1. Introdução

Este texto não é tanto um, mas vários. Com isso quero dizer que ele não busca transmitir uma mensagem que pode ser encerrada em uma estrutura como introdução-desenvolvimento-conclusão ou transposta para um argumento que utilize-se de ideias expostas e defendidas em seu decorrer – ele é, por outro lado, intencionalmente uma porção de fragmentos colocados em sequência. Nenhum destes fragmentos encontra-se no texto para dar continuidade ao anterior. O modelo de escrita aqui é o de propor ideias soltas, mas ideias mobilizadas por um determinado objeto: neste caso, o segundo capítulo de A Hipótese-Cinema, de Alain Bergala (2008).

O que segue se aproxima bastante de uma “edição comentada” de um livro feita a partir de anotações pessoais. O interesse por produzir esse tipo de revisão comentada parte por observar a importância de Bergala, que, desde que entrou nas práticas de Cinema-Educação no Brasil por meio de nomes como o de Adriana Fresquet (2013), vem sendo cada vez mais citado como referência ou fundamento teórico para trabalhos que assumem posições sempre diferentes no espectro pedagógico. Uma das intenções desse texto é evitar alguns (efetivamente, muitos) equívocos vindos da citação de passagens selecionadas como suporte para um determinado ponto sem que seja levado em conta que essas passagens se inserem, na obra do Bergala, como uma peça dentro de uma teoria, uma Hipótese-Cinema, e que, portanto, elas muitas vezes defendem algo bem diferente do que aparentam à primeira vista se tomadas em contexto. Assim, a interpretação que daremos de um trecho levará em conta seu papel na obra como um todo. Assumindo Bergala como um autor de Cinema-Educação e sua obra como uma proposta de teoria que busca explicar um fenômeno pedagógico do Cinema e dar conta de prever outros (por exemplo, qual o papel do professor ou do Cinema em um ambiente pedagógico como a escola), espero propor uma interpretação em diálogo com outros autores da Pedagogia ou do Cinema-Educação, revelando seus desdobramentos e, principalmente, contrapontos.

O ideal para a leitura do texto seria espalhar os fragmentos como notas de rodapé nas páginas de alguma edição do A Hipótese Cinema, ou então dividir as páginas lado a lado, ou ainda anexar os comentários ao fim do capítulo em questão. Isso facilitaria um bocado as coisas, mas, na inviabilidade de fazê-lo, o recomendável é ter o livro em mãos junto com os comentários abaixo e procurar sempre as passagens nas páginas correspondentes antes de ler o que se diz sobre elas.

2. Quando diz “A grande hipótese de Jack Lang sobre a questão da arte na escola foi a do encontro com a alteridade” (p. 29),

Finalmente a expressão “pedagogia do cinema” pode ser usada para se referir a questões pedagógicas, e não estritamente cinematográficas. O contato entre dois sujeitos em diversas dimensões – quem dirá então a troca de processos subjetivos, o imaginar-como-o-outro-sente, a empatia, etc – já eram entendidas como caras às relações de ensino-aprendizagem no mínimo desde a dialética de Sócrates1, mas também mais recentemente com, por exemplo, os estudos de Vygotsky2. Se pudéssemos construir uma linha colocando em um de seus extremos as teorias que tomam que os seres humanos nascem vazios e seus conhecimentos são construídos ou adquiridos ao longo da vida, e no outro extremo as teorias que postulam os conhecimentos como coisas inatas que só precisam ser trazidas à luz ou relembradas, encontraríamos que o “diálogo” entre pelo menos dois sujeitos sempre (em ambos os casos) foi colocado como algo de grande valor pedagógico. Investigações sobre o ser humano enquanto animal social também apontam para estas direções, por exemplo, nos estudos de como se aprende a língua materna, ou de como se aprende os valores de uma determinada sociedade ou cultura3: a ideia do “outro” e do contato com o outro é sempre fundamental.

