1. Introdução
Em 2014, quando fui contratado para lecionar em um curso de ensino superior tecnológico em Audiovisual, foram-me atribuídas também as disciplinas relacionadas à rádio, televisão e cinema no bacharelado em Publicidade e Propaganda. As disciplinas abrangiam os dois últimos anos do curso e, ao contrário da que é ministrada no ano final – cujo caráter prático visa aplicar os conhecimentos adquiridos num projeto experimental que conceba uma campanha publicitária –, as matérias do terceiro ano tem uma ementa mais teórica. Nesse sentido, os conteúdos programáticos da disciplina de produção publicitária em cinema abrangem não só a discussão do cinema publicitário, mas uma introdução à linguagem cinematográfica, além de um panorama da História do cinema.
É uma disciplina desafiadora, pois a grande quantidade de conteúdos tem que ser planejada para caber em duas horas/aulas semanais, além de propor uma trajetória orgânica, que correlacione História e linguagem cinematográfica para, por fim, desembocar na discussão do cinema publicitário. O começo nessas disciplinas eram também meus primeiros anos de docência, assim como o início de uma relação com o campo da publicidade; por isso, optei, a princípio, por ministrar esses conteúdos da mesma maneira como trabalho nos cursos de audiovisual: em aulas expositivas participativas, intercalando cenas/trechos de filmes (e outros audiovisuais) com debates.
Alguns desafios se consolidaram como constantes ao longo desses primeiros anos, mas os principais sempre orbitaram ao redor de duas questões: o recorte de conteúdo a ser feito e o diálogo com alunos que, muitas vezes, não se interessam pelo cinema, sobretudo pela parte histórica. É sobre esta última questão que este relato se debruça com maior afinco, partindo do problema “como fazer o estudante de publicidade se interessar pela História e linguagem cinematográfica?” e tendo como princípio norteador o fato de que o papel do professor é criar uma afetividade entre o sujeito-aluno e o objeto da aprendizagem (LEITE, 2018).
2. Da TV ao Cinema
A disciplina de produção publicitária em Cinema ocorre logo após o término da de Rádio e TV, na qual, além de um percurso histórico, discutimos os modelos de direção em televisão e a publicidade televisiva. Nessas discussões, apresento respectivamente os modelos de filmagem multi-câmera e single-câmera, encerrando com uma reflexão sobre o single-câmera no comercial televisivo. Nos primeiros anos em que ministrei o curso, adentrávamos o single-câmera a partir de um tipo de produto cada vez mais consumido pelos alunos – as séries televisivas – para, em seguida, avançarmos ao comercial de TV.
Entretanto, o calendário para percorrer todos esses conteúdos sempre me foi apertado e, por isso, insatisfatório, sobretudo porque era preciso podar algumas discussões que animam os alunos (como as séries). Até que, há três anos, resolvi experimentar uma inversão, acrescida da postergação de um dos conteúdos: assim, passei a discutir o modelo single-câmera a partir da publicidade e adiei o debate sobre séries televisivas para o início da disciplina seguinte, voltada ao Cinema. Essa alteração me parece pertinente por alguns motivos: primeiro porque hoje a maioria das séries adota o modelo cinematográfico de filmar (isto é, o single câmera), que permite uma decupagem cênica mais elaborada, mas demanda um outro tempo de produção. Segundo, porque essa alteração tem me permitido revisar o conteúdo explicado no final do semestre anterior (a partir da publicidade), e expandi-lo para uma televisão que cada vez mais se preocupa em dialogar com o cinema. Ou seja, além de servir como ponte entre as disciplinas, essa realocação propicia reflexões sobre semelhanças e diferenças entre meios, linguagens, transmidiações, etc. Isso se completa na escolha dos exemplos trabalhados, entre os quais destaco a recorrência de “Mad Men”, aclamada série televisiva que recupera uma linguagem cinematográfica clássica (e, portanto, conversa com o conteúdo que vem em seguida) e que faz um retrato histórico de um momento pulsante da publicidade, unindo assim os “mundos” que estão em jogo em nossos encontros.
