Gestos e afetos pelo direito à diversidade
“Não adianta fazer filme do Rio se o Rio não tem cultura de exibição … vê filme, principalmente em um espaço comunitário, é um lugar de encontro, de cultura, de afeto… a visão do cinema como entretenimento, é uma ideia que apequena… O cinema comunitário ele sempre dispara o melhor da experiência cinematográfica.” (sic)
Faustini, 20151.
1. Introdução
Em uma sala escura, um trem chega à estação. A cena provoca o sentido visual da entrada do cinema com seus feitos que causam espanto, imaginação, magia e encanto ante um mecanismo e seus domínios, ao relacionar a proximidade da experiência real. A conquista da técnica, da direção, do efeito, o de olhar e imitar a vida, e não necessariamente ela própria, instiga a conexão pela imagem em preto e branco como relação com a verdadeira natureza da realidade. No espectador, como um exercício de imaginação, outro movimento acontece com o processo de percepção.
As ideias vindas dos personagens e das temáticas seguem o rumo da leitura em construção, de análise e de identificação, mas buscamos um reforço visual do nosso conhecimento. Procuramos uma experiência direta (Dondis, 2000). Não como meros espectadores, mas como espect-autores. Na verdade somos os autores de nossa experiência.
Renata Lima2 logo no início do seu curta apresenta cenas da estação de trem e apresenta “Santa cruz que fica a 70 km do centro da cidade do Rio de Janeiro, como o bairro que pode ser onde a cidade começa ou bem onde ela termina. É por aqui onde o trem dorme e os trabalhadores descansam”. O trem para o carioca é imagem marcante e importante para a ocupação da cidade, estrutura que serve como um portal para engajar o interesse do receptor do cinema como produtor de realidade Mais que movimento, é território e direção porque representa o movimento de entrada e saída, de chegada e de encontro. Início da jornada para o trabalhador, meio e fim. A cada estação um bairro, subúrbio, um contexto de ocupação, memória, história e identidade. A lida por aqui muitas vezes pode sufocar ