Uma linha-tênue entre amar a sétima arte e viver na maior cidade em número de habitantes do Brasil sem sala de cinema, onde o litrão custa 7 reais.
1. Introdução
Demorei muito pra entender como funciona a motivação baseada em espaço geográfico. Vou me ater a falar sobre cinema aqui, mas só quero um minuto do seu tempo para contextualizar a teoria da motivação geográfica.
Na minha primeira visita ao Rio de Janeiro eu me senti como o Belforroxense mais moderno da família. Na minha cabeça, meus irmãos mais velhos beberem em casa enquanto eu gastava duas passagens, pagava mais caro e tinha que esperar um ônibus voltar a rodar para ir pra casa depois de passar uma noite na Lapa, fazia de mim alguém que estava muito à frente intelectualmente. Isso é uma coisa que demorei pra entender, apesar de parecer ainda mais ridículo agora escrevendo e dizendo em voz alta. E é. Mas ainda sobre motivações, eu tive alguns gatilhos na vida. Sempre gostei de cinema e fazia questão de alugar um filme toda a sexta-feira pra devolver na segunda, assim podendo assistir mais de uma vez. Desde sempre sou muito fã do Jackie Chan, principalmente quando tinha cenas pós-créditos provando as teorias que ele não usava dublê. E pra dar mais um exemplo, fiquei apaixonado por Turma da Mônica quando uma cunhada minha me deu uma pilha de quadrinhos da série. Todas essas coisas foram gatilhos que me fizeram gostar dessas vertentes artísticas numeradas em 2/7/9. Artes cênicas, Cinema e História em Quadrinho.
É interessante olhar pela seguinte ótica: eu não tenho nenhum parente artista, mas arte estava ali, de alguma forma chegou até mim. É como música, a gente só ouve, sente e se apaixona sem saber que está apaixonado, entramos em negação e chamamos de vício. Seja pela TV, pela namorada do seu irmão ou na locadora. Costumo pensar que arte é algo que não cabe em nossas mãos. É curioso, essas micro influências me remeterem tanto ao que eu faço hoje, e será que se eu tivesse um pai cineasta isso seria elevado a décima potência? Ou ele como um cineasta frustrado me afastaria disso e me incentivaria a entrar num curso de direito no intuito de fazer eu ganhar dinheiro? Temos ambos os exemplos em vários lugares por aí, não julgo nem um nem outro como certo e errado. O que eu sei é que ter um pai cineasta me daria acesso a informação do que é ser cineasta, e isso seria de grande valia, penso eu, já que a cada vez que eu pego em uma câmera por razões cinéfilas, sinto que nasci pra isso e meu coração bate mais forte. Então não espere um texto com teor meritocrático. Não acredito nisso. Em Belford Roxo o buraco é mais embaixo.
2. Belford Roxo
Tudo isso foi numa infância onde ter uma profissão não passava pela minha cabeça e nem de longe alguém me motivou a seguir uma profissão neste seguimento. Mais tarde trabalhei de garçom, por motivação de ganhar algum dinheiro, e servi o exército no serviço militar obrigatório, não por motivação, mas porque fui obrigado. É curioso novamente, agora entrando no campo geográfico. Eu nasci, fui criado e moro até hoje em Belford Roxo. A maior cidade do Brasil sem uma sala de cinema por número de habitantes, uma cidade que também não tem teatro, biblioteca e nem mesmo um Sesc, mas o litrão é 7 reais e eu valorizo muito isso. Será que se eu tivesse nascido no centro, aqueles gatilhos que eu tive com teatro, cinema e quadrinhos seriam diferentes? Antes de responder, vou voltar um pouco.
Na minha descoberta do Centro, eu tinha em mente coisas que não me atrevia a dizer em voz alta. Como por exemplo: ‘’Nossa, como os prédios são grandes aqui’’, ou mesmo ‘’Nossa, como tem artista aqui’’. Pessoas cantando na rua, apresentações, teatros, cinemas, museus, bibliotecas. Isso foi outra coisa que demorei pra sacar. No Centro ser artista é uma realidade. Uma possibilidade. Um desejo. E aqui cabe um parêntese: desejo é uma coisa muito ligada à possibilidade, como um jovem vai desejar ser astronauta se na cidade dele não tiver um céu com uma lua? O espaço te motiva a isso, te desperta isso, é real. Existe um cinema ali onde você pode exibir um filme que você venha a fazer. Talvez um conhecido seu já tenha exibido. Então sim, talvez se Belford Roxo tivesse essa perspectiva, eu teria considerado a possibilidade. O plot twist é que eu fui ao cinema em Belford Roxo quando criança. Meu irmão mais velho me levou algumas vezes e depois ele parou de me levar antes de eu completar 10 anos. Depois dos 18 anos eu me dei conta que o cinema foi fechado. Porque eu não senti saudade? Simples, eu passei a ser levado em cinemas mais pro centro. Lá longe. Bem longe.
3. Na constituição diz que a educação é direito de todos!
O Art. 205 da Constituição diz o seguinte: ”A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.”
Bom, ainda bem que ninguém citou nada geográfico nesse artigo. Até porque não interessa se você mora em Belford Roxo e tenha que ir para a UFF estudar cinema, ou mesmo more num estado que não tenha um curso de cinema. Você precisa ir até a educação. Logo, só quem tem o poder capital de ir tem o acesso. Logo, penso que a educação não é exatamente direito de todos. Cabe um debate sobre. Mas nem é sobre isso que eu quero debater, é mais sobre o trecho ”será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade”. Rapaz, eu não preciso usar os dedos pra contar quantas vezes a sociedade, o estado ou a família me incentivaram a fazer cinema. (Nenhuma). E não, eu não culpo minha família, cinema era algo tão irreal na minha casa que quando o Sesc me pagou 500 reais para exibir um curta metragem minha mãe chorou. Mas voltando, eu não sei o que aconteceu. Sorte, destino, cagada, efeito borboleta, chame do que quiser. Após minhas frustrações nas profissões motivadas por dinheiro, me dediquei ao teatro e ao cinema, só não escrevi um quadrinho por não saber desenhar, o que tá próximo de mudar, mas o assunto é cinema.
Em resumo, meus amigos me levaram ao teatro e eu me apaixonei. Dediquei uns 7 anos da minha vida ao Teatro e mesmo depois de sair, sinto falta todos os dias. A acessibilidade do Teatro é algo que o cinema devia absorver como aprendizado. Poxa, era uma vertente do cinema, de graça e eu só precisava estar com meu corpo ali, além de tudo, era em Belford Roxo. Ao sentar naquela roda de pessoas que queriam mudar o mundo através de uma peça eu só conseguia pensar em uma coisa: ”essa é a minha galera”. Depois disso, o flerte com a arte educação, o que dava uma mera perspectiva de futura profissão/alguma renda, então eu fui de cabeça. Após esses mais ou menos 7 anos, sentei com um amigo em um período de férias e decidimos fazer um curta metragem. O primeiro filme. O game change, o início do depois, do nada, seco como uma facada falsa. No momento que eu me juntei com um amigo e produzimos nosso primeiro curta metragem eu fui tomado por três descobertas: Primeira: Ok, é possível fazer cinema com um celular. Até então eu achava que precisava de uma produtora e equipamentos que custam o preço de uma casa própria. Eu compreendia o cinema como uma coisa só. Muito influenciado pela TV e Hollywood, claro. Logo eu, um ator, né. Que vacilo. Segunda: Cinema não se faz sozinho. E isso talvez seja um dos pilares do por que eu não tive uma iniciativa antes. Lembro de provocar alguns amigos a fazer um curta e a resposta era sempre a mesma: ”sem câmera?”. Terceira: É isso que eu quero fazer. Lembro exatamente de como foi a sensação. Era o que eu sempre quis. Não conseguia parar de pensar nisso, era como provar sorvete pela primeira vez. Você quer mais. A gente só precisa do estabelecimento que venda o sorvete, ou da sala de cinema, ou do curso. Motivação geográfica, lembra? hehe.
4. Agora um pequeno salto temporal.
Não vou entrar em detalhes muito específicos, mas agora em 2020 eu faço parte de um coletivo que ajudei a fundar lá em 2016, o BaixadaCine. De certa forma me orgulho do coletivo não ter vindo de uma escola de cinema, ou de um cineclube, ou mesmo de uma instituição. Ele veio da necessidade pessoal, íntima e particular de fazer cinema. O BaixadaCine surgiu da fome de cinema. Longe de mim romantizar isso, afinal, acabei de dar um contexto enorme das problemáticas de uma cidade sem cinema. Eu descobri de fato o cinema em 2016, mas eu daria tudo pra ter conhecido o cinema em 2010, ou 2009, ou no ano 2000 quando ainda tinha 4 anos de idade.
O que dá pra tirar desse copo meio cheio, é que se o cinema é possível em Belford Roxo, ele é possível em qualquer lugar. O BaixadaCine tem mais de 10 filmes atualmente. A gente também fundou um cineclube em Belford Roxo que acontece em praças, escolas, bares e centros culturais mensalmente. A gente conseguiu fazer filmes por meio de editais, conseguimos se pagar. Fizemos um curso de cinema na cidade que já formou novos cineastas. Por meio da Lei Aldir Blanc existe uma possibilidade real de fazer um festival de cinema na cidade, estamos escrevendo um livro sobre esse movimento cinematográfico Belforroxense e bem próximos de produzir nosso primeiro longa. Tudo isso sem formação acadêmica e sem uma sala de cinema. De novo, longe de mim romantizar, é que tudo isso tem a ver com democratização do acesso ao cinema. É meu sonho ter uma sala de cinema em minha cidade onde eu possa exibir nossos filmes, e caso venha a ter uma escola de cinema, me sentirei o cineasta mais feliz do mundo.
5. O que faz a periferia parecer o inferno, é a expectativa que o Centro pareça com o paraíso.
Lembra do que eu falei do Centro? Pois então, a última coisa que eu demorei pra perceber foi o lugar de onde eu vim. Hoje eu entendo completamente meus irmãos e sinto que eles estavam muito à frente de mim quando bebiam em suas casas com seus amigos, seus banheiros limpos e suas cervejas infinitamente mais baratas e geladas enquanto eu estava na Lapa. A cerveja quente, o cheiro de mijo nas calçadas e o preço altíssimo de tudo confundia minha percepção. É a única explicação plausível que eu tenho pra isso. Mas brincadeiras à parte, depois que descobri Belford Roxo, eu não quis saber de nenhum outro lugar. Ou melhor, descobri que eu não precisava ir a lugar nenhum.
Belford Roxo me ofereceu uma perspectiva única. Seja em demanda de trabalhos audiovisuais, seja na particularidade geográfica que permite visões muitos particulares em nossas produções, seja pelo pertencimento, seja pela possibilidade de fazer um filme com um vizinho, seja pelo litrão de Brahma vendido a 3 por R$ 20, seja pelos pontos de ônibus de coração, seja pelo motivo mais banal, é um motivo que tem um peso muito maior do que acreditar que ”no centro é melhor”, como costumava pensar.
Sinto que existe uma pressão da sociedade que faz com que busquemos os grandes centros, e aí sim, por motivos muito banais, como uma vista bonita, que acabamos por acreditar que vale a pena sim, pagar 15 reais em uma longneck na lapa, ao pagar 7 reais em um litrão em Belford Roxo. Ou pagar 2000 reais em um curso técnico com objetivo de fazer um filme, mas não tentar de forma alguma fazê-lo de forma independente, como se de alguma maneira, fosse errado essas duas possibilidades serem plausíveis. É 8 ou 80. Ou você tem um diploma ou você não é ninguém. Não importa o que você quer, importa como a sociedade vê o que é certo. Particularmente acho triste, até porque, de minha parte, só quero fazer filmes e tomar uma cervejinha a preço acessível. Belford Roxo me deu isso.
6. Beleza, mas qual a moral disso?
Existe um discurso muito problemático que permeia nossos sonhos quando nascemos numa periferia, na margem ou em lugares que são apenas distantes. Absolutamente todas as vezes que eu trago um debate sobre termos uma sala de cinema em Belford Roxo, sempre existe uma maioria de pessoas que dizem que é complicado. E quando se fala em curso de cinema, só falta me xingarem. ”Díficil”, ”complicado”, ”utópico” e até ”impossível” são palavras que saem da boca das pessoas com mais facilidade que a palavra ”como?”. A gente aprende a não olhar pro céu, mesmo que ele esteja bem acima de nossas cabeças. Eu nem preciso listar os dados sobre salas de cinema do Brasil (ou preciso?), bom, os números de uma pesquisa do IBGE de 2018 mostram que 5.109 dos 5.570 municípios do Brasil não têm salas de cinema. Será que todos os habitantes dessas 5.109 cidades também acham ”complicado” fomentar cinema nesses lugares? Ou será que tem mais uma alma viva por aí que também pensa que COMPLICADO é não ter cinema? Eu não sou o dono da verdade e nem tenho formação pra dizer como vamos mudar esse cenário, mas peço que reflitamos sobre isso. Do jeito que está não dá. Precisamos de novas ideias, novas formas, metodologias e propostas. Precisamos urgentemente fazer o cinema chegar onde não se tem cinema. Precisamos do cinema aqui em Belford Roxo.
Uma coisa de minha parte eu posso te prometer: Você ainda vai ouvir falar muito sobre Belford Roxo. Hoje existem Belforroxenses pensando cinema vinte e quatro horas por dia. Estão ligados. Acelerados. Em breve vão estar na TV, com seus filmes ou seus rostos. Em breve você vai ouvir falar de um curso de cinema muito bom que seu amigo participou. Em breve você vai conhecer Belford Roxo e perceber que a única coisa que você conhecia era o nome da Cidade. Em breve você vai ouvir sobre um festival de cinema em Belford Roxo e vai inscrever seu filme torcendo pra ele ser selecionado. Em breve, muito em breve você lerá livros sobre o cinema em Belford Roxo e vai ficar surpreso ao folheá-lo. Em breve você vai estar na Lapa falando pro seu crush que em Belford Roxo o litrão é 7 Reais. Em breve tudo isso será história, agora é apenas uma previsão do que já está em processo. Estamos à margem, mas o cinema chegou aqui. É um cinema Plausível, com ”P” de Popular, de Periferia.
Cinema de Pedreiro.
Dizem por aí que uma galera vai chegar e revolucionar.
Não dê ouvidos.
Essa galera já chegou.
7. Referências
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Centro Gráfico, 1988.MARCHESINI, Lucas. Quase 90 milhões de brasileiros vivem em cidades sem cinema. Metrópolis,06 nov. 2019. Disponível em: <https://www.metropoles.com/entretenimento/cinema/quase-90-milhoes-de-brasileiros-vivem-em-cidades-sem-cinema>. Acesso em: 17 jan. 2021.