3. Adaptações
Mesmo com poucos anos à frente da disciplina, foi possível identificar alguns equívocos conceituais recorrentes e persistentes entre os alunos de Publicidade, principalmente relacionados à questão da linguagem. Era comum, por exemplo, a confusão entre os conceitos de “plano” e “cena”, assim como entre “plano” e “enquadramento”. Para tentar sanar esses equívocos, decidi mais uma vez inverter o conteúdo programático, não mais começando pela gênese cinematográfica (que era seguida pelo panorama histórico dos movimentos cinematográficos), mas retomando conceitos básicos vistos – enquadramentos, movimentos de câmera, profundidade de campo, termos relacionados à montagem –, sempre buscando trazer exemplos contemporâneos de filmes que os alunos pudessem ter visto.
Alguns desses conceitos demandam mais persistência e repetição do que outros: aprendi, por exemplo, que é preciso frisar o aspecto temporal do plano, do contrário, os alunos acabam reduzindo-o ao aspecto espacial, confundindo-o com a noção de enquadramento. A discussão sobre o planos-sequência ajuda nessa compreensão do plano como unidade espaço-temporal e propicia a compreensão de outro termo ainda mais intrépido – a mise-en-scène.
Central nos estudos cinematográficos, considero que mais importante ao estudante de publicidade é entender que a mise-en-scène é uma construção atrelada ao trabalho de direção e que sua elaboração começa em ferramentas como a decupagem e o storyboard. Nesse sentido, abordo a perspectiva de David Bordwell e Kristin Thompson de que a mise-en-scène compreende “cenário, iluminação, figurino e comportamento das figuras” (2013, p. 75) e parto para uma dupla de exemplos que tem sido pedagogicamente bem-sucedido: primeiro, apresento o plano sequência de “Filhos da Esperança” (2006) em que a câmera circula dentro (e depois fora) de um carro em meio a uma perseguição. Opto por esta cena pelo impacto visual baseado na coreografia envolvendo atores, técnica, tecnologia e efeitos especiais, tudo isso embalado no apelo da tensão emocional do cinema de ação. Pontuo aos alunos as propiciações tecnológicas dadas pelo digital à cena, mas deixo claro que a questão da mise-en-scène é muito antiga no campo do cinema. Parto então para um exemplo histórico e didático: “Festim diabólico” (1948), de Alfred Hitchcock.
O filme de Hitchcock não só possibilita discussões evidentes acerca do rebuscamento de sua mise-en-scène, como inclui a questão do suporte em película e todas as conhecidas dificuldades que isso impôs aos set. Portanto, é possível apresentar aos alunos um outro momento de produção em que não se podia filmar indistintamente, e em que o efeito do plano-sequência demandava o ensaio minucioso considerando o tempo do rolo de película bem como um preciso encobrimento da lente para dissimular o corte. Além de trechos que evidenciem o término do rolo e o truque hitchcockiano para realizar a montagem, exibo aquele que considero um momento contundente para o entendimento da complexidade coreográfica que uma mise-en-scène pode ter: o instante em que um dos assassinos esconde a corda, objeto do crime, numa gaveta, com a ação observada entre o velar e desvelar de uma porta vai e vem que separa dois cômodos. É uma passagem que ilustra bem a variedade de elementos que compõem a mise-en-scène, tendo em vista que, além do tempo da ação do ator, o movimento da porta cenográfica e a posição do olhar da câmera são vitais para que essa composição estilística funcione.
Muitas vezes, a busca por paralelos contemporâneos parte de uma demanda dos próprios alunos. Sempre surgiu, por exemplo, quando tratamos da montagem metafórica dentro da discussão sobre construtivismo russo. Aliás, este é um caso em que busquei um exemplo que, além de recente, fosse também marcante aos alunos (ainda que, pessoalmente, não goste do filme). O fato é que “Lucy” (2014), de Luc Besson, tem uma montagem metafórica que, além de ser emocionalmente tensa e impactante (comparando a armadilha em que a protagonista cai com o momento do abate de um animal por seu predador), é protagonizada por Scarlett Johansson, uma atriz que está no repertório e na memória afetiva da maioria dos alunos.
