Possibilidades de interfaces
ESTE TRABALHO EMPREGA O FEMININO PARA REFERIR-SE A PESSOAS DE DIFERENTES GÊNEROS.
1. Introdução
O presente trabalho é um recorte da minha dissertação intitulada “Mulheres na frente e atrás das telas – gênero e direitos das mulheres no ensino de Sociologia: possibilidades de abordagem a partir de filmes”1 apresentada ao PROFSOCIO UNESP Marília para obtenção do título de Mestra em Sociologia em Rede Nacional, que teve por objetivo apresentar às professoras que lecionam Sociologia na educação básica algumas possibilidades de uso de filmes como ferramenta pedagógica para a abordagem da temática “gênero e direitos das mulheres” a partir de suas respectivas narrativas, relacionando-as com conceitos e teorias de autoras das Ciências Sociais. Para o desenvolvimento do trabalho selecionei cinco filmes2 contemporâneos de curta e média metragem, concebidos e realizados por mulheres brasileiras, que abordam algumas das principais pautas do movimento feminista contemporâneo, inclusive algumas demandas do feminismo interseccional. Utilizando a metodologia Tela Crítica proposta por Giovanni Alves (2010), apresentei relatórios de análises dos filmes, as quais, por sua vez, foram feitas sob a perspectiva teórica do feminismo decolonial.
Neste texto apresento uma breve discussão teórica sobre relação entre cinema e educação, feminismo e cinema, assim como o uso do filme como ferramenta pedagógica na educação brasileira em geral, mas mais especificamente no e a partir do ensino da Sociologia. Além disso, proponho uma brevíssima reflexão sobre a Lei Nº. 13.006, de 26 de junho de 2016, que acrescenta o § 8 ao artigo 26 da Lei nº 9.394/96 – Lei de Diretrizes e Bases da Educação – a qual estabelece a obrigatoriedade da exibição de filmes nacionais por duas horas mensais.
Minha participação como pesquisadora no campo Cinema e educação é fruto do exercício do magistério como professora efetiva da disciplina na rede estadual de educação do Rio de Janeiro desde 2005 e como educadora audiovisual de abril de 2014 a julho de 2019 no NuCiNi – Núcleo de Cinema e Educação, órgão ligado à Secretaria Municipal de Educação, Ciência e Tecnologia de Niterói, concebendo, coordenando, produzindo e mediando sessões de cineclubes que agregavam diferentes perfis de público, com distintas dinâmicas de funcionamento, mas com o princípio norteador comum que é o uso do filme como ferramenta de educação não formal voltada à reflexão e práticas sociais que valorizem a cultura dos direitos humanos. O diálogo entre essas experiências despertou meu interesse acadêmico em estudar o uso de filmes como ferramenta pedagógica na escola, vinculando-me, dessa forma, à linha de pesquisa Práticas de Ensino e Conteúdos Curriculares do Mestrado Profissional de Sociologia em Rede Nacional na Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – UNESP Marília e ao Grupo de Estudos de Imagem, Fotografia e Cinema, liderado pelo Professor Paulo Eduardo Teixeira, meu orientador.
Contudo, a escolha do objeto de estudo não foi uma opção meramente acadêmica ou resultante de minha prática profissional. A escolha está ligada, também, à minha paixão por filmes, cultivada desde a infância. Assim, quando ingressei no magistério público estadual (2005), insegura devido à pouca experiência, mas motivada pelo desejo de compartilhar meu entusiasmo com as jovens estudantes, mobilizei esta ferramenta que já me era bastante familiar e incluí no meu planejamento a exibição de um filme por bimestre, como forma a ilustrar temas que trabalhava nas aulas; ou seja, exibia filmes, geralmente comerciais, que, no meu julgamento, despertariam maior interesse das estudantes, porém escolhendo aqueles que mantinham ligação com as temáticas e/ou conceitos que eu tinha abordado nas aulas durante o bimestre que terminava. Neste contexto, obviamente, cometi muitos erros. Lembro-me perfeitamente que, ao chegar ao portão do colégio, por diversas vezes, fui interpelada pelas estudantes com a pergunta “Hoje é aula ou filme, professora?”, o que reflete a dicotomia estabelecida pelo senso comum das estudantes e de toda a comunidade escolar entre aula (trabalho sério) e filme (entretenimento). Tal ideia era reforçada pela minha prática espontânea. Passado o tempo, diante das dificuldades institucionais e práticas para a exibição dos filmes tanto nas escolas públicas como na rede privada, a atividade foi ficando cada vez mais rara, sendo usada esporadicamente, como motivadora de debates em sessões fora do meu horário de aula, realizadas voluntariamente.
Em 2014 ingressei no NuCiNi e passei a ter acesso às discussões sobre Cinema e Educação, tornando-me educadora audiovisual e pesquisadora na área. Essa vivência me fez perceber que há outras possibilidades do uso de filmes como ferramenta pedagógica: o filme como conteúdo em si.
2. Cinema, ensino de Sociologia e feminismo: possibilidades de interfaces
No capítulo sobre a Escola de Frankfurt, Robert Stam (2003), traz luz à discussão sobre a potência reflexiva do cinema. Contudo, afirma que alguns estudiosos da cultura de massa criticam o cinema ao afirmarem que ele “convertia o público em uma entidade bovina e passiva” (STAM, 2003, p. 83) e que estes mesmos autores atribuem ao cinema um poder de transmitir mensagens de conformismo moral, estético e político. Entretanto, segundo Stam, Walter Benjamin tinha uma visão diferente, ao sustentar que
[…] o cinema enriquecia o campo da percepção humana e ampliava a consciência crítica da realidade. Para Benjamin, o que tornava o cinema único era, paradoxalmente, o seu caráter não-único, o fato de que suas produções eram disponibilizadas multiplamente, para além de barreiras de tempo e espaço, em um contexto em que o fácil acesso transformava-o na mais social e coletiva das artes (STAM, 2003, p. 84).
Já Ianni (1989), no ensaio em que avalia as principais teorias clássicas e o “compromisso” da Sociologia com o mundo moderno formado a partir do desenvolvimento do capitalismo, parece referendar a premissa de que o filme se constitui como “reflexo estético da vida social” (ALVES, 2010, p. 11), ao utilizar um trecho do clássico Tempos Modernos, de Charles Chaplin:
Numa das mais avançadas expressões da Modernidade que é o cinema, surge o lumpen olhando espantado para os outros, as coisas, o mundo. Carlitos é um herói trágico. Solitário e triste, vaga perdido no meio da cidade, um deserto povoado pela multidão. Farrapo coberto de farrapos. Fragmento de um todo no qual não se encontra; desencontra-se. Caminha perdido e só, no meio da estrada sem-fim. Parece ele outro, outros e muitos, todos os que formam e conformam a multidão gerada pela sociedade moderna. Um momento excepcional da época da Modernidade. Essa é uma das mais extremas e cruéis sátiras sobre o Mundo Moderno. Carlitos revela a poética da vida e do mundo, a partir da visão paródica do lumpen que olha a vida e o mundo a partir dos farrapos, da extrema carência, de baixo-para-cima, de ponta cabeça. (IANNI, 1989, p. 23)
Nesse pequeno fragmento, o autor mobiliza conceitos importantes para a análise sociológica sobre a temática “trabalho”, tais como alienação, classe social, pobreza etc., presentes no filme. Dessa forma, acredito que a presença de filmes na escola por meio da Sociologia abre a possibilidade para que estudantes façam leituras dos conteúdos dos filmes além do puro lazer, fazendo-as perceberem-se não como meras espectadoras da vida social, mas como agentes sociais, capazes de intervir na realidade. Essa pretensão está de acordo com a proposta metodológica de Martins (2000), que é a de tomar o que é liminar, marginal e anômalo como referência de compreensão sociológica. Já em seu ensaio, Sociologia da fotografia e da imagem, Martins (2008) se propõe a estudar o documento visual como um dos instrumentos indispensáveis da leitura sociológica dos fatos e dos fenômenos sociais. Com Martins, a inserção da imagem nas pesquisas das Ciências Sociais abriu um amplo terreno de indagações, dúvidas e experimentos.
Cunha e Totti (2002), por ocasião da comemoração dos 70 anos do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, desenvolvem uma reflexão na qual afirmam que tal documento vinha trazer uma nova forma de ver a escola ao requisitar a ciência. No que diz respeito às Ciências Sociais, de acordo com mesmos autores, o movimento de educadores iniciado nos anos 1920, que acabou por lançar o Manifesto em 1932, desenhou um deslocamento da referência teórica de tradição europeia, de cunho analítico meramente abstrato, para uma Sociologia que propunha perceber a educação como mecanismo de “promoção social dos indivíduos pela ação da escola” (CUNHA; TOTTI, 2002, p. 258), o que levou a um intenso debate referente ao desenvolvimento da educação. Vale ressaltar que, entre as proposições estruturais do manifesto, a relação cinema-educação foi significativamente considerada, contudo, segundo Ferreira (2018):
(…) tais proposições não foram plenamente incorporadas pela Presidência da República (com o desdobramento dos acontecimentos políticos dos anos subsequentes que culminaram na ditadura do Estado Novo), mas o governo Vargas impulsionou a utilização dos novos meios de comunicação e entretenimento para a educação (FERREIRA, 2018, p. 37).