Por isso é que uma análise pedagógica da obra de arte tende a tomá-la como mobilizadora de alteridade. Por um lado, a ideia de arte como criação ou forma de expressão (que ecoa muito na teoria do cinema ou nas análises semióticas do cinema, vide METZ, 1972, sobretudo pp. 45-110 – e, neste caso, especialmente na narratologia cinematográfica que busca analisar o cinema como modelo comunicativo entre um narrador e um narratário, vide GAUDREAULT e JOST, 2008) implica uma alteridade no sentido de que se a obra é fruto de uma subjetividade ou se ela carrega de qualquer forma marcas de um sujeito produtor, o contato com ela (neste caso, num primeiro momento, o contato com “o filme”) é portanto o contato também com essas marcas. Teorias de interpretação e percepção, também principalmente no caso da narratologia do cinema, colocam que o pôr-se no lugar dos personagens é um ato necessário para a compreensão da obra – neste caso poderíamos falar até de uma alteridade com o imaginário ou com o fabulado (“personagens”, sujeitos inventados que existem senão no mundo proposto pelo filme) e, consequentemente, com aquele que cria ou organiza o imaginário: o narrador, ou autor e autor implícito (BOOTH, 1983), ou o cineasta hipotético (ALBER, 2010), a depender da teoria que levamos em conta para fazer esta análise. Nota para, por exemplo, análises feministas que apontam esta alteridade forçada (a necessidade de assumir um ponto de vista, de ver pelos olhos de alguém, de ouvir o que ouve alguém, pela qual passa o processo de interpretação de um filme) possui algo como um valor ideológico e pode ser usada para, por exemplo, perpetuar normas de gênero desiguais: ver MULVEY, 1983 – entretanto, alguém poderia, creio, discordar que o termo “alteridade” poderia ser usado para estes casos, mas vale mais, especificamente na Pedagogia e logo no Cinema-Educação, pensar alteridade no sentido mais abrangente de troca com o outro, mantendo assim que ela pode ser usada de modo ético ou antiético, benéfico ou maléfico (em relação a um conjunto de valores), engrandecedor ou apequenador dos sujeitos, etc.

Em todo caso, esta passagem traz um grande avanço para a pedagogia do cinema: ela foi extensivamente trabalhada desde então e, mais recentemente, poderia ser colocada como um dos fundamentos para ideias que se aproximam da que o encontro com a alteridade é tudo ou quase tudo o que tem para oferecer a pedagogia do cinema ou o cinema na escola (ver princípios de uma importante formulação como essa em MIGLIORIN, 2015).

3. Quando diz que “a arte na escola como algo radicalmente outro, que estaria necessariamente em ruptura com as normas clássicas, instituídas, do ensino e da pedagogia” (p. 29),

Bergala se aproxima mais da ideia de que o papel da arte na escola é fugir daquilo que já está lá: estar sempre de saída. Parece um pessimismo de que o resto da escola não pode também, algum dia, livrar-se de todas as “normas clássicas”: se a função de alteridade pedagógica do cinema se dá em ser o que o resto da escola não pode ser e, ao fazer isso, permanecer invariavelmente um corpo estranho ao dispositivo escolar, então o cinema só se garantiria na escola enquanto ela fosse “essa” escola (ou qualquer coisa parecida com ela, institucionalmente).

Mais recentemente, propostas (a essa altura também já ultrapassadas) como a do Inventar com a Diferença4 trazem esse sentido de alteridade proporcionada pelo cinema muito mais na comunidade em si que na escola propriamente dita (na escola, claro, mas como consequência, uma vez que a escola é também parte da comunidade) – a alteridade se dá diante da proposta de abordar um vizinho e pedir que ele narre uma fotografia, ou da de filmar um minuto de vídeo em sua casa e trazer para compartilhar com os colegas em sala (ver MIGLIORIN, 2015, especialmente pp. 185-193).

Outras propostas, como o Cinema, Sujeitos e Territórios5, desdobramento teórico do Inventar, trazem essa alteridade em relação ao “mundo dado”, considerando que cada aluno vem de um território constituído de certa forma e que a aula se coloca ela mesma como experiência estética, isto é, como um parêntese na relação desse sujeito com esse território, seja ele como ou qual for, de modo que as atividades propostas aos alunos buscam ser aplicáveis aos ambientes que vão além da escola (instituição com funcionamento específico) e aos públicos que não sejam formado só por alunos (“alunos”, aqui, claro, como sujeitos submetidos ao dispositivo escolar).

No caso do Bergala, parece que o sentido de “alteridade” é um que se dá na profanação do dispositivo escolar6 – no momento em que se consegue fugir dele: se dá mais quando um sujeito se submete a uma experiência proporcionada pela arte, no caso, pelo Cinema, à medida em que essa experiência entre o sujeito e a obra são em si a quebra do dispositivo escolar; e isso seria o entendimento de “alteridade” que o Bergala sugere aqui. Depois disso, o entendimento de alteridade no Cinema-Educação vem caminhando para ser cada vez mais pensado, simplesmente, como um encontro entre dois sujeitos (REIS e FONSECA, 2019b), ao invés de algo entre um sujeito e uma obra. Por um lado, alteridade como relação entre sujeito e obra, por outro, alteridade como relação entre sujeito e sujeito. Quando Bergala diz em seguida, portanto, que “A hipótese extrai sua força e sua novidade da convicção de que toda forma de enclausuramento nessa lógica disciplinar reduziria o alcance simbólico da arte e sua potência de revelação” (p. 29), explicita ainda mais isso que dissemos: que sua proposta se dá na relação dos sujeitos da escola com a obra de arte, que vem para ser estranha a todo o resto do dispositivo escolar e, assim, profaná-lo. Este uso de alteridade no Cinema-Educação, na verdade, pode ser lido como o mais antigo que se tem (ver LEANDRO, 2001): a novidade vem no seu uso como ferramenta de profanação.

4. Quando diz que “Esta proposta teve a coragem de distinguir a educação artística do ensino artístico” (p. 29),

Bergala distingue dois conceitos: “educação artística” e “ensino artístico”, e coloca, ainda, que a distinção entre os dois se dá no momento em que aquilo que chama de “encontro com a alteridade” aparece. É no encontro com a alteridade que o ensino artístico dá lugar à educação artística. Certamente, entretanto, como vimos, a noção de “ensino” por si mesma já implica alguma coisa de alteridade, por mais que seja uma alteridade, no mínimo, eu diria, nociva ou para lá de ultrapassada: por exemplo, quando, em uma educação tradicional, o professor para diante da turma e dá suas explicações, ele não faz mais que reproduzir uma estrutura. O mais longe que o aluno pode chegar é adquirir os conhecimentos do professor e, assim, assumir o lugar dele, de modo que sua função passará a ser transferir seu conhecimento para que outro alguém assuma seu lugar, e então o ciclo se repetirá indefinidamente sem que se chegue a algum lugar diferente do ponto de partida. Esse fenômeno cabe em uma noção de alteridade. Não é, portanto, por ter alteridade inserida no papel da arte na escola que ela passa de repente a assumir a forma mais atualizada da Pedagogia: ela, a arte na escola, passa apenas a ter uma razão-de-estar pedagógica. Talvez a mais tradicional de todas, talvez a mais inovadora, a depender do tipo de alteridade assumida – é isso que interessa: quando a alteridade entra na escola (e ela forçosamente entra, por ser inerente à Pedagogia), ela entra para reproduzir o mundo ou para transformá-lo?

É dessa forma que tanto o conceito de “ensino artístico” (se formos supor que com ele Bergala se refere ao que se fazia historicamente antes da hipótese do Jack Lang, isto é, a transmissão de saberes sobre arte, história da arte, fazer artístico, etc, por meio de explicações e outras práticas tradicionais) quanto o de “educação artística” já falam de práticas que se dão, necessariamente, por meio de diferentes manifestações da noção de alteridade, embora seja uma delas por demais ultrapassada.

5. Quando diz sobre a arte que “Ela não pode ser concebida pelo aluno sem a experiência do ‘fazer’ e sem contato com o artista, o profissional [. . .]” (p. 30),

Ele traz muito forte uma noção de alteridade que reproduz lugares e estruturas. Agora já defende que os processos pedagógicos do cinema se dão nas relações de alteridade não só, na verdade, do aluno com a obra, mas também do aluno com o artista. O que se pode esperar dessa pedagogia senão uma perpétua troca de lugares entre aquele que sabe fazer e aquele que não sabe fazer? Aqui, falamos do “artista” – ou, melhor O Artista, com todos os ares e pomposidades que se pode esperar desse tipo de elogio no âmbito da cinefilia. Se de um lado há uma busca por fazer o aluno assumir o lugar do artista, o que não deixa de ser válido em infinitas situações, há o pressuposto de que o aluno já não é artista. Pedagogias fundadas, por exemplo, no pressuposto da igualdade (RANCIÈRE, 2002) trariam discordâncias significativas: a igualdade (de capacidades, e não entre sujeitos) é dada, logo as desigualdades são instauradas discursivamente. Temos tantas experiências de pessoas criando sem que ninguém as tivesse ensinado a criar7, que podemos afirmar que se alguém não cria é, talvez, por não ter encontrado ainda as condições para fazer isso, mas certamente não por não ser capaz. A capacidade da criação é um princípio humano universal demonstrado pelas experiências do campo. Uma ideia como a de que a alteridade entre aluno-artista é necessária para que haja algum processo pedagógico de cinema acaba por defender que o artista possui algo que o aluno não tem: é a perpetuação da desigualdade por meio do discurso. O contrário da profanação do dispositivo escolar. É ainda um contraponto à ideia que o aluno enquanto sujeito já não pode por si mesmo fazer tudo que faz algum dito “Artista”. Quantos não foram as atividades do Inventar com a Diferença que colocaram alunos de escolas carentes e com pouco acesso à “história do cinema” a realizarem planos, montagens, filmes com os mesmos dispositivos usados por um Louis Lumière, Agnès Varda, Michael Snow; ou, ainda, quantas não foram as práticas do Cinema, Sujeitos e Territórios que colocaram os sujeitos a inventar imagens, sons, e outras matérias com tanta carga de expressão (ou seja lá qual for o critério) quanto as de qualquer desses “artistas”…

Um dia o menino quieto, silencioso, calado, motivo frequente de preocupação para pais e professores, pegou a câmera e filmou a irmã dormindo durante seis horas; não conhecia Andy Warhol. O outro, sem que ninguém visse, prendeu a câmera na roda da bicicleta e deu uma volta e meia no quarteirão. Foi repreendido, baixou a cabeça e pensou em amarrar a câmera em um elástico e deixá-la cair do alto do prédio; não conhecia Michael Snow. A menina sentou na cama, enquadrou seu joelho com tal proximidade que não podíamos ver ao certo de que parte do corpo se tratava. Tirou seu diário da gaveta e o leu lentamente, durante 40 minutos. Foi difícil. Mostrou só para a professora, que preferiu não exibir para o resto da turma. “Você está se expondo demais!” Ela não conhecia Sadie Benning [. . .] (MIGLIORIN, 2015, p.191).

6. Quando diz “a arte não se ensina, mas se encontra, se experimenta, se transmite por outras vias além do discurso do saber, e às vezes mesmo sem qualquer discurso” (p. 31),

Aqui o conceito de “ensino” em Bergala passa a ser definido com o suporte da noção de “discurso do saber”. Com “discurso do saber”, supõe-se, refere-se ao processo iniciado por um professor que sabe e que profere enunciados para transmitir esse saber para aquele que não sabe, o aluno; ou, talvez, para uma leitura mais otimista, refere-se a tudo que resulta nas posições de aquele-que-sabe e aquele-que-não-sabe que são instauradas (e que portanto não são existentes senão como resultado do próprio discurso do saber) em sala quando um professor dá início a certos processos (aparentemente verbais). Nesse caso, a afirmação de que “a arte [. . .] se encontra, se experimenta”, estaria, de fato, em total oposição à noção de que arte poderia ser “ensinada” (transmitida por meio de discursos verbais ou explicações). Dizia a Adriana Fresquet em diálogo teórico com o Rancière que “explicar é negar a capacidade dos sujeitos poderem entrar em contato direto com aquilo a ser aprendido” (2013, p. 22), e iria por aí a primeira parte dessa passagem do Bergala, que esquematizaríamos mais ou menos assim: 1) aprender toma como ponto de partida o contato de um sujeito com um determinado objeto (por exemplo, com um filme, com a noção de epistemologia, com a noção de reino animal, com uma fórmula matemática, etc), 2) o papel do professor é como o de um mediador desse contato, sendo ou alguém que o proporciona ou alguém que o facilita, 3) o “discurso do saber” ou “a explicação” acontecem quando o professor, ao invés de oferecer ao aluno um contato com o objeto a ser aprendido, oferece um contato com uma “versão simplificada” dele elaborada através de um discurso verbal – uma “explicação”: se  o aluno não consegue lidar com, digamos, a Epistemologia platônica propriamente dita, dá-lhe o professor versões simplificadas por meio de explicações. Considerando assim o conceito de “discurso verbal”, o conceito de “ensino” em Bergala estaria muito bem definido. A pedagogia do cinema (ou, de modo mais próximo da colocação do Bergala nesse momento do livro, a pedagogia da arte, ou a arte na escola) se daria em oposição a isso, especificamente ao ponto 3): ao invés de proporcionar um contato com uma versão “mastigada” do objeto, seria um contato com o objeto mesmo. O papel do professor como mediador do contato seria portanto desnecessário: ele seria mais um observador, ou, quem sabe, alguém que participa do contato junto com o aluno e da mesma maneira que ele. Por isso, “a arte não se ensina, mas se encontra, se experimenta”.

Infelizmente, tudo que diz em seguida o Bergala coloca abaixo essa noção de arte como não-ensino: arte “se transmite por outras vias”, ele diz. Ainda cabe ao professor o papel de conhecer qualquer coisa da história da arte e de passá-la adiante. No caso do cinema, é a “cultura da cinefilia” – o cinéfilo que organiza um cineclube com uma ponta de esperança de fazer mais alguém se apaixonar também pelos filmes, pelos diretores, pelos artistas e suas obras. É por isso que Bergala defende extensivamente os “bons filmes”, e o papel do professor de cinema como o de se tornar um “passador” que conhece os bons filmes para transmiti-los para os alunos, nos capítulos seguintes. Se a defesa parasse em “a arte não se ensina, mas se encontra, se experimenta” e continuasse o suporte do Rancière, o professor poderia ser um mestre ignorante: alguém que não sabe nada da história do cinema ou etc – afinal, de que interessa o que sabe o professor sobre o objeto a ser aprendido se seu papel é afastar-se e, como diz o Cezar Migliorin e o Isaac Pipano (2019, p. 45), “deixar essas crianças em paz”? (Leia-se, no uso que faço aqui, deixar que elas tenham o contato direto com o que quer que seja sem tratá-las como incapazes de fazê-lo, e portanto necessitadas de explicações, conselhos, ajudas, enfim.) Mas não para. Com isso, a oposição é falsa; a oposição entre ensinar cinema por discurso do saber e entre transmiti-lo por outras vias. Se o objetivo é transmitir cinema, logo o objetivo é também ensinar (no sentido bergalaniano mesmo) “cinema” – seja por meio do contato com as obras ou com os artistas, já que, aqui, tanto um como o outro são mediados pelo professor-passador ou pelo artista.

7. Quando diz “Se o encontro com o cinema como arte não ocorrer na escola, há muitas crianças para as quais ele corre o risco de não ocorrer em lugar nenhum” (p. 33),

Ele questiona a institucionalização do não-institucionalizável. Se a arte vai para a Escola para não-ensinar ou para promover encontros com uma alteridade que não seja embrutecedora (no sentido do Rancière, 20028), então ela não pode se tornar ela mesma parte da escola. Permanecerá para sempre um objeto estranho, algo que vem de fora e continua como que entre parênteses no dispositivo escolar: uma profanação. Seria, assim, a Escola a instituição adequada para assumir a responsabilidade de promover “o encontro com o cinema”? Seria, mais abrangentemente, alguma instituição adequada para isso? Evidente que não. Talvez a Universidade, se ela estiver revestida da sua autonomia em função das outras forças, já que “na universidade ainda temos alguns espaços para dizer alguns nãos – ou pelo menos, ‘não tão rápido’” (MIGLIORIN e PIPANO 2019, p. 15), mas, ainda assim, falaríamos apenas da Universidade como lugar que suporta o não-institucionalizável, não que o sustenta, pois, em seu caráter de instituição, depende da vigência das linhas do seu próprio dispositivo para funcionar. A Escola, nesse caso, poderia apenas também suportar, aguentar, aturar o encontro com a arte e com o cinema – e isso não é tão difícil, já que em termos imediatos, ele (o encontro de alteridade com a arte) é praticamente invisível: não pode ser percebido pelos questionários de avaliação e pelos outros aparatos burocráticos. O encontro com a arte pode ser suportado porque uma instituição não possui ferramentas para medir seu acontecimento. Entretanto, Bergala traz um pensamento bem mais pragmático: se não for na Escola, talvez não seja em lugar nenhum, o que é verdade na França da época e no Brasil atual. Aqui interessa mais as escolas do país como territórios físicos ocupados por sujeitos que a Escola como instituição ou espaço simbólico. Entretanto, quando o encontro com a arte é (se poderíamos dizer) promovido por uma instituição, aparecem logo os aparatos que buscam matar e impedir o próprio encontro com a arte: Bergala diz, por exemplo, que “Essa hipótese geral sobre a arte na escola, estendida pelo ministro para o conjunto das artes concernidas, implicava que fosse feita uma avaliação pedagógica em cada área” (2008, p. 33; grifo nosso).

8. Quando diz “Talvez fosse preciso começar a pensar – mas não é fácil do ponto de vista pedagógico – o filme não como objeto, mas como marca final de um processo criativo, e o cinema como arte. Pensar o filme como marca de um gesto de criação. Não como um objeto de leitura, decodificável, mas, cada plano, como a pincelada do pintor pela qual se pode compreender um pouco seu processo de criação” (pp. 33-34),

Bergala opõe duas funções pedagógicas do cinema: uma que o trata como linguagem, e outra que o trata como gesto de criação. Aqui, a noção de “cinema” do Bergala se define: ela coloca-se como fundada a partir do filme. O que é cinema, para Bergala, depende de o que é filme: produto de um gesto de criação ou artefato de linguagem decodificável. Seja qual for, parece que, contraditoriamente, Bergala propõe tratar o gesto de criação como linguagem decodificável: no fundo, uma manutenção do que já é feito. Esta interpretação suporta-se nas afirmações feitas (nesta passagem e posteriormente) sobre como podemos (e devemos, se é, e parece ser, esse o papel da arte na educação) aprender sobre o processo de criação do artista através do encontro com a alteridade – alteridade quando o aluno vê o artista trabalhar, quando o aluno contempla a obra do artista, quando conversa com ele, quando tenta fazer o que ele faz, etc.

