O abandono das origens e a busca da legitimação centralizada
1. Introdução
”Precisamos ocupar os espaços”
Quantas vezes você ouviu isso nos últimos anos desde que a palavra ”ocupar” ficou popular? Quantas vezes você ocupou? Quais ocupações você participou? Você ainda ocupa? Porque você ocupa? Por quem? E por último, mas não menos importante, onde você ocupava antes de ocupar?
Minha reflexão aqui é bem básica e não busca de maneira nenhuma trazer alguma verdade absoluta ou dados oficiais de tal organização fodona que traz os dados sobre ocupação. Aqui é só um pequeno papo reto sobre o discurso da ocupação e do quanto isso ressoa até hoje na minha trajetória pessoal e cinematográfica. É que às vezes surpreende muito observar pessoas que nunca nem sequer te deram um bom dia, não sabem suas motivações, não te conhecem e nem sabem pronunciar direito teu nome, encherem a boca pra ditar o que você deve fazer ou onde você deve ocupar, baseado única e exclusivamente (em porra nenhuma) nas suas motivações exclusivamente pessoais.
2. A margem
Quando a gente nasce numa periferia, numa região não central, na margem, longe dos grandes centros, distante dos grandes centros, há dois ou mais ônibus de um grande centro, longe pra caralho do centro, ou como você preferir chamar, a gente nasce com uma espécie de ”doença” cronica ou sintoma, algo que eu não consigo nomear, mas que existe e é real oficial. É uma parada que fica ali com você e te persegue a todo momento, desde a sua infância até a vida adulta. Como eu disse, eu não sei o nome, mas é mais ou menos quando você ouve de absolutamente todas as pessoas ao seu redor uma parada que você nem sabe o porque, mas que faz todo sentido na sua cabeça desde a primeira vez que você ouve, a parada é mais ou menos assim: ”Você precisa sair daqui”.
Não tem um porquê. Não existe uma solução. Não existem meios de driblar. É apenas uma condição imposta e você tem que lidar com isso, mesmo que isso exija condições financeiras, acesso a informação, moradia, transporte, ou quaisquer outras condições da qual você provavelmente não tem acesso, e caso você não tenha acesso a nenhuma dessas coisas, a imposição da necessidade de sair se torna ainda maior. E apesar de não fazer muito sentido, se isso fosse um filme, não seria uma ficção, tá mais pra um documentário inédito filmado em tempo real sem fim.
Aí nos últimos anos aconteceu uma parada que, do nada, resolveu absolutamente tudo! ou não… Resolveram pegar esse discurso confuso sobre ”você precisa sair” e legitimaram ele, transformaram num símbolo, tipo o movimento grunge (ou tão sujo quanto), ressignificam alá Lumena e chamaram de ”ocupação”. Do nada alguém virou pra gente e falou: Você precisa ocupar!
3. Dança das cadeiras
E quem vai ocupar o lugar que você ocupava quando você saiu para ocupar? Bom, seus filhos, seu sobrinho, seus netos. E provavelmente eles vão se espelhar em você, fazendo com que nas reuniões de família ele diga o quão incrível você é, por ter saído de onde você veio, lugar onde ele se encontra agora.
Se você se identificou com o parágrafo acima, provavelmente você já saiu de onde você veio, ou melhor, você ocupou. Mas calma, ainda dá tempo de voltar, ou melhor, você pode dizer que você é ”cria”, mesmo que na maior parte do tempo, ou o tempo todo, você não esteja lá, na sua terra natal. A não ser no natal, nas reuniões de família, a mesma família que continua lá, no bendito lugar onde você nasceu. O lado bom é que você tem um assunto de fora, então trate de atualizar todo mundo do quão legal é o grande centro!
O detalhe que você não percebeu, é que sua família continuar ali não é um mero acaso. Afinal, ocupar exige certos privilégios. Privilégios estes que seu sobrinho ou sobrinha podem não ter, e muito provavelmente NÃO VÃO TER. Como a maioria não tem. E não, não estranhe se isso parecer meritocrático, esse processo como muitos no Brasil é um processo pautado em meritocracia. Toda e qualquer prova de vestibular é baseada nesse processo extremamente falho, desigual, desproporcional, excludente, elitista, ou qualquer termo pejorativo que você tenha em mente.
A parte ”engraçada” é que muito provavelmente (apesar de não ter esse dado em números), você é um crítico da meritocracia. Mas não se sinta culpado por esses processos impostos. A pergunta que a gente precisa se fazer é se estamos incentivando esses processos, e mais do que isso, se questionar sobre o que podemos fazer para evitá-los. Afinal, ocupar é algo meritocrático? Quando eu me faço essa pergunta eu só penso em alguns discursos de pessoas que às vezes estão tomando cerveja na mesma mesa de bar que eu. Soa mais ou menos assim: ”Porra, mas eu estudo pra caralho!”, ”Porra mas eu trabalho pra caralho!”, Porra mas eu ralo pra caralho todo dia!”, usando essas falas como se justificasse um ato, posição ou ocupação. Pra mim não soa muito diferente disso: ”Eu tô onde eu tô porque eu mereci!”.
