1. Introdução

Este artigo tem como objetivo uma análise, de forma qualitativa e interpretativa, do filme do diretor Carlos Diegues intitulado Quilombo (1984) como um possível instrumento de ensino da disciplina da História em salas de aula. Principalmente porque o cinema é utilizado, nos dias de hoje, como conteúdo didático, recriando, através de suas particularidades de linguagem, novas formas e conteúdos curriculares. 

Portanto uma abordagem metodológica se apresenta: entender o filme como um documento que permita perceber as características inerentes ao tempo em que é produzido, como também um discurso estético1, propondo uma direção investigativa da obra através das propriedades básicas do material fílmico e suas implicações práticas. O filme como um meio de expressão. “Com este tipo de análise encontramos, sobretudo, o modo como o realizador concebe o cinema e como o cinema nos permite pensar e lançar novos olhares sobre o mundo” (PANAFRIA, 2009, p.7).

O filme em questão propõe uma leitura histórica do quilombo dos Palmares. Porém a obra traz em sua narrativa enormes invenções históricas, que se não apresentadas de forma a se “desvendar” o discurso estético proposto pelo diretor, diversos conteúdos podem ser passados para o aluno de forma problemática. Como, por exemplo, a forma como o filme retrata a cultura religiosa existente no quilombo ao compará-la com a que se encontra no Candomblé contemporâneo à produção do filme. Relação que é um problema do ponto de vista histórico, tendo em vista que o Candomblé só é elaborado no Brasil séculos depois do período retratado na obra. 

O diretor já havia, em um contexto cinemanovista2, produzido o longa-metragem Ganga Zumba (1963) com uma temática parecida. Neste primeiro filme o herói do título foge de seu cativeiro, chegando até Palmares permeado por um discurso estético político característico da sociedade do início dos anos 60.  Um momento em que as utopias eram possíveis como “orientações que, transcendendo a realidade, tendem, a se transformar em conduta, a abalar, seja parcial ou totalmente, a ordem de coisas que prevaleça no momento”. (MANNHEIM, 1972, p. 216), ou seja, a utopia como uma força de crítica ao poder dominante existente, e não uma simples possibilidade futura.  No entanto nesse primeiro filme a cultura negra é somente um cenário para se discursar sobre diversas idéias revolucionárias e anti-imperialistas deste conturbado momento. 

Já em Quilombo, um épico grandioso para os padrões brasileiros, há uma tentativa de valorização da identidade negra na própria história do Brasil. Onde a ideia de utopia se mistura a uma estética carnavalesca que tanto relembra os tradicionais festejos do carnaval brasileiro, como também revelam uma forte ligação com a inversão carnavalesca da Idade Média proposta por Bakhtin, que se caracteriza “principalmente, pela lógica original das coisas `ao avesso`,`ao contrário`” (BAKITHIN,1993, p.10). O carnavalesco seria uma outra visão de mundo que contrasta com a oficial, exterior à igreja e ao estado. “E a festa convertia-se na forma de que se revestia a segunda vida do povo, o qual penetrava temporariamente no reino utópico da universalidade, liberdade, igualdade e abundância” (BAKITHIN, 1993, p.10). 

Neste panorama Carlos Diegues propõe uma lógica inspirada nos costumes das festividades carnavalescas no Brasil e na cultura negra, como forma de transgredir a ordem social. Oferecendo não só uma nova história (outra que não a que ele havia filmado em 63), mas também uma nova visão de mundo. A revolução antes necessária se transforma em transgressão, mas não deixava de ser utópica, e neste sentido propor uma crítica. 

Para tanto, o diretor se utilizou de um emaranhado de referências que juntavam a história original do livro de João Felício, intitulado Ganga Zumba, as interpretações do polêmico historiador Décio de Freitas, a assessoria de intelectuais do porte de Roberto da Matta, do antropólogo Everardo Rocha, como também de intelectuais negros que buscavam redefinir a concepção de cultura negra. Nomes como Lélia Gonzalez, historiadora e militante do movimento negro, Beatriz Nascimento, e Joel Rufino dos Santos, são referência sobre o estudo da cultura afro brasileira, e também estão presentes como consultores. 

2. O cinema como currículo 

As perspectivas chamadas pós-críticas acerca de uma teoria do currículo, como o multiculturalismo, as relações de gênero, o pós-colonialismo, os estudos culturais, são frutos de uma ruptura da hegemonia marxista sob as ciências sociais como um todo. No entanto também permitem que todas as instâncias da cultura possam ser vistas como pedagógicas como propõem, por exemplo, os Estudos Culturais (SILVA, 2005) em sua abordagem da análise da linguagem, onde toda a dinâmica social também é uma dinâmica cultural, da mesma forma como todas as instâncias culturais também teriam um currículo. A técnica cinematográfica, neste contexto, se apresenta como um instrumento de interseção entre a pedagogia e a cultura na medida em que qualquer obra cinematográfica pode ser lida e reproduzida.

O cinema é uma poderosa ferramenta de ilusão, pois faz o espectador se transportar para um “mundo possível” (ROSENFELD 1985) onde se pode propagar uma ideologia de forma natural, quase invisível. Edgar Morin (1983) percebe que o que daria o aspecto de realidade ao cinema seria o fato dele estar imerso em uma total subjetividade, quase como em um sonho. O próprio ato de se assistir a um filme e responder aos estímulos que a imagem em movimento cria, como se aquilo fosse real, faz o espectador imergir quase que por completo na narrativa. A imagem cinematográfica não refletiria a verdade, mas através de seu poder de subjetividade, este seria a magia cinematográfica, o espectador acaba por acreditar que o que assiste na tela seria a realidade.

O discurso cinematográfico, conjunto estético que a obra propõe, trabalha com diferentes qualidades das que existem na obra literária. A imagem que se vê é uma sucessão de fotogramas estáticos sobrepostos que nos dão uma impressão de movimento, junto ao som e a construção narrativa, permitem uma experiência única e diferente da que se tem na leitura:  a de ser inserido em uma corrente de emoções, de subjetividades que vão além de um reflexo da realidade, são “um universo inteiro”, fechado em sua própria linguagem e regras. “Mais do que o romance, mais do que a peça de teatro, mais do que o quadro do pintor figurativo, o filme nos dá o sentimento de estarmos assistindo diretamente a um espetáculo quase real.” (METZ,1972) 

Os autores Cezar Migliorin e Elianne Ivo Barroso, no artigo Pedagogias do cinema: montagem (2016), ressaltam que a montagem cinematográfica é uma das suas principais ferramentas pedagógicas, quando ela se propõe expressar significados que permitem ao espectador participar ativamente do enredo. Nessa pedagogia o aluno também é autor, pois participa efetivamente do significado apresentado. Uma característica marcante do chamado Cinema Moderno, que se inicia no pós-guerra, um cinema “engajado em uma produção de mundo que não se limita em um ponto de vista sobre questões específicas, mas como produtor de modos de pensar o mundo em si”   (MIGLIORIN, 2016, p.19). 

 Uma pedagogia da criação como ressalta Paulo Emílio Salles Gomes (apud MIGLIORIN, 2016, p.20): 

Como cinema mesmo. Ensinar, não. Como não se pode ensinar nada, ler e escrever, mas sim a de criar condições para as pessoas aprenderem. Não acredito na transmissão de conhecimentos, que se transforma em um ritual, sem funcionalidade ou realidade. Os alunos não ficam sabendo o que eu sei. Tenta-se fazer renascer para eles os mecanismos pelos quais eu aprendi alguma coisa. Fundamentalmente é criar uma atmosfera e um estímulo que fazem os estudantes descobrirem e inventarem.

Ou seja, uma pedagogia que trata a arte cinematográfica como inventora de formas de engajamento do espectador ao se compartilhar conceitos, representações de mundo, ideias, e não somente como um “contador de histórias”. Tanto que para os autores, a origem da ideia da imagem cinematográfica como pedagogia ganha contorno nos trabalhos de cineastas soviéticos já nos anos 1920 e 1930, em particular Sergei Eisenstein e Dziga Vertov. Cinemas que tinham como finalidade educar, mas não pela forma convencional existente nos documentários e filmes hollywoodianos de ficção, e sim de forma a criar “um modo de pensar e efetivar essa educação na produção de sentidos a partir de elementos reais. O cinema como uma ´aproximação crítica da realidade´, (MIGLIORIN, 2016, p17) De uma forma bastante parecida com a que pensava Paulo Freire (1996) em relação ao lugar do professor e do estudante. 