A busca no Cinema-Educação proposto pelo Bergala por entender o gesto de criação, por contemplá-lo, por aprender a criar, por aprender a contemplar os filmes, ou, nas palavras que ele usa, a “formação do gosto” do aluno (ver especialmente pp. 37-57), são todas marcas da análise da criação como algo que pode ser colocado sob o prisma da linguagem e tomado enquanto tal. O autor é bastante contraditório nesse aspecto: entre o que diz defender (ou o que sua escolha de palavras dá a entender que ele pretende defender) e o que defende de fato com as afirmações que faz. Não é porque o professor de cinema abre mão de fazer uma aula expositiva sobre expressionismo alemão ou sobre possibilidades de enquadramento em função de assistir um filme que ele de repente deixa de “ensinar” (no sentido bergalaniano mesmo), ou que de repente para de tratar o cinema como um saber ou um conjunto de saberes que busca transmitir por meio de decodificações seja do que for. 

Essa oposição também não é bem fundamentada: o oposto do filme como linguagem não é o filme como arte, mas sim o filme como não-linguagem; evidentemente, pode-se abordar o filme como arte ao mesmo tempo que se aborda ele também como linguagem – estaríamos, entretanto, mentindo se disséssemos que Bergala propõe essa oposição dura. Ele a traz muito mais no sentido de prioridades históricas: a proposta nos diz simplesmente que parece benéfico passar de um para o outro, embora, como acabamos de evidenciar, passar de um para o outro não possa significar fazer um dar lugar ao outro, já que não são categorias da mesma natureza; ele reconhece isso ao dizer “mesmo que não fosse preciso com isso renunciar a uma abordagem linguageira do cinema, numa inversão mecânica absurda” (p. 34). Assim, se Bergala não cai nessa falácia, é muito fácil que alguém caia, e por isso busco aqui evidenciar a ambiguidade interpretativa trazida pela primeira colocação.

9. Quando diz “Pode haver uma pedagogia centrada na criação tanto quando se assiste filmes como quando se os realiza” (p. 34),

Ele se distancia de pensamentos que encontravam a Pedagogia do Cinema na questão “o que diz este filme?”, isto é, no “conteúdo” (da narrativa) trazido por uma dada obra. É evidente que o conteúdo, neste sentido do termo, faz parte do que constitui o filme, e que o filme faz parte do que constitui o cinema, logo não seria desejável pensar uma Pedagogia do Cinema que ignorasse um de seus elementos constitutivos: as mensagens transmitidas pelos filmes. Bergala também não ignora, pelo contrário, faz extensivas defesas do papel do professor de cinema de fazer uma “formação crítica” dos alunos, de torná-los capaz de diferenciar os bons dos maus filmes, etc (abordando nisso também as discussões mais estéticas). O que ele não deseja fazer é isolar esta função de todo o resto, mas, ao contrário, propor uma pedagogia que trabalhe o filme como totalidade de fenômenos diversos que aparecem desde seus processos de produção até seus processos de recepção. Os fenômenos que o Bergala deseja adotar como objeto são os fenômenos da criação, isto é, ele propõe uma Pedagogia do Cinema que passa pelo filme (e que, eu diria, infelizmente não sai dele) em todos os momentos em que o gesto de criação aparece ou se relaciona com ele: logo, é o gesto de criação que garante o filme como totalidade pedagógica.

Se “criação” é um termo caro, ele não é colocado, até essa passagem, como termo técnico; quando fala em “criação do novo” (p. 34) parece explicitar o que quer dizer com a palavra: algo mais para o lado de um uso corrente. Criação seria, creio, colocar no mundo algo que não estava lá antes; mas Bergala discute tanto o papel do artista e clama tanto por uma alteridade entre aluno e artista (como criador) que o processo subjetivo de criar parece ter uma relevância. Assim, a noção de criação encerraria também a noção da criação ser feita por alguém em específico; depois, a discussão sobre bons filmes nos capítulos seguintes certamente reivindica falas sobre as boas e as más criações, uma vez que se um filme é uma criação e pode-se falar de um “bom filme”, logo pode-se falar também de uma boa criação em oposição a uma má criação. Nos capítulos seguintes, reivindicará também que as escolas precisam de um espaço que permita o acesso aos bons filmes, algo como uma DVDteca: não é qualquer filme que entra aí (ver sobretudo pp. 91-112). Assim, nem todos que criam filmes criam bons filmes, e a pedagogia proposta aqui seria em torno da criação dos bons filmes (seja os tomando como ponto de partida ou como ponto de chegada) – chega a dizer que “A vida (dentro e fora da sala de aula) é curta demais para que se perca tempo assistindo e analisando filmes ruins” (p. 45), e a questão se agrava em inumeráveis outras passagens que merecem ser analisadas à parte.

