” (BONILHA, 2014, p. 56). A criança então inibe o seu fazer artístico – um dos pontos fundamentais da metodologia triangular – por medo de não realizar um trabalho que possa ser admirado ou ter seu mérito reconhecido. É curioso notar que isto ocorre mesmo com a apresentação aos alunos da Arte Moderna, responsável por quebrar os paradigmas de representação realista e eurocêntrica, mas que parece às vezes insuficiente para quebrar o obstáculo do “desenho feio”.

A postura da escola por vezes pode colaborar para a conservação ou surgimento deste sentimento que tolhe a criatividade dos jovens discentes. A exigência de um mural com os “melhores desenhos” ou a difusão para os alunos de um caráter de distração que seria inerente às aulas de artes plásticas são exemplos de como a escola pode contribuir para que os trabalhos práticos da disciplina sejam encarados com temor ou com descaso pelos alunos.

Pode-se afirmar que um dos caminhos a ser utilizado com sucesso pelos docentes de artes plásticas é a multiplicidade do fazer artístico. Não concentrar a prática artística apenas ao desenho no papel e eventualmente a uma pintura em uma cartolina ou até em uma tela. A busca por diversidade dos meios artísticos é fundamental para que o aluno possa desenvolver uma multiplicidade de expressões pessoais, poéticas próprias e para que o ensino dê conta de conceber significados a ele dentro de um mundo de ampla visualidade.

Dentre as diversas possibilidades temos a prática cinematográfica como possível e importante ferramenta pedagógica e ainda pouco explorada seja nas aulas de artes plásticas, ou nas aulas de outras disciplinas em geral. Aponta-se como a realização de um filme pode ser utilizado como um fazer artístico dentro da abordagem triangular de forma a valorizar a criatividade, o trabalho em grupo, o respeito e o reconhecimento da produção artística da turma e da comunidade escolar.

2. Metodologia

Propõe-se a minuciar o uso da prática cinematográfica como fazer artístico na aula de artes plásticas a partir de maior desdobramento de dois exemplos de prática didática. Ambos foram realizados sob a proposta pedagógica de “conduzir uma turma a realizar um filme, onde ela precisa dominar a tecnologia audiovisual e planejar sua própria produção” (BUGARIN, 2020, p. 2).

Para tanto, utiliza-se o método de pesquisa exploratório a fim de aprofundar a análise de uma prática específica a partir do contexto destes dois casos em particular. Com o intuito de interpretar as origens e as consequências das práticas estudadas serão levantadas hipóteses baseadas em bibliografia levantada e familiaridade com os casos em si (GIL, 2007).

O método autobiográfico será utilizado com o intuito de associar de forma mais pertinente os dados da pesquisa com as práticas educativas, e seus pressupostos e práticas culturais que lidam com a diferença de forma “constitutiva, intrínseca às práticas educativas” (CANDAU, 2011, p. 241) presentes no “chão da escola” (id. ibid.).

A investigação autobiográfica é importante pois permite uma reflexão mais aprofundada de como empregar a prática pedagógica proposta aqui. Pode-se através deste método dialogar de forma mais eficiente com a essência do conhecimento de determinadas ações didáticas, suas possibilidades e resultados. Pode-se “colocar uma ênfase particular naquilo sobre o que nunca poderemos saber completamente – mesmo quando nos engajamos em tentativas de entender a natureza da experiência educacional de alguém” (MILLER, 2014, p. 2046).

3. Desenvolvimento

A abordagem triangular é extremamente importante para o docente de artes plásticas que busca fomentar o potencial criativo, crítico e emancipatório dos alunos. A aplicação de cada etapa de forma significativa proporciona que o ensino de artes plásticas produza nos alunos o desenvolvimento de uma sensibilidade pessoal crítica e artística.

Ao elaborar esta abordagem, Ana Mae Barbosa apresentou a importância de os alunos terem contato com imagens artísticas, retificando o fundamento da educação em arte difundida pelo Modernismo nos anos 1920 de que a criança não deveria ter contato com imagens artísticas para não “contaminar” sua criatividade e estética infantil. Via-se este contato como um desrespeito a espontaneidade criativa dos alunos. 

A abordagem também foi importante para quebrar a concepção de Desenho Geométrico como conteúdo da aula de artes plásticas, originário dos anos 1870 e que perdurava ainda nos anos 1970 no Brasil (BARBOSA, 2006). A abordagem integra o conhecimento do aluno a aspectos do seu cotidiano à sua formação artística e social, valorizando o significado de seu aprendizado de arte por apresentar imagens do dia a dia (como publicitárias e jornalísticas) em forma conjunta com imagens da história da arte.

A integração do fazer artístico com a contextualização e a apreciação baseia-se na ideia de que para haver produção artística de qualidade é necessário que se desenvolva uma alta capacidade do público de entender esta arte. É importante que a sociedade valorize, compreenda e absorva de forma significativa as questões apresentadas pelos artistas. Este cenário coincide com diversas épocas de importância artística da história da humanidade como o Renascimento. “A todos os momentos civilizatórios áureos da história da humanidade coincidem extraordinários desenvolvimentos artísticos” (BARBOSA, 2005, p. XIII).

Neste contexto podemos apontar a importância de expor os alunos tanto a imagens da história da arte, como imagens contemporâneas de entretenimento, que remetem à utilização de filmes como complemento didático. A utilização de filmes em classe como ferramenta pedagógica pode ser de grande valia para professores de artes plásticas, ao levar aos alunos uma tecnologia/entretenimento mais próximos de seu cotidiano e seus interesses. A integração dos conteúdos curriculares de artes plásticas com o conhecimento e alteridade dos alunos contribui de forma mais significativa para uma formação social e cultural deles.

A etapa do fazer artístico é o momento apropriado para trabalhar as diferenças na sala de aula, pois ela possibilita que o docente dê atenção a determinadas especificidades individuais de cada aluno, seja da sua personalidade, tendências artísticas e o próprio modo do fazer artístico. Um projeto de prática artística necessita desenvolver um diálogo de troca com os alunos para que seja compreendida a originalidade artística de cada um, que refletirá todo o seu perfil emocional e social (CANDAU, 2011).

Dessa forma pode-se compreender o universo de cada aluno e apresentar a turma que o principal objetivo não é o domínio de técnicas artísticas, mas sim o domínio de uma linguagem própria que para cada jovem discente propague-se como uma prática cultural significativa (CARVALHO; CAROLINO, 2010).

“O professor deve aproveitar os fenômenos que ocorrem na sala de aula durante o trabalho em grupo (…) não só para a aprendizagem de conteúdos, mas para o desenvolvimento de competências necessárias para a própria vida” (MARTINS, 2011, p. 14). Fazer um filme é um tipo de fazer artístico que pode ser utilizado em sala de forma a dividir a turma em vários grupos ou apenas um grande grupo que englobe toda a turma (dependendo do número de alunos). Atividades pedagógicas em grupo são benéficas para os alunos por promover uma real troca de conhecimentos de forma consensual e heterogênea, por meio de uma socialização que não se limita a ser favorável ao aprendizado, mas a formação social e suas vidas na sociedade em si.

No caso específico da prática cinematográfica pode-se promover através deste tipo de atividade o incentivo ao trabalho coletivo, onde cada um terá que fazer sua parte e pela natureza do fazer fílmico, haverá tarefas bem distintas. Cada uma se adequará da melhor forma a personalidade, aptidões e interesses de cada aluno. O processo desse fazer artístico pode propagar conhecimentos normalmente ignorados pela escola, mas que podem ser evidenciados pela necessidade do envolvimento dos alunos em todo processo de realização (BERGALA, 2008).

Como exatamente fazer um filme pode inserir-se no fazer artístico da abordagem triangular? Pode-se ilustrar isto através de duas práticas ocorridas em uma escola municipal na cidade do Rio de Janeiro, no bairro da Gávea, com alunos do 9º ano do Ensino Fundamental II. Ambas ocorreram no ano de 2016 e foram concebidas de forma interdisciplinar com as disciplinas de artes plásticas e de inglês. 

Após a utilização da abordagem triangular em dois temas da aula de artes plásticas: Surrealismo e Abstracionismo, foi planejado em ambos os casos um fazer artístico que contemplaria um meio pouco usado em sala de aula: O meio audiovisual.

Como o cinema é um meio que propicia uma nova forma de relação dos alunos com o conhecimento abordado por meio da contemplação dos significados das imagens produzidas pelos filmes, pode-se aplicar o fazer cinematográfico como uma forma de fazer artístico reflexivo discutindo os significados das imagens produzidas pelos alunos e os conhecimentos gerados a partir do uso desta linguagem artística. “A utilização do cinema na educação vai além da mera ilustração de uma obra literária ou da representação documental de determinado tema” (NICÁCIO, 2012, p. 2).

No caso específico da aula de artes plásticas, os alunos podem vivenciar de forma mais expressiva na realização de um filme a experimentação com as caraterísticas estéticas de um tema da disciplina, do que na execução de uma releitura de uma obra plástica em desenho ou pintura.

No primeiro exemplo, os alunos realizaram um filme que abordou as características estéticas do movimento artístico do Surrealismo. No mesmo período a professora de inglês estava tratando com a mesma turma sobre conjugações de verbos e pensava em fazer um trabalho didático que envolvesse o uso de alguma música em inglês. O professor de artes plásticas propôs então uma atividade cinematográfica que seria interdisciplinar e abordaria ambas temáticas das disciplinas.

Percebeu-se que os alunos poderiam aprofundar-se de forma mais entusiasmada no conteúdo dos tempos verbais em inglês, enquanto simultaneamente eles estariam apresentando o que aprenderam em artes. Notou-se que o distanciamento de um padrão de apresentação de trabalho na frente da turma, algo não muito bem visto por muitos alunos em geral, entusiasmou-os a produzir algo em conjunto, onde eles eram protagonistas e produtores do seu conhecimento.

Levando em conta que o cinema é uma linguagem artística, os alunos estão utilizando-o na releitura de outra linguagem artística ao se colocarem como agentes criadores. Eles aprimoram ideias e conceitos estéticos que dialogam com os mesmos conceitos dos artistas ou movimentos que eles abordaram, aprimorando seus significados (MIGLIORIN; PIPANO, 2019).

Fazer um filme também pode contribuir para a perda da inibição artística citada anteriormente por uma característica mais livre do julgamento estético do “desenho bonito/feio”. Pode-se comparar essa maior liberdade no que diz respeito a formalidade de uma atividade pedagógica aos objetivos insurgentes do Surrealismo.

O Surrealismo foi um movimento artístico que propôs a libertação da lógica e da razão renascentistas frisando a arte do inconsciente caracterizada por uma oposição a uma contenção dos instintos. Para os artistas deste movimento uma excessiva obediência à razão industrial nada mais é que uma forma de poder (ARGAN, 2010).

Poder este que pode ser personificado no ambiente escolar na figura do currículo que promove uma educação de controle baseado em uma hierarquia de conhecimentos e suas “utilidades” e avaliações que não avaliam o processo de aprendizado como um todo (MILLER, 2014).

A liberdade do espectador para ponderar o significado da contemplação de uma pintura de forma emocional já vinha desde o Romantismo no século XVIII. A emancipação dos alunos ao tratar conteúdos estéticos com a experiência do conhecimento adquirido gera no filme o que Gumbrecht (2011) associa a recepção estética de uma imagem: A geração de uma feição do sublime: O stimmung, onde os espectadores desse filme (provavelmente outros alunos) podem ressignificar as interpretações já ajustadas a uma consonância dos sentidos e percepções dos alunos-autores.

A turma pesquisou com a professora de inglês uma música que contivesse verbos próprios para o aprendizado da disciplina e que tivesse alguma proximidade com a estética surrealista. Os alunos chegaram a música “White Rabbit” da banda americana Jefferson Airplane, grupo musical surgido nos anos 1960 no auge do movimento hippie, representante de uma música que envolvia surrealismo com psicodelia e política em meio a uma década que ficou marcada pelo surgimento de diversas contraculturas (BURKE, 2010).

A letra faz diversas citações a imagens do inconsciente e a obra “Alice no país das maravilhas” de Lewis Carroll2, que inclusive foi ilustrado pelo pintor surrealista Salvador Dalí em 1969. Ilustrações que realizadas com base em técnicas surrealistas como o desenho automático e de influência psicanalítica retrataram o conteúdo também surreal da obra de Carroll como uma amálgama de ideias e conceitos de imagens, assim como fariam os alunos no filme da turma (RANIERI, 2017).

O Surrealismo surge em uma época em que o conceito de racionalidade estava sendo questionado. Seu manifesto buscou revelar a predisposição de caracterizar representações além do consciente humano: O inconsciente. O Stimmung do Surrealismo agrega características autobiográficas com representações psicanalíticas enquanto desmistifica e profana a aura das imagens (GUMBRECHT, 2011).

Os alunos experimentaram uma desmitificação da estética surrealista ao realizarem suas interpretações e trazerem significados pessoais que estarão em constante renovação perceptiva3. Os alunos estão autogerando seu conhecimento e reconhecendo suas capacidades como produtores de cultura do seu próprio meio em relação aos conhecimentos curriculares (NICÁCIO, 2012; SALES; AXER, 2014).

No segundo exemplo, o professor de artes plásticas mais uma vez propôs uma atividade interdisciplinar com a professora de inglês, dessa vez abordando as características estéticas do Abstracionismo.

A partir do Renascimento, os artistas passaram a expressar de forma mais concisa suas personalidades, de forma determinadora na elaboração de particularidades de um quadro. A partir daí a individualidade dos artistas foi prosperando veementemente. A partir do início da Arte Moderna, a busca intensa de novas e diferentes formas de representação e percepção acelerou bastante o tempo de transformação dos cânones artísticos até atingir o Abstracionismo (LYNTON, 2000).

O Abstracionismo consistiu no completo afastamento do tema pelos artistas. A expressividade da composição estaria contida nos significados das cores, formas, linhas e texturas. A aspiração era de criar uma linguagem pictórica que possuísse um efeito perceptivo sobre o espectador resoluto absolutamente em si, tal como a música, cuja mensagem acomoda o essencial. Dentro deste estilo, Kandinsky desenvolveu uma arte sem tema, potencializando a força expressiva das cores e das formas. Na sua visão o mais profundo sentido da arte vinha do lado espiritual do artista e do espectador. Assim, sua ligação com a música levou-o a uma incessante pesquisa pela representação visual dela (id. ibid.).

Para Kandinsky, a superfície plana de uma folha ou uma tela é a extensão ilimitada da criatividade da experimentação, mas uma experimentação rigorosa que provém de um planejamento prévio para obter determinadas percepções. Suas criações abstratas apresentam um complexo sistema de representações que busca integrar a razão e a emoção (ARGAN, 2010).

O fazer artístico da abordagem triangular como por exemplo no caso da releitura está longe de ser uma imitação da obra original e sua estética. Ela abrange o domínio das significações pessoais e proporciona que o aluno construa seu conhecimento de forma criativa e significante. “A produção de arte faz a criança pensar inteligentemente acerca da criação de imagens visuais” (BARBOSA, 2005, p. 34).

Uma trivial cópia de uma obra de arte ou de um estilo artístico é vazia de significados. Pois cada obra, cada movimento artístico e cada marco artístico é produto de sua era. A releitura de uma obra cria uma ligação de quem a está realizando (o aluno) à essência original dela. O ato do fazer artístico é como uma afluência de suntuoso autoconhecimento ligado ao seu espiritual interior (KANDINSKY, 1996).

Parecia ser o caminho mais lógico então que a atividade trabalhasse a representação visual da música através da abstração.  A professora de inglês procurou com os alunos uma música que tivesse uma melodia agradável e uma letra que pudesse ser explorada em seu conteúdo disciplinar. O gosto pessoal dos alunos também foi levado em conta, afinal em um trabalho dessa natureza seria importante que os alunos tivessem uma identificação com o assunto do trabalho em questão. A música escolhida por eles foi “Set fire to the rain”, da cantora britânica Adele.

Em atividade anterior, o professor de artes plásticas já havia realizado com os alunos atividades de representação visual de músicas instrumentais, onde os alunos de olhos fechados guiavam suas mãos de forma consonante com o ritmo e a melodia das músicas. Esta atividade ocorreu de forma individual.

Na prática estudada neste trabalho a turma foi dividida em alguns grupos. Cada um recebeu uma cartolina onde puderam expressar suas interpretações visuais da música. Após isso os alunos tiraram fotos das cartolinas e transmitiram as imagens para um notebook da sala de informática da escola.

Teve início então a parte mais trabalhosa da atividade: Os alunos desfragmentaram as composições abstratas em um simples programa de edição de imagem (Microsoft Paint4) para combiná-las com o andamento do ritmo e da melodia da canção em um simples programa de edição (Windows Movie Maker5). O resultado foi um vídeo que evidencia como “a turma desenvolveu um conhecimento acerca de um conteúdo curricular, de forma mais significativa: o resultado de sua prática cultural e social” (BUGARIN, 2020, p. 10).

4. Resultados e discussão

Durante o processo da prática cinematográfica há todo um percurso a ser trilhado desde a elaboração, passando pela realização e edição até a exibição. Esta última fase é considerada de extrema importância por Bergala (2008) em sua Pedagogia da criação cinematográfica. Para o autor, a exposição do trabalho final para a comunidade escolar enfatiza a escola e a sala de aula como um lugar de troca e socialização.

A importância da mediação do professor durante todas estas etapas é fundamental para que haja um maior incentivo e significado do currículo para os alunos. O docente de artes plásticas pode estimular as interações e vivências em grupo de forma a ressignificar aspectos artísticos através de uma poética pessoal.

É essencial que durante a mediação do professor, o mesmo não atue como dono do conhecimento colocado em pauta e sim como um orientador que estimule o processo de produção de sentido do aprendizado com ênfase na alteridade dos alunos. Este sentido não pode ser precisamente determinado ou mensurado de acordo com um “tempo escolar “de bimestres ou até de ano letivo. Pois os sentidos das práticas culturais dos alunos podem assumir particularidades distintas e ambíguas de forma pessoal dentro de uma perspectiva cultural. “Práticas e ações de autoria, principalmente as (re)criadas no/com o coletivo, têm posto como desafio para pensarmos tais articulações dos sujeitos enquanto ressignificação contínua dos processos de produção cultural” (SALES; AXER, 2014, p. 552).

Por estarmos analisando uma prática cinematográfica inerente ao fazer artístico na aula de artes plásticas, podemos nos afastar um pouco da típica avaliação conteudista. Porém não se trata apenas de analisar a estética ou as significações do filme, pois o próprio processo de realização confunde-se com as percepções acerca dos significados culturais imbuídos na experiência poética e afetiva do aprendizado (MIGLIORIN; PIPANO, 2019).

O sentido de um filme realizado em sala de aula e exibido na escola é acima de qualquer sentido pedagógico, uma obra de arte. Este aspecto é ainda ressaltado pelo fato de ser a realização de uma atividade da aula de artes plásticas. Apesar disto (e também por isso) a realização de um filme na aula de artes plásticas cria um objeto ambivalente: o resultado de uma prática pedagógica e uma produção artística e cultural significativa e reflexiva.

Ao realizar filmes que dialogam com a estética pictórica da história da arte e seus conceitos, os alunos estão criando novos modos de visualizar e de sentir. Estão desenvolvendo novos dispositivos imagéticos de aprendizado que carregam um hibridismo de uma forma de espetáculo de experiência visual (PARENTE, 1999).

Segundo Philippe-Alain Michaud (2013), filmes são uma ferramenta instrutiva e extremamente lúdica. A possibilidade de utilizar recursos que ao mesmo tempo ensinem acompanhados de um aspecto mais inebriante, leva a um maior interesse ao invés de uma visão de não pertencimento ao seu universo. Para este autor, um filme exibido fora de um cinema, em um museu ou uma sala de aula, por exemplo, transforma um espetáculo em uma forma de pensamento. Ele vê no cinema a importância da reprodução de pinturas pela apropriação que o cinema faz de elementos pictóricos em sua composição.

Apesar de existirem grandes possibilidades de um planejamento inicial deste tipo de projeto ter que ser alterado antes ou durante o processo, de forma alguma implica que os alunos farão qualquer coisa que eles queiram de forma a abandonar os objetivos introdutórios. É apropriado que a mediação docente norteie os alunos e também o seu próprio planejamento para que se espere todo e qualquer contratempo (BUGARIN, 2020).

5. Considerações finais

A prática cinematográfica pode vir a ser uma importante ferramenta de inovação do fazer artístico nas aulas de artes plásticas de forma a enriquecer a pluralidade de linguagens artísticas e as possibilidades proporcionadas pela sua natureza como prática cultural.

Trabalhar com os alunos a ressignificação de uma linguagem artística através do domínio de uma tecnologia de outra linguagem visual pode fomentar de forma extremamente relevante a curiosidade artística e poética dos alunos. 

Os filmes produzidos nestas circunstâncias podem servir de material pedagógico para outros alunos desenvolverem uma apreciação artística própria através de uma constante renovação perceptiva que está sempre criando novos significados e saberes. Não há como mensurar todas as possibilidades contidas em uma prática desta natureza seja na vida dos alunos, no planejamento curricular do professor ou na comunidade escolar.

Este trabalho resume os primeiros passos para desenvolver-se uma metodologia para docentes de artes plásticas na Educação Básica inspirada na abordagem triangular de Ana Mae Barbosa, que inclua a prática cinematográfica no fazer artístico. Este é um dos objetivos do projeto de mestrado em andamento do autor, no Programa de Pós-Graduação em Cinema e Audiovisual da Universidade Federal Fluminense.

Existem inúmeras possibilidades e dificuldades envolvendo este tipo de atividade. Mas é fundamental que o professor de artes plásticas que deseje utilizar este tipo de atividade pedagógica como produção artística dos alunos busque adequá-la a todos os pormenores como as disponibilidades de equipamento e local apropriados na escola, a visão/apoio da direção ou coordenação de disciplina, autorização de imagem dos responsáveis6 e ter sempre em mente que o planejamento inicial terá grandes chances de ter que ser mudado, às vezes de forma extremamente radical. O inesperado é sempre inerente a este tipo de prática.

6. Referências bibliográficas

ARGAN, G. C. Arte Moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

BARBOSA, A. M. Arte-educação no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 2006.

_______________. A imagem no ensino da arte. São Paulo: Perspectiva, 2005.

BERGALA, A. A hipótese-cinema – Pequeno tratado de transmissão do cinema dentro e fora da escola. Rio de Janeiro: Booklink / CINEAD-LISE-FE/UFRJ, 2008.

BONILHA, C. L. Onde vivem os monstros: Traçando linhas entre cinema, história da arte e expressão artística. Matéria-Prima, v. 2, n. 4, p. 55 – 64, 2014.

BRASIL, Ministério da Educação, Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: Arte. Brasília: Ministério da Educação, 2001.

BUGARIN, L. D. Práticas cinematográficas na sala de aula – uma abordagem midiática e interdisciplinar da cultura na educação. In: CASTRO, P. A. Avaliação: Processos e Políticas – Volume 03. Campina Grande: Realize Editora, 2020.