No que se refere à legislação atual sobre a presença do cinema na escola destacamos a Lei nº 13.006 de 2016, que altera a LDB, incluindo a exibição de filmes nacionais por pelo menos duas horas mensais. Mesmo não regulamentada, e apesar de estarmos vivendo uma conjuntura bastante diferente da época de sua aprovação, a lei traz a necessidade de uma profunda discussão sobre a relação entre educação e cinema que poderia lançar um desafio para as escolas das diferentes redes de ensino: compreender o cinema não apenas como fonte de lazer e entretenimento, mas também como instrumento de cultura e de produção de conhecimentos. Neste sentido, Duarte (2002) afirma que:
(…) o cinema ainda não é visto pelos meios educacionais como fonte de conhecimento. Sabemos que a arte é conhecimento, mas temos dificuldade em reconhecer o cinema como arte (com uma produção de qualidade variável, como todas as demais formas de arte), pois estamos impregnados da ideia de que cinema é diversão e entretenimento, principalmente se comparado a artes “mais nobres”. Imersos numa cultura que vê a produção audiovisual como espetáculo de diversão, a maioria de nós, professores, faz uso dos filmes apenas como recurso didático de segunda ordem, ou seja, para “ilustrar”, de forma lúdica e atraente, o saber que acreditamos estar contido em fontes mais confiáveis. (DUARTE, 2002, p. 87)
É importante salientar que a lei deixa clara a necessidade de integrar a exibição dos filmes nacionais com a proposta pedagógica das escolas. Isso quer dizer que não basta exibi-los — faz-se imperativa uma reflexão sobre a proposta e a definição de objetivos claros e coerentes, buscando desnaturalizar essa visão ainda hegemônica à qual Duarte se referiu. Além disso, é possível pensar que, sob a ótica da produção cinematográfica nacional,
[…] a força da Lei nº 13.006 reside na possibilidade de contato frequente dos alunos com filmes nacionais, que encontram nas salas de cinema, na televisão e na internet a concorrência de grandes empresas estrangeiras consolidadas na produção e distribuição de filmes. A aprovação desta Lei é o prelúdio de uma democratização do cinema nacional que tem como desdobramento as possibilidades de despertar a curiosidade dos alunos para uma área que carece de profissionais. Além da presença dos filmes nacionais, abre-se espaço para que autores, diretores, roteiristas e personagens adentrem também no espaço escolar para dialogar com os alunos e — por que não? — com a comunidade escolar sobre os filmes, propiciando assim uma interação entre a escola e o universo do cinema (ANGREWSKI, 2016, p. 46).
A eficácia dessa lei está no fato de que ela pode fortalecer a professora na confiança de que o cinema (ou o filme) pode ser, sim, um material apropriado, capaz de provocar na estudante as reflexões necessárias que conduziriam à atitude crítica. Neste sentido, a Lei pode e deve ser entendida em seu caráter prático, pois, para a professora que entende o seu papel de mediadora no processo de construção do conhecimento, ela assegura sua iniciativa de levar para o espaço escolar materiais como estratégias e recursos que podem contribuir no ensino das teorias, dos conceitos e dos temas sociológicos.
Dessa maneira, acreditamos que os filmes consistem numa potente ferramenta pedagógica para o exercício de reflexão crítica. A literatura sobre Cinema e Educação parece referendar a hipótese da qual partimos. Xavier (2008), por exemplo, afirma que o cinema que “educa” é o que nos faz pensar, não no sentido de “transmissão de conteúdo”, mas como gesto criativo, capaz de provocar a reflexão e o questionamento. Já Ferreira (2018), que toma o cinema como um mediador do conhecimento (no caso de seu trabalho, do conhecimento histórico), afirma que seu uso pode adquirir dupla característica: pode ser aproveitado tanto como fonte quanto como objeto de estudo. Segundo o autor, esse movimento favorece a ampliação do entendimento do uso educativo do cinema, rompendo, pois, com a tradicional perspectiva de considerá-lo ilustração do conteúdo escolar.