Outra adequação recente se deu não apenas por visar um filme mais contemporâneo na data de produção, mas também no que diz respeito ao discurso. Eu explicava montagem paralela no contexto do início da linguagem clássica e me preparava para passar “O Nascimento de uma nação” (1915). Como de costume, antes da exibição, preparei a sala sobre o fato de que, apesar de considerado importante na História do cinema, o filme de Griffith é conhecidamente racista. Então, um aluno negro levantou a mão e se colocou: “professor, eu não quero ver filme racista”. Abriu-se um problema: ou eu mantinha o plano de aula e exibia o filme, ainda que houvesse já um descontentamento explícito, ou maleabilizava a partir de outro exemplo, que eu precisava encontrar rapidamente. Por sorte, eu havia acabado de ver “Infiltrado na Klan” (2018) e tinha o filme à mão. Além de obviamente antirracista, o filme de Spike Lee realiza uma montagem paralela crítica ao filme de Griffith, usando trechos de “O Nascimento de uma nação”. Ponderei com os alunos que, fosse aquela uma turma do curso de Audiovisual, seria inevitável exibir o filme de Griffith por conta de sua recorrência em bibliografias sobre a concretização da linguagem clássica, mas dentro de um curso de Publicidade e Propaganda, em que me interessava mais que os alunos entendessem o procedimento narrativo e tivessem uma breve contextualização histórica, o filme de Spike Lee foi uma troca mais do que bem-vinda, que tenho mantido desde então.
4. Mudanças
Dada uma introdução ao Primeiro Cinema e à consolidação da linguagem cinematográfica clássica, a trajetória da disciplina segue por um recorte dos principais movimentos da História do cinema, cujas aulas elaboro a partir do livro “História do cinema mundial” (2006), de Fernando Mascarello, além de trechos de “O que é cinema?”, de Jean-Claude Bernardet (1980). Contudo, com o passar dos anos, percebi que o modelo de aulas expositivas-participativas funcionava de maneira muito irregular para esse conteúdo dentro de um curso de Publicidade e Propaganda. Além de raramente irem aos textos originais, os alunos participavam pouco em sala de aula, e essa participação ficava restrita àqueles que tinham algum interesse anterior pelo cinema.
Em 2019, decidi testar metodologias ativas para abordar parte desse recorte conteudístico. Adotei o método da “sala de aula invertida”: liberei um tempo da aula em sala para que, em grupos, os alunos pesquisassem alguns dos movimentos estudados – especificamente o Neorrealismo italiano, Nouvelle Vague e Cinema Novo. Também disponibilizei textos e os slides antes usados nas aulas expositivas, os últimos baseados na bibliografia já citada. Realizada a pesquisa, os grupos, então, apresentaram o que consideraram de mais relevante entre os conteúdos que trabalharam. Como essa é uma disciplina que envolve produção, pedi que essas apresentações fossem gravadas com os celulares por um dos alunos de cada grupo, que ficaria responsável ainda por finalizar esse material na montagem acrescentando excertos de filmes citados e dando uma unidade estilística ao material. Nesse sentido, provoquei-os para que tentassem simular nessa construção entre gravação e montagem, os movimentos por eles abordados. Enquanto o grupo responsável pelo, por exemplo, optou por explicitar a câmera na mão e a utilização de planos longos, o grupo do Cinema Novo brincou com a fragmentação e arriscou-se em piadas a partir da edição do material gravado em sala e os filmes – e causou risada a montagem de minhas intervenções sobre a apresentação justapostas pelos planos Corisco (Othon Bastos), gritando e pulando para trás em “Deus e o diabo na terra do sol”. Como constante em todos os trabalhos, esteve o uso da imagem em preto e branco como tentativa de imitação estilística da imagem cinematográfica histórica.
Em 2020, dado o contexto de pandemia, a experiência de sala de aula invertida gravada e editada, acabou readaptada para o modelo de seminário online, mais burocrático, mas considerando não só as novas rotinas, como as dificuldades tecnológicas que têm aparecido nesse período tão singular. Também propus uma troca de bibliografia, principalmente porque comecei a considerar que talvez o livro de Mascarello, embora mais completo, contivesse conteúdo e densidade excessivos para as demandas relacionadas à História do Cinema num curso de Publicidade e Propaganda. Indiquei que os alunos trabalhassem como textos-base alguns capítulos de “A História do cinema para quem tem pressa” (2018), do crítico Celso Sabadin; além de mais breve, o livro de Sabadin me parece mais direto e didático para situar alunos que não são dos estudos de Cinema e Audiovisual.