Desde esse momento inaugural com os soviéticos, o sentido e o que há a conhecer do mundo não possuem mais um acesso direto pela imagem, mas se faz na construção mediada pela montagem. A pedagogia eisensteiniana, se assim quisermos, já traz para si a necessária e complexa participação do espectador, apontando para uma pedagogia que se faz na relação entre obra e espectador e na observação de três aspectos cinematográficos distintos: a qualidade plástica e compositiva dos planos, a justaposição entre eles e a ideia de interdependência entre todos os fragmentos com a totalidade do filme.  (MIGLIORIN, 2016, p.17)

O mundo das imagens é onde as significações e os discursos são muito mais a interpretação subjetiva do indivíduo do que no estrito significado da escrita, característica que permitiria uma maior participação do próprio aluno na construção do saber. Com o aprendizado de todas as instâncias do “fazer e ver” cinematográfico de forma didática, em sala de aula, e não somente na prática desvinculada de um senso crítico, o aluno vai poder olhar de forma problematizada os espaços em que interage, pois a estética cria conceitos subjetivos do indivíduo que, por sua vez cria saberes sobre o mundo. Fechando o ciclo pensado por Paulo Freire: 

Nenhuma formação docente verdadeira pode fazer-se alheada, de um lado, do exercício da criticidade que implica a promoção da curiosidade ingênua à curiosidade epistemológica, e do outro,  sem o reconhecimento do valor das emoções, da sensibilidade, da afetividade, da intuição ou adivinhação. Conhecer não é, de fato, adivinhar, mas tem algo que ver, de vez em quando, com adivinhar, com intuir. O importante, não resta dúvida, é não pararmos satisfeitos ao nível das intuições, mas submetê-las à análise metodicamente rigorosa de nossa curiosidade epistemológica ( FREIRE, 1996, p.20)

É na percepção do cinema como discurso que o filme pode ser inserido no currículo escolar de forma a criar saberes onde a identidade do aluno, através do ato cinematográfico, possa ser percebida e discutida em sala. Pois como visto, a estética do filme traz em sua proposta uma leitura subjetiva, ao mesmo tempo em que cria um discurso que pode ser interpretado e ensinado de forma didática.

No campo historiográfico Marc Ferro foi o primeiro que percebeu o cinema como uma importante fonte de estudo, uma nova história associa a película com a sociedade que a produz. “O filme, imagem ou não da realidade, documento ou ficção, intriga autêntica ou pura invenção, é História” (FERRO, 1992, p.86). Analisando o filme como um produto da sociedade em que ele se insere, uma “imagem-objeto, cujos significados não são somente cinematográficos” (FERRO, 1992, p.87). Introduzindo no estudo histórico um método em que as relações entre os componentes da narrativa fílmica e os que não são – como o seu financiamento, seu público, o momento histórico e etc. – produzem elementos que podem ser lidos e codificados.

Por outro lado, há uma tendência na historiografia contemporânea de não entender os fatos históricos somente como verdades absolutas. Para o historiador Jacques le Goff, os vestígios do passado utilizados pelo pesquisador são uma escolha e não uma verdade objetiva. São matérias de memória alicerçadas pelas forças políticas e sociais do momento histórico. ”O documento não é qualquer coisa que fica por conta do passado, é um produto da sociedade que o fabricou segundo as relações de forças que aí detinham o poder” (LE GOFF, 1996 p. 545).

Junto a uma análise histórica da obra cinematográfica, é possível também propor uma leitura cinematográfica do passado, marcando outro ponto de vista sobre a relação do cinema com a história onde “é possível desenvolver uma abordagem do passado a partir da criação filmografia” (MAUAD; KNAUSS, 2006 p. 147).

Na crítica cultural recente não se pensa mais na simples questão da verdade e da falsidade, mas de uma questão de representação que, por sua vez, não pode ser desligada de questões de poder. A representação é sempre inscrição, é sempre uma construção linguística e discursiva dependendo da relação de poder. O oposto de uma identidade “verdadeira”, mas outra representação, feita a partir de outra posição enunciativa na hierarquia das relações de poder (SILVA, 2005, p. 103).