A professora Adriana Fresquet, coordenadora do grupo de pesquisa CINEAD/LECAV e o programa de extensão “Cinema para aprender e desaprender” da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, nos traz outro subsídio relevante quando afirma que:
[…] se desejamos o cinema na escola é porque imaginamos que a escola é um espaço, um dispositivo, em que é possível inventar formas de ver e estar no mundo que podem perturbar uma ordem dada do que está instituído, dos lugares de poder. Assim, apostar no cinema na escola nos parece também uma aposta na própria escola como espaço onde estética e política podem coexistir com toda a perturbação que isso pode significar (FRESQUET, 2015, p. 8).
Por fim, ressaltamos que o uso do cinema como recurso pedagógico pode se relacionar com umas das finalidades do Ensino Médio, exposto no inciso III da seção IV da LDB (Brasil, 1996): “o aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico” e, também, nas Orientações Curriculares Nacionais de Sociologia (2006):
O uso de filmes na escola tem sido realizado segundo a necessidade de inovação dos recursos didáticos e o filme como objeto de análise e, portanto, como reflexão sobre a realidade – uma modalidade de pensamento – tem se reduzido a pesquisas acadêmicas e à crítica de jornais. Assim, não se visa apenas a reforçar, legitimando, a incorporação de uma nova tecnologia de ensino – a TV, o vídeo e o DVD, o cinema – à sala de aula. Pretendemos levar a uma reflexão sobre o uso do filme como recurso e observar seus efeitos e defeitos; pois aqui, diferentemente do que se diz sobre a TV de modo geral – que o meio é neutro e que tudo depende das intenções de quem o usa –, acredita-se que o próprio meio também “é uma mensagem”, porque os elementos de sua constituição, no caso do filme, já determinam a sua recepção. (OCN Sociologia, Brasil, 2006, p. 130).
Neste sentido, faz-se necessário distinguir cinema e filme. Para tanto, valho-me da contribuição oferecida por Rosália Duarte (2002): a autora afirma que o cinema seria um “amplo aparato dimensional que engloba fatos que vêm antes, depois ou por fora do filme, como a infraestrutura da produção, o sistema de financiamento, a seleção de equipes técnicas e de atores” (DUARTE, 2002, p. 86), enquanto o filme é “apenas uma pequena parte desse aparato, uma amostra, um produto construído a partir de uma determinada configuração de montagem que podemos identificar como cinematográfica” (DUARTE, 2002, p. 86).
Mas que filmes usar?
O professor e pesquisador Cezar Migliorin, ao apresentar a ementa da disciplina Cinema e Processos Subjetivos do PPGCINE3 – Programa de Pós-Graduação em Cinema da Universidade Federal Fluminense, afirma que, desde o início do século XX, estudiosos se debruçaram sobre a relação do cinema com a educação, questionando sobre as formas como o cinema pode e vem afetando indivíduos e grupos. Em anos recentes, com a ênfase na produção de cinema por grupos não profissionais, a questão se coloca de maneira singular, agora centrada nas formas como a criação de imagens em escolas, comunidades indígenas, grupos de bairro, entre outros, participa dos processos subjetivos. O professor faz a indagação sobre como a criação de si é atravessada por uma criação de imagens em forte relação com a realidade. Chama isso de “engajamento subjetivo com a prática cinematográfica”, afirmando que essa posição não é estranha à história do cinema. Segundo ele, o cinema não profissional pode ser visto como práticas de grupo em que estão colocadas relações de cuidado consigo e com o mundo, ampliando formas de vida e relações de alteridade, inseparáveis de processos inventivos.
Neste contexto, vale ressaltar que, no capítulo denominado A intervenção feminista, do já mencionado livro de Robert Stam, o autor pontua que, no período pós-68 vê-se surgir uma nova política de movimentos sociais, como o feminismo, a liberação gay, o apoio às minorias e a defesa da ecologia, fruto da crescente descrença em relação às teorias totalizantes. Assim, segundo Stam, paulatinamente o foco da teoria do cinema radical (período anterior) deslocou-se das questões de classe e ideologia para outras preocupações que identifiquei como sendo ligadas às pautas identitárias:
O distanciamento do marxismo não necessariamente significou o abandono da política de oposição; significou, em lugar disso, que o impulso de oposição informava agora um diferente conjunto de práticas e interesses. A classe e a ideologia haviam dominado as análises nos anos 60, 70 e 80, mas começaram a ser deixadas de lado em favor do “mantra” de raça, gênero e sexualidade, a um só tempo mitigado (visto que destituído da ideia de classe) e intensificado. Boa parte da discussão agora girava em torno de questões feministas. A intenção feminista era investigar as articulações de poder e os mecanismos psicossociais na base da sociedade patriarcal, com o objetivo último de transformar não apenas a teoria e crítica do cinema, mas também as relações sociais genericamente hierarquizadas em geral. O feminismo cinematográfico vinculava-se, nesse sentido, ao ativismo dos grupos de conscientização, às conferências temáticas e às campanhas políticas que traziam à tona variados temas de particular importância para a mulher: estupro, violência doméstica, educação infantil, direito ao aborto etc., sempre em um ambiente no qual “o pessoal é político” (STAM, 2003, págs. 192-193).
Segundo Stam, o feminismo cinematográfico, da mesma forma que o feminismo de modo geral, pauta-se no questionamento ao poder patriarcal que se utiliza da diferença biológica para justificar a hierarquização entre homens e mulheres e subjugá-las. Dessa forma, as primeiras manifestações da onda feminista nos estudos de cinema ocorreram, segundo o autor, após os festivais de cinema de mulheres de Nova York e Edimburgo, em 1972 e com a publicação de alguns livros de autoras feministas que se tornaram populares.
Seguindo a pista dada por Robert Stam, fiz um breve levantamento sobre autoras que se dedicaram a estudar a relação entre cinema-feminismo e constatei que Ann Kaplan se destaca como uma das pioneiras da abordagem feminista na crítica cinematográfica, nos anos 1970. Juntamente com teóricas como Laura Mulvey, Mary Ann Donne e Janet Bergstrom, forneceu nova perspectiva para a avaliação do chamado cinema clássico narrativo das décadas de 1940 e 1950. De passagem pelo Brasil, onde realizou palestras no Rio, São Paulo e Brasília, Kaplan versou sobre a imagem da mulher nos filmes, a propagação de novas visões sexuais no cinema e sobre a importância e a necessidade da apropriação e revisão das teorias de Freud e Lacan para a reflexão crítica feminista, além de realizar um balanço das produções cinematográficas da época. Kaplan levanta as razões pelas quais a psicanálise é crucial para se entender as diferenças sexuais e as resistências da sociedade patriarcal em relação à liberação da mulher e à sua participação igualitária na sociedade, em todos os níveis – como, por exemplo, o modo pelo qual a mulher é retratada nas produções hollywoodianas, modo que, segundo ela, sempre emerge do inconsciente patriarcal masculino.
Em entrevista concedida a Denise Lopes4, Kaplan afirma que são os medos e as fantasias do homem sobre a mulher que encontramos nos filmes, e não as perspectivas e as inquietações femininas. Argumenta também sobre como o melodrama hollywoodiano pode, em algumas de suas formas, expressar os sofrimentos, conflitos e opressões femininas em função do patriarcado, mas que ainda, em sua grande maioria, os gêneros de Hollywood focam essas questões em relação direta com os homens. De acordo com Kaplan, o conflito dentro da comunidade feminista nos anos 1970 e 1980 fez com que algumas estudiosas acreditassem que teorizar a mulher dentro do inconsciente masculino não as ajudaria a sair da prisão na qual se encontravam, já que muitas vezes as próprias mulheres estavam presas às armadilhas das ideias masculinas sobre elas. Dessa forma, segundo a autora, era preciso dar maior enfoque nas alternativas para a mulher, na construção de novas subjetividades femininas e na militância, para conquistarem direitos sobre seus próprios corpos, direitos iguais no local de trabalho etc.
Influenciada pela crítica feminista da teoria do cinema, que questiona desde as funções exercidas por mulheres em equipes de realização cinematográfica, até e principalmente a representação da mulher efetivada na cinematografia, Gubernikoff (2016) afirma que o cinema – sobretudo o cinema americano – molda as individualidades femininas desde os primórdios de sua história, definindo padrões não só de comportamento, de como a mulher deve ser e agir, como também os padrões estéticos. Com a intenção de contextualizar a teoria feminista do cinema dentro da realidade do Brasil, a autora procura analisar o processo de emancipação da mulher brasileira sob a égide da ideologia capitalista, e os reflexos decorrentes das relações de poder em uma sociedade patriarcal. A partir daí, segundo Gubernikoff, nossa realidade se encaixa, em alguma medida, na linha de pensamento proposta pelas teóricas feministas levando-a a buscar respostas para algumas de suas inquietações – como, por exemplo, o questionamento de como a “falta de espaço” das mulheres repercute no cinema brasileiro e como os padrões hollywoodianos que ditaram e ainda ditam um estilo de vida para o mundo chegaram e se transformaram no Brasil. A pesquisa de Gubernikoff vai em direção à teoria feminista do cinema e à produção de filmes de mulheres emergente no Brasil no final da década de 1980:
A atuação de mulheres no cinema não chega a construir uma nova linguagem, mas desperta a atenção para novas ideologias inerentes à imagem. O que se propõe é um cinema de vanguarda, mas que não rompa com o processo de identificação que o cinema tradicional oferece. E, através de um produto artístico, dar oportunidade à manifestação de certas qualidades e inquietações femininas, até então despercebidas pela sociedade. O cinema de mulheres deve liberar visualmente a imagem da mulher e propor temas muitas vezes combatidos pela opinião pública, como a questão do aborto, da violência contra a mulher, dos conflitos e tensões sociais expressos através da família ou do trabalho e dos desencontros amorosos – temas esses não facilmente justificáveis em uma sociedade onde predomina a hipocrisia. (GUBERNIKOFF, 2016, p. 36 e 37).
Neste contexto, cabe retomar, mais uma vez, Robert Stam, que faz uma crítica à teoria do cinema ao afirmar que “é um empreendimento internacional e multicultural, mas frequentemente permanece sendo monolíngue, provinciana e chauvinista” (STAM, 2003, p. 18). Segundo Stam, o feminismo provê uma matriz metodológica e teórica de grande importância que produz efeitos em todos os limites de pensamento sobre o cinema: autoria, linguagem cinematográfica, estilo, hierarquias e processos de produção industriais e sobre as teorias da espectatorialidade. Por fim, Stam destaca que o período da teoria feminista do cinema marca o apogeu do cinema realizado por mulheres.
3. Mulheres na frente e atrás das telas
Segundo Angrewski (2016), o cinema de mulher, feito por mulheres, propõe romper com o processo de cristalização de estereótipos atribuídos às mulheres, como os da prostituta ou da virgem, da vítima ou da neurótica. Assim, o cinema feito por mulheres pretende conferir, de maneira gradual, uma tomada de consciência feminina, ao mesmo tempo em que propõe uma nova abordagem, tanto da teoria quanto da crítica cinematográfica.
Como observamos anteriormente, é a partir de 1968 que passa a se discutir a questão da discriminação da mulher pelo cinema e a se construir uma nova imagem, especialmente fora de Hollywood, proposta que encontra voz no cinema independente e alternativo. Nesse contexto, surgem diversas manifestações destacando o cinema de mulheres, que ganha força em festivais, mostras e publicações sobre o tema. O cinema torna-se, assim, uma arma poderosa e importante forma de expressão para mulheres.
No Brasil, no Festival de Gramado de 1986, realiza-se a Mostra Mulheres de Cinema e, no Rio de Janeiro, a Mostra Olhar Feminino no Festival Internacional de Cinema, Televisão e Vídeo. Em 1987, o IX Festival Internacional de Cinema Latino-Americano faz uma homenagem às pioneiras do cinema na América Latina, e em Brasília acontece o I Vídeo Mulher. Em 1988/89, realizam-se o I e o II Festival da Mulher e o Cinema, em Mar Del Plata, cujo critério principal era a expressão da mulher por meio do cinema e do vídeo; o evento reuniu diretoras do mundo inteiro.
Ressalta-se, assim, a importância da produção de mulheres nos dias atuais, quando filmes produzidos por elas têm sido sucesso mundial de bilheteria, além do número crescente de mostras e festivais internacionais de cinema destinados a discutir a produção cinematográfica feminina, como na Alemanha, em Havana e no Rio de Janeiro, o que demonstra um mercado potencial para filmes de temática e produção feminina. Seu sucesso indica o grau de interesse por essa discussão.
Porém, de acordo com dados publicados na página eletrônica Mulher no Cinema5, a desigualdade de gênero, especialmente por trás das câmeras, é ainda uma realidade em diferentes cinematografias. Em noventa anos de Oscar, apenas uma mulher ganhou o prêmio de direção e só outras quatro foram indicadas. Halle Berry continua sendo a única mulher negra a ter conquistado o Oscar de melhor atriz, e Viola Davis, a única a conquistar o Emmy de atriz de drama. Criado em 1946, o Festival de Cannes só premiou uma diretora com a Palma de Ouro. Da mesma forma, no cinema brasileiro, mulheres negras são o grupo menos representado na frente e por trás das câmeras.
Ainda de acordo com o Mulher no Cinema, só 16% dos filmes brasileiros lançados nos cinemas em 2017 foram dirigidos exclusivamente por mulheres – nenhuma delas negra. Ainda de acordo com a página, estudos apontam que personagens femininas, em geral, têm menos falas e mais cenas de nudez do que personagens masculinas. Tal informação é fruto de estudo da Agência Nacional do Cinema – Ancine. O mesmo estudo aponta que mulheres negras não dirigiram nem escreveram nenhum dos 142 longas-metragens brasileiros lançados nas salas do país em 2016, de acordo com o primeiro levantamento da Ancine a contemplar dados sobre raça. Segundo a pesquisa, 75,4% dos filmes analisados foram dirigidos por homens brancos, 19,7% por mulheres brancas e 2,1% por homens negros. A presença dominante de homens brancos também é registrada em outras funções, como roteiristas (59,9%), diretores de fotografia (85%) e diretores de arte (59%). Mulheres brancas são maioria apenas na produção executiva, com percentual de 36,9% contra 26,2% de homens brancos. Na questão racial, porém, o cenário segue profundamente desigual: homens negros assumiram 2,1% da produção executiva enquanto mulheres negras não assinaram nenhuma produção sozinhas, participando apenas de equipes mistas. A presença de pessoas negras é reduzida também em frente às câmeras: constituem apenas 13,4% dos atores e atrizes que atuaram nos 97 filmes brasileiros de ficção lançados em 2016 – ainda que representem 54% da população brasileira. Mais: 42,3% desses longas não têm nenhum/a artista negro/a no elenco.
Diante disso, em minha dissertação, trabalho que originou este artigo, apresentei um conjunto de filmes6 para abordagem da temática “gênero e direitos das mulheres” no ensino de Sociologia na educação básica. Esses filmes procuram contemplar as vozes e o protagonismo de quem lhes é de direito, ou seja, das próprias mulheres, sejam elas negras ou brancas, jovens ou idosas, trabalhadoras do campo ou da cidade, estudantes, homossexuais, dentre tantas outras, que trazem para reflexão suas trajetórias, seus olhares, suas angústias, suas vitórias, enfim, seus saberes insurgentes, estando elas à frente ou por trás das câmeras e das telas. Tal proposta é uma contribuição na tentativa de “decolonizar” a produção intelectual, trazendo subsídios dos movimentos sociais, sobretudo dos movimentos feministas, para considerar raça, classe, sexualidade no reconhecimento de diversidade identitária. Vale lembrar que aplicar o pensamento decolonial implica fazer o entrelaçamento entre a teoria-prática com histórias locais de vida e perspectivas de luta. O dinamismo conceitual e analítico das formas decoloniais de viver e pensar, bem como a força criativa de resistência, implicam uma desvinculação da matriz colonial de poder e de seus conceitos “universais” da modernidade ocidental e do capitalismo global, e se envolvem com argumentos e lutas por dignidade e vida contra a morte, a destruição e o desprezo civilizacional.
4. Considerações finais
O silencioso processo de leitura e escrita da minha dissertação nos anos de 2018 e 2019 confrontou-se com o estrondoso abismo político, econômico, social e moral em que o Brasil mergulhou no mesmo período. É preciso ressaltar que, desde 2015, o país tem sido alvo de uma implacável ofensiva ultraliberal por parte de setores políticos com viés de extrema-direita. Nesse contexto, a deslegitimação da política como instrumento de negociação do bem comum, promovida, em grande parte, por setores da grande mídia que historicamente estiveram a serviço da classe dominante brasileira, e a fábrica de fake news7 contribuíram para a ascensão ao poder de um grupo político descomprometido e irresponsável socialmente, capitaneado pelo presidente Jair Bolsonaro, eleito em outubro de 2018.
Em menos de dois anos de governo, a gestão bolsonarista levou a cabo medidas ultraliberais, reivindicadas pelo governo como uma forma de administrar a crise econômica atribuída aos governos do PT (2003-2016). Contudo, na prática, tais medidas impuseram graves ataques à classe trabalhadora, tendo como resultado o aumento do desemprego e do subemprego, da fome, a destruição do meio ambiente, o massacre dos povos indígenas, o desmonte de políticas sociais, a privatização do que restava de empresas nacionais, a entrega dos recursos naturais à iniciativa privada, inclusive internacional, além de progressivos cortes nos orçamentos ligados à saúde e à educação, a fim de pagar os juros da dívida pública, além do incentivo ao machismo e à misoginia, ao racismo, à homofobia e à intolerância religiosa.
A adoção desse modelo de programa político, econômico e social impacta diretamente na restrição às liberdades democráticas, respingando, inclusive, na produção e difusão de bens culturais, como a cinematografia nacional, por exemplo. No que tange aos investimentos no setor audiovisual, a gestão federal tem atacado diretamente o cinema nacional e desvalorizado as produções cinematográficas do país. O atual governo reduziu os investimentos do Fundo Setorial do Audiovisual em 43%.
Entretanto, a despeito desses ataques, a prova de redação do Exame Nacional do Ensino Médio 2019, aplicada em 3 de novembro de 2018, surpreendeu a todas ao trazer como tema a “Democratização do acesso ao cinema no Brasil”. O tema da redação colocou em pauta para a juventude brasileira algo que educadoras, cineastas, produtoras, pesquisadoras e estudantes de cinema, e também eu, vimos propor: incitar uma reflexão nacional sobre e a partir do cinema como ferramenta de inclusão no país, abrindo brecha, inclusive, para a reflexão por parte das estudantes sobre a importância de uma educação antirracista e antimachista. Afinal, a escola sendo um espaço crucial de socialização da atual e de futuras gerações, precisa tomar para si a obrigação de enfrentar preconceitos e os estereótipos atribuídos às meninas e aos meninos.
5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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ANGREWSKI, Elisandra. Cinema Nacional e Ensino de Sociologia: como trechos de filmes e filmes na integra podem contribuir com a formação crítica do sujeito. Curitiba, 2016. Dissertação (Mestrado em Educação) – Setor de Educação. Universidade Federal do Paraná.
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_______ Ministério da Educação. Orientações Curriculares Nacionais: ensino médio. Secretaria de Educação Média e Tecnológica. – Brasília, 2006.
_______ Ministério da Educação. Parâmetros Curriculares Nacionais: ensino médio. Secretaria de Educação Média e Tecnológica. – Brasília, 1999.
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DUARTE, Rosália. Cinema e Educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.
FERREIRA, Rodrigo de Almeida. Luz, câmera e história: práticas de ensino com o cinema. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2018 – (Coleção Práticas Docentes)
FRESQUET, Adriana. Cinema e Educação: reflexões e experiências com professores e estudantes de educação básica, dentro e “fora” da escola. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013 (Coleção Alteridade e Criação, 2).
GUBERNIKOFF, Giselle. Cinema, identidade e feminismo. São Paulo: Editora Pontocom, 2016.
IANNI, Octavio. A Sociologia e o mundo moderno. Tempo Social; Ver. Sociol. USP, São Paulo, 1(1): 7-27, 1. sem. 1989.
KAPLAN, E. Ann. A mulher e o cinema: os dois lados da câmera. Rio de Janeiro: Rocco, 1995.
MARTINS, José de Souza. A sociabilidade do homem simples: cotidiano e história na modernidade anômala. São Paulo: Hucitec, 2000.
__________. Sociologia da Fotografia e da Imagem. São Paulo: Contexto, 2008.
STAM, Robert. Introdução à teoria do cinema. Campinas, SP: Papirus, 2003 (Coleção Campo Imagético).XAVIER, Ismael. A experiência do cinema. RJ: Edições Graal – Embrafilmes, 1983.
- Disponível em <http://hdl.handle.net/11449/193438>. ↩︎
- As minas do rap, de Juliana Vicente; Kbela, de Yasmin Thayná; #MENINAPODETUDO, do Coletivo ÉNóis; Mucamas, do Coletivo Nós, Madalenas; Ou isso ou aquilo, de Hadija Chalupe e Raquel Stern. ↩︎
- http://www.ppgcine.cinemauff.com.br/disciplinas_em_curso.php Acessado em 17 de fevereiro de 2019. ↩︎
- Jornalista e Mestre em Comunicação, Imagem e Informação pela UFF. Entrevista realizada com a teórica da crítica feminista Elizabeth Ann Kaplan, professora do Instituto de Humanidades da Stony Brooks, nos Estados Unidos, para o curso “A Construção do Olhar”, durante o seminário A Mulher no filme noir, realizado na UFF, sob a coordenação do curso de pós-graduação em Comunicação, Imagem e Informação. ↩︎
- https://mulhernocinema.com/ acessado em 4 de novembro de 2019. ↩︎
- Conferir em https://repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/193438/neves_abm_me_mar.pdf?sequence=4&isAllowed=y págs. 63-68. ↩︎
- http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2018-10/um-dia-da-eleicao-fake-news-sobre-candidatos-inundam-redes-sociais, acessado em 18 de novembro de 2019. ↩︎