A proposta do Bergala nessa passagem possui a vantagem de unificar os processos pedagógicos do cinema ocorridos na produção e na recepção (e em outras etapas e dimensões) usando a criação como elemento comum. Como desvantagem, traz uma noção de criação demasiada excludente, embrutecedora, mantenedora da ordem vigente, que na verdade não cria coisa alguma e só reproduz o que uns poucos bem-entendidos consideram “bons filmes”. Também traz a desvantagem de resumir o cinema ao filme. Entretanto, é inegável que foi um avanço importante – este de retirar a pedagogia do cinema só da recepção dos conteúdos dos filmes e espalhá-la por outras dimensões do objeto – que, se não chegou ao ponto de propor algo diferente dos processos embrutecedores que já ocorriam e ocorrem na escola, certamente permitiu que outras reflexões se suportassem nessa para ultrapassá-la; nenhuma problemática imposta ao Bergala pessoalmente: frequentemente quando se realiza uma empreitada teórica pela primeira vez ela se coloca cheia de brechas que só serão resolvidas depois, com o debate sistematizado.

10. Referências

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AGAMBEN, Giorgio. O que é um dispositivo?. outra travessia, Florianópolis, n. 5, p. 9-16, jan. 2005. ISSN 2176-8552.

BERGALA, Alain. A hipótese-cinema. Tradução de Mônica Costa Netto e Silvia Pimenta. Rio de Janeiro: Booklink; CINEAD-LISE-UFRJ, 2008.

BOOTH, Wayne C. . The Rhetoric of Fiction. Estados Unidos da América: The University of Chicago Press, 1983.

DUARTE JÚNIOR, João-Francisco. Fundamentos Estéticos da Educação. São Paulo: Cortez, 1981.

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MIGLIORIN, Cezar. Inevitavelmente Cinema: educação, política e mafuá. 1. ed. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2015.

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______; PIPANO, Isaac. Cinema de Brincar. Belo Horizonte, MG: Relicário, 2019.

MULVEY, Laura. Prazer visual e cinema narrativo, in XAVIER, Ismail (org) A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Graal/Embrafilme, 1983, pp. 437-454

RANCIÈRE, Jacques. O Mestre Ignorante. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.

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11. Notas

  1. Ver ZEN e SGARBI, 2018. ↩︎
  2. Ver SOUZA e KRAMER, 1991. ↩︎
  3. Ver DUARTE JÚNIOR, 1981, especialmente pp. 19-65. ↩︎
  4. Ver MIGLIORIN (2016) e o site do projeto, disponível em <http://inventarcomadiferenca.com.br>, acesso em 22 set 2019. ↩︎
  5. Ver o site do projeto, disponível em <cinemasujeitoseterritorios.uff.br>, acesso em 22 set 2019. ↩︎
  6. Os conceitos de “profanação” e “dispositivo” estão sendo usados aqui conforme AGAMBEN, 2005. ↩︎
  7. Vide mesmo o Mestre Ignorante e as experiências do Joseph Jacotot (em RANCIÈRE, 2002) ou as experiências do já citado Cinema, Sujeitos e Territórios (REIS e FONSECA, 2019a). ↩︎
  8. E isso não é o que o Bergala propõe, já que a alteridade que propõe revela-se, sob escrutínio, embrutecedora. ↩︎

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