3. Quilombo, uma breve análise 

 Através de uma proposta pós-crítica todos os filmes poderiam ser utilizados como conteúdo em sala de aula pois, de alguma forma,  eles estão passando conhecimentos, e neste processo estão criando conteúdos programáticos que possam dar conta de algum aspecto curricular.  Portanto, usar o filme Quilombo como um instrumento pedagógico seria, também, não só entender a estória narrada, mas a forma como o discurso estético do filme se articula, entendendo, assim, as relações de poder existentes no período em que ele é concebido, que dialoga com um ponto de vista dos acontecimentos históricos. 

A narrativa do filme apresenta um grupo de escravos que em torno de 1650 fogem de um engenho de Pernambuco indo parar no famoso Quilombo dos Palmares, onde uma nação de ex-escravos fugidos resiste ao cerco colonial. Ganga Zumba é um destes escravos que acaba por se tornar o líder de Palmares durante muitos anos. Porém o que faz o esquema dramático da história progredir é a figura de Zumbi, afilhado de Ganga Zumba, que contestará as ideias conciliatórias do líder, enfrentando o maior exército jamais visto na história colonial brasileira. 

É marcante neste contexto histórico em que a obra é elaborada, de abertura política e eleições diretas, a necessidade do filme de propor uma visão utópica onde seria possível uma democracia representada na valorização da cultura negra. Tanto que foram oferecidas sessões gratuitas para escolas por todo o Brasil, em uma clara autopromoção como fonte para o ensino da disciplina de história nas escolas. 

Neste contexto escolar Flávio dos Santos Gomes (2011 p.92) assinala: 

O Quilombo de Cacá Diegues é repleto de invenções históricas, que longe de serem farsas ajudam a pensar o universo ideológico tanto do cineasta e de sua equipe como de intelectuais negros dos anos 1980, no processo de redemocratização. No filme, transpõe-se a sociedade de Palmares, no mundo atlântico colonial, com europeus, microssociedades indígenas e o tráfico atlântico no litoral africano, para a sociedade brasileira da época, com imagens da miscigenação, da alegoria e da permissividade.

Desta forma, o filme em sala de aula deveria ser analisado numa conjuntura estética que deixasse claro as próprias invenções históricas e dialogasse com o momento em que é produzido. Pois sem essa abordagem, na qual o discurso cinematográfico tem que estar ligado às relações de poder do momento em que ele é produzido, o professor pode gerar um grave problema: a propagação de conhecimentos epistemológicos problemáticos acerca da história e da identidade negra.

Como já se relatou neste mesmo trabalho, o Candomblé3 baiano, ligado a cultura Iorubá4, não existia no período retratado na obra, no entanto, o filme faz referência a ele em diversas cenas, deixando de lado outras culturas que eram mais pertinentes ao momento retratado, e que são propositalmente esquecidas, como a cultura Bantu5. O filme utiliza de certa hegemonia da vertente ioruba, como forma de consolidação e afirmação da cultura negra, como uma estratégia de inserção da história do indivíduo negro na própria formação do Brasil. Essa característica da obra evidencia “a prática de racismo epistêmico entre as próprias correntes de defesa e preservação dos cultos afro-brasileiros” (SILVA, 2015,p.3).

Por outro lado, o filme apresenta alguns fatos relevantes para o estudo da história colonial brasileira em sala de aula. Numa das primeiras cenas, por exemplo, Ganga Zumba fugindo para o Quilombo encontra, na calada da noite, um homem branco contando a história de Moisés para seus filhos mestiços e sua mulher índia. Lá eles buscam abrigo e escutam ao longe os tambores de Palmares enquanto Ganga Zumba propõe ao homem uma relação comercial. 

A cena parece ser criada para reforçar a ideia de autonomia econômica do Quilombo, a miscigenação extrema da população, e da postura conciliadora de Ganga Zumba. Revelando algumas relações sociais presentes. Uma quebra das ideias revisionistas dos anos sessenta e setenta6, que via o escravo como “coisa”, através de uma nova perspectiva surgida nos anos oitenta que repensava o conceito da violência do sistema, admitindo a existência de espaços para o escravo negociar um cotidiano mais flexível, ora curvando-se aos ditames do senhor, ora se rebelando, revelando a participação ativa do negro como um agente de sua liberdade. 

Entender esse discurso é também entender vários aspectos que extrapolam a simples narrativa, como o percurso historiográfico acerca da escravidão. Nos anos oitenta é através dessa interpretação que o filme e outras mídias propõem que o movimento negro no Brasil se firma politicamente. O Quilombo passa a ser um símbolo de resistência e de poder econômico da época colonial, representando uma alternativa ao modelo hegemônico de organização sócio-política no Brasil.

Outra cena necessária de se assinalar nesta breve análise é uma montagem paralela entre uma festa ao estilo carnavalesco no quilombo, com o sofrimento da peste em um pequeno povoamento nos arredores. A cena se inicia com um cometa passando nos céus, imagem que para o mundo colonial, católico, oficial, seria um péssimo presságio. No entanto, para palmares seria motivo de festa. 

Neste momento encontramos em uma igreja um negro moribundo interpretado pelo icônico ator Nilton Gonçalves, que pede para o padre parar de rezar em latim e cantar em sua língua ancestral, pois o latim havia servido ele durante a vida, mas só sua língua natal seria necessária na sua morte, ilustrando no diálogo do personagem exatamente uma ideia de inversão proposta por Bakhtin ao se pensar em outra vida que rompa com a ordem estabelecida. 

Escutando o pedido do homem está o futuro rei de Palmares, Zumbi, que reflete sobre o acontecido enquanto escuta as batucadas da festa africana ao longe. Ele então decide fugir para o quilombo abandonando a função de cobrinha que exercia na igreja, deixando para trás, em uma imagem bastante simbólica, sua cruz e levando a espada. Paralelo ao que acontece na Igreja, a festa acontece em Palmares de forma carnavalesca, todos estão fantasiados, pintados, dançando, fumando – ilustrando perfeitamente a proposta estética da inversão das relações de poder, mostrando a cultura negra, representada em uma utopia palmariana como um possível caminho para o Brasil, em um mundo que misturasse o misticismo africano e a cordialidade brasileira. 

Assim o filme ao mesmo tempo que é um grande problema epistemológico, pode ser também um importante instrumento de discussão da formação da identidade do negro no Brasil, pensando o momento em que ele é produzido, e percebendo as relações de poder existentes nas escolhas estéticas feitas pelo diretor e seus colaboradores. É neste sentido que a obra é um potencial material didático, principalmente se o currículo no qual está inserido pretende discutir de forma crítica a formação de uma ideia de cultura negra no Brasil dos anos 80 e como ela chega aos dias de hoje.

4. Considerações finais

Desta forma o uso do filme como um material didático se mostra complicado, se for exigir dele um comprometimento estrito, objetivo, como os fatos históricos. No entanto, a própria escrita acadêmica também conta um enredo com começo, meio e fim, na busca de exemplificar sua tese. Existe na própria narrativa cinematográfica elementos que representem essa progressão de fatos e de conflitos inerentes ao pensamento histórico.

Percebendo o filme, então, dentro de toda uma complexa teia de referências e intenções na decodificação da estética proposta, uma rica leitura crítica do filme seria possível ao ser inserido no  currículo escolar, pois essa abordagem dá novas dimensões ao uso do filme em sala de aula. Ele insere o aluno em uma experiência onde percebe, com suas próprias emoções, as relações com o conteúdo didático – não só com a fria objetividade da escrita, mas sim com a participação afetiva. 

Uma abordagem que deve vir sempre de uma desconstrução da própria experiência fílmica, percebendo o discurso de poder que a produção sugere. No caso do filme Quilombo o uso da cultura Iorubá no resgate do negro como sujeito de sua história, proposta que surge do próprio movimento negro e que, ao mesmo tempo que faz emergir o herói negro, também apaga outras idiossincrasias, como outras formas de se vivenciar a negritude. Produzindo paralelamente a imagem heroica, a marginalização de outras culturas que fizeram parte da própria construção da afro-brasilidade (SILVA, 2015). Como a cultura congo-angola, muito mais predominante no período de Palmares –  o “povo iorubá” só vai chegar no Brasil séculos depois (VERGER, 1996).