Apresentados os seminários e feitas minhas correções, acréscimos e pontuações, disponibilizei aos alunos os slides outrora usados nas aulas expositivas, para que lessem ao longo da semana e se preparassem para um exercício de fixação de conteúdo, ocorrido na aula seguinte. Tal exercício consistiu na realização de um jogo em que selecionei e exibi cenas marcantes de alguns títulos importantes de cada movimento – “Acossado”, “Terra em Transe”, “Ladrões de bicicleta”, “M – O Vampiro de Dusseldorf”, etc. Essas cenas foram exibidas sempre sem som para que os alunos adivinhassem a partir das imagens apenas os movimentos que eram ali ilustrados.
5. Fragmentos de filmes
Mesmo nos cursos de Audiovisual, é muito raro conseguir trabalhar um filme inteiro; na Publicidade, além de essa necessidade não se colocar com tanta frequência, a quantidade de aulas, o calendário e mesmo as demandas dos alunos tornam essa experiência ainda mais difícil. A verdade é que, em maior ou menor grau, em qualquer desses cursos, se configura um dos desafios mais constantes para professores de Cinema: escolher o que exibir e, uma vez escolhido, o quanto exibir.
Jacques Aumont (1995) lembra que “o dispositivo-aula de cinema […] repousa sobre dois princípios que lhe são próprios”: a fragmentação e a sobreposição (p. 19). Para o autor, a sobreposição se dá na convivência/interação do filme com o espaço da sala de aula e com a figura do professor, que o comenta. Já a fragmentação “reina” porque “na maioria das vezes não se mostra o filme inteiro. Não há tempo ou, em muitas universidades, não há lugar” (p. 19). A partir da consciência dessa dupla característica da presença do cinema em sala de aula, Aumont sintetiza que “ensinar “o cinema” é também impedir de ver os filmes – e para voltar a eles quando, como? (p. 19).
Entendo que essa pergunta feita por Aumont deva ser elaborada pedagogicamente como uma provocação aos alunos; uma provocação que nasce nos trechos exibidos em aula, e que, de imediato, sintetizam uma série de características que abrangem as necessidades do conteúdo, mas que, mais do que isso, podem suscitar a curiosidade dos alunos de voltarem aos filmes, de procurá-los para completar as lacunas deixadas nos arredores da lasca exibida, “uma incitação ao desejo de ver o filme”, como diz Alain Bergala (2007, p. 118).
Bergala também parte dessa constatação da inevitabilidade da fragmentação propor o que chama de uma “pedagogia dos fragmentos postos em relação”, destacando principalmente que as interrelações entre os trechos fílmicos são capazes de provocar “o imaginário e a inteligência pessoal do usuário, aluno ou professor” (2007, p. 115). Tanto no curso de Publicidade e Propaganda quanto nas duas instituições em que leciono em cursos de Audiovisual, essas provocações de Aumont e Bergala têm me acompanhado em sala de aula, pois concernem não só ao tempo em sala (muitas vezes menor do que gostaríamos), mas também a uma pedagogia do olhar, que pode contribuir para que a relação de ensino-aprendizagem continue a partir da busca pelos filmes, da construção de um olhar crítico e – porque não – de uma cinefilia. Isso, no entanto, já é tema para um outro artigo…
6. Referências bibliográficas
AUMONT, Jacques. Meu caríssimo objeto. Imagens, São Paulo: Editora da Unicamp, n. 5, p. 18-27, ago./dez. 1995. Cinema 100 anos.
BERGALA, Alain. La hipótesis del cine: Pequeño tratado sobre la transmisión del cine en la escuela e fuera de ella. Barcelona: Laertes, 2007. Tradução do autor.
BERNARDET, Jean-Claude. O que é cinema. São Paulo: Brasiliense, 1980.
LEITE, Sérgio Antônio da Silva. Afetividade: as marcas do professor inesquecível. Campinas: Mercado de Letras, 2018.
MASCARELLO, Fernando [org.]. História do cinema mundial. Campinas: Papirus, 2006.
SABADIN, Celso. A História do cinema para quem tem pressa. Rio de Janeiro: Valentina, 2018.