BURKE, P. Tear down the walls: Jefferson Airplane, race, and revolutionary rhetoric in 1960s rock. Popular Music, Cambridge, v. 29, n. 1, p. 61–79, 2010.

CANDAU, V. M. Diferenças culturais, cotidiano escolar e práticas pedagógicas. Currículo sem Fronteiras, Rio de Janeiro, v. 11, n.2, p. 240-255, 2011.

CARVALHO, L. M.; CAROLINO, J. A. Abordagem triangular e as estratégias de um educador social. In: BARBOSA, A. M.; CUNHA, F. P. (orgs.) A abordagem triangular no ensino das artes e culturas visuais. São Paulo: Cortez Editora, 2010.

GIL, A. C. Como elaborar projetos de pesquisa. São Paulo: Atlas, 2007.

GUMBRECHT, H. U. Atmosfera, ambiência, Stimmung – Sobre um potencial oculto da literatura. Rio de Janeiro: Contraponto, 2011.

KANDINSKY, W. Do espiritual na arte. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

LYNTON, N. Expressionismo. In: STANGOS, N. (org.) Conceitos da Arte Moderna. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2000.

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MIGLIORIN, C.; PIPANO, I. Cinema de brincar. Belo Horizonte: Relicário edições, 2019.

MILLER, J. L. Teorização do currículo como antídoto contra/na cultura da testagem. Revista e-Curriculum, São Paulo, v. 12, n. 03, p. 2043 – 2063, out./dez. 2014.

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PARENTE, A. A arte do observador. Revista FAMECOS, Porto Alegre, v. 6, n. 11, p. 124 – 129, dez. 1999.

RANIERI, R. A versão surrealista de Dalí para Alice no País das Maravilhas! Formiga Elétrica, 14 de jun. 2017. Disponível em <https://formigaeletrica.com.br/livros/alice-surrealista/>. Acesso em: 26 de nov. 2019.SALES, R.; AXER, B. Currículo e Tecnologia: reconfigurando práticas culturais através do katybook. Inter-Ação, Goiânia, v. 39, n.3, p. 545-556, 2014.

7. Notas

  1. A nomenclatura da disciplina de arte pode variar de acordo com cada instituição ou rede de educação: artes visuais, artes plásticas, artes, entre outros. Este trabalho escolhe por utilizar o termo “artes plásticas” pelo fato do autor atualmente trabalhar em uma rede de ensino que usa esta nomenclatura. ↩︎
  2. Um dos pintores mais notórios do movimento surrealista. ↩︎
  3. Pode-se citar como exemplo desta renovação o programa “Escola, Câmera, Ação!”, realizado pela Multirio, canal de televisão que integra a Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro (SME-RJ). O programa apresenta alunos da rede municipal de ensino do Rio de Janeiro falando sobre suas impressões a respeito de produções audiovisuais realizadas por alunos de outras escolas da mesma rede. Há uma variedade de filmes e de variadas datas. Portanto, uma produção realizada em 2010 pode ser exibida a uma turma em 2019, por exemplo. O programa já tem três temporadas e pode ser visto no canal Multirio (canal 26 do serviço de televisão por assinatura Claro-NET no município do Rio de Janeiro, RJ), no website da Multirio (<http://www.multirio.rj.gov.br/assista/>) e no canal de YouTube da Multirio (<https://www.youtube.com/user/MULTIRIOSME>). ↩︎
  4. Software utilizado para a criação de desenhos simples e também para a edição de imagens. Lançado em 1985, era incluso no sistema do Windows. Foi descontinuado pela Microsoft em 24 de julho de 2017. ↩︎
  5. Software de edição de vídeos. Lançado em 2000, era incluso no sistema do Windows. Foi descontinuado pela Microsoft em 10 de janeiro de 2017. ↩︎
  6. No caso de se o professor ou a escola quiserem enviar o filme para algum festival ou mostra de filmes escolares. ↩︎

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