5. Referências bibliográficas

BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: contexto de François Rebelais.São Paulo: HUCITEC; Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1993

DIEGUES, Carlos; Nadotti, Nelson. Quilombo. Rio de Janeiro: Achiamé, 1984

_________, Carlos. Cinema brasileiro: ideias e imagens, Rio Grande do Sul: Síntese Universitária, 1988 

___________, Carlos. Vida de Cinema: antes, durante e depois do Cinema Novo Rio de Janeiro: Objetiva, 2014

FERRO, M. Cinema e História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

FERRO, M. A história vigiada. São Paulo: Martins Fontes, 1989.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: Saberes necessarios à prática educativa. Paz e Terra: São Paulo, 1996

FREITAS, Décio. Palmares: A guerra dos escravos. Rio de Janeiro:Graal,1981

GOMES, Flávio dos Santos. De olho em Zumbi dos Palmares- Histórias, símbolos e memoria social. São Paulo: Claro Enigma, 2011

LE GOFF, Jacques. História e Memória. 4.ed. Campinas: Editora da Unicamp, 1996.

LOPES, Nei. Enciclopédia brasileira da Diáspora africana. Selo Negro: São Paulo, 2004

MANNHEIM, Karl. Ideologia e Utopia. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1972.

MAUAD, Ana Maria; KNAUSS, Paulo. Memória em movimento: a experiência videográfica do LABHOI. História Oral, Rio de Janeiro, v.9, p. 143-158, 2006.

MIGLIORIN, C., & BARROSO, E. (2016). Pedagogias do cinema: montagem. Significação: Revista De Cultura Audiovisual, 43(46), 15-28. https://doi.org/10.11606/issn.2316-7114.sig.2016.115323

MIGLIORIN, C. . O ensino de cinema e a experiência do filme-carta. E-Compós (Brasília) , v. 17, p. 1-16, 2014.

SANTOS, João Felício dos. Ganga Zumba. São Paulo: Circulo do Livro: 1963

SILVA, J. L. da. Candomblé da Bahia, mito da pureza e racismo epistêmico no material didático escolar[pp. 189-209]. In Educação e axé: uma perspectiva intercultural na educação. Fernandes; Roberto & Oliveira [orgs]. 1ª ed. Imperial Novo Milênio Gráfica e Editora. Rio de Janeiro: 2015.

SILVA, Tomaz Tadeu da. Documento de Identidade: uma introdução às teorias do currículo Autêntica:Belo Horizonte, 2015.

VERGER, Pierre Fatumbi. Orixás.Corrupio: Salvador,1996.

XAVIER, Ismail (Org.).A Experiência do Cinema. Rio de Janeiro: Graal. 1983

________, Ismail. Xavier. O Discurso Cinematográfico: a opacidade e a transparência. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984

  1. O termo “estética” seria mais bem empregado do que o “teoria”, sendo que estruturalmente esta perspectiva do discurso cinematográfico se basearia em dois momentos: na teoria cinematográfica que insere o modo de organizar a imagem/som, na garantia de como o cinema “deve ser”, buscando nesta teorização os instrumentos que o “permita ser” o que lhe pedem, e uma segunda percepção, mais voltada para a crítica cinematográfica de “que ‘é mais próprio à sua natureza’ ser o que se lhe pede.” (XAVIER, 1984,p.9-10).  ↩︎
  2. Movimento de cineastas do fim dos anos 50 e início dos anos 60,que buscava produzir um cinema brasileiro moderno  dialogando diretamente  com um postura revolucionária, tanto político como estético. ↩︎
  3.  O Candomblé se consolida com a inauguração dos primeiros terreiros já no século XX. (VERGER, 1996) ↩︎
  4. O termo aplica-se a um dos maiores grupos étnicos e linguísticos  da áfrica ocidental, ligados a uma mesma cultura e tradições, na cidade de Ifé, mas nunca constituíram uma unidade política. ( VERGER, 1996). ↩︎
  5. “Família etnolinguística à qual pertenciam, entre outros, os escravos no Brasil chamados de angolas, congos, cambinda, benguelas, moçambiques etc. (LOPES, 2004, p.98) ↩︎
  6. Na geração revisionista autores como Florestan Fernandes, Otavio Ianni, Emília Viotti da Costa, Fernando Henrique Cardoso, viam a escravidão como a base no processo de acumulo de capital além de apontar a violência como um vinculo básico na relação escravista. “O escravo ou se submetia a virar uma mercadoria, ou se rebelava de forma violenta e extrema.” (QUEIROZ, 2010 p.106) ↩︎

Deixe um comentário