4. Precisam mais da gente do que nós deles.
Mas aí, a gente precisa ocupar, ou precisam da nossa ocupação? Essa é uma pergunta que eu me faço sempre que sou convidado a qualquer lugar. Porque me querem ali? Eu quero estar? Eu devo estar? porque eu devo estar?
E pegando de exemplo minha experiência cinematográfica, a conclusão que eu tiro é que eles precisam de nós muito mais do que nós precisamos deles. Sem nós, sem a margem, o centro se torna mais irrelevante do que ele já possa parecer. Me pego sempre lembrando de eventos ”periféricos” onde convidam todas aquelas pessoas, quase um fetiche, para falar de como é produzir na periferia, como é não ter acesso a equipamentos culturais, conta pra gente como é nunca na vida ter recebido um cachê apropriado pelo seu trabalho. Depois de um tempo eu parei para olhar em volta nesses eventos, e percebi que nesses eventos voltados para periferia (que aconteciam em grandes centros), a periferia estava ali, potente como sempre. Animada. Caramba! eles dão passagem! Tem até um lanche! Mas aí você olha os bastidores, os gestores, os responsáveis pelo projeto, as pessoas que estão recebendo o cachê de fato para realizar o tal evento. Você já sabe quem são, e o que eu passei a perceber nesses eventos durante aqueles 2 minutos de fala que dão pra gente resumir nossa vida e obra, é que essas pessoas, esses bons samaritanos, a cara de choque que eles fazem quando eu digo onde eu moro e da situação que eu me encontro, fica evidente que essa galera nunca pisou em Belford Roxo, e pior que isso, não pretendem pisar.
5. Considerações finais
É doido pensar que a gente frequenta certos espaços, tenta se incluir, pagar 30 conto de passagem pra ir no centro na esperança de que vão ouvir os problemas que nos atravessam e achar uma solução para tais. Que ingenuidade a nossa, quando a gente fala dos problemas as pessoas aplaudem nossas falas, se isso não é um fetiche, eu ainda não entendi esse costume.
Eu moro aqui em Belford Roxo. Nascido e criado. Nunca me canso de colocar esse dado: Belford Roxo é a cidade mais populosa do Brasil sem uma sala de cinema. Eu sou cinéfilo desde sempre, meu irmão me levava ao cinema aqui na cidade quando criança, quando ainda tínhamos salas, e eu frequentava locadoras quase toda sexta, para entregar os filmes só na segunda. Comecei minha carreira cinematográfica em meados de 2015. Começou aqui em Belford Roxo, com pessoas de Belford Roxo, com os equipamentos que Belford Roxo detém. Nosso coletivo (BaixadaCine) atua com produção (nossos filmes), exibição (nosso cineclube) e formação (nossos pequenos cursos de cinema), tudo aqui. Longe de mim querer me colocar como referência ou usar minha história como exemplo, isso só faria fortalecer aquele discursinho tosco que é possível pra todo mundo. Porra nenhuma. Minha ênfase aqui é só sobre eu estar fazendo aquilo que amo na cidade que eu nasci, perto de pessoas que sabem quem eu sou, perto da minha família, dos meus amigos e de bares que vendem litrão de Brahma por 7 reais, onde eu sempre fui provocado a sair. Eu demorei muito pra perceber que precisava ocupar o lugar onde mais se precisa ser ocupado.
Beba de todas as fontes. Ocupe. Vá para o centro. Esse texto nem de longe é um desincentivo a isso. É apenas uma reflexão sobre como somos empurrados, mesmo quando a gente não quer. Ocupe essa ideia.
6. O cinema salvou minha vida.
Nesse período pandêmico eu refleti muito sobre o mal estar do brasileiro em geral. Tá todo mundo meio fudido e mal da cabeça, com razão. Parei pra refletir sobre como eu estaria sem o cinema. Toda minha renda vem de cinema e audiovisual, meus melhores amigos estão nesse meio, são minha família. Minha motivação para acordar de manhã é acordar pra pensar cinema aqui em Bel. Escrever esse texto é a prova escrita disso. É um privilégio fudido estar em meio a esse caos e estar fazendo o que eu sempre quis fazer. Quando o cinema ocupou minha vida foi como um choque de realidade que me fez perceber que o lugar que eu procurava tanto ocupar era exatamente onde eu estou. Aquela sensação de alívio quando a gente chega em casa depois de 3 horas no ônibus. Estou em casa. O cinema salvou minha vida.
7. Referências
Belford Roxo é a cidade mais populosa do Brasil sem uma sala de cinema – DADOS DA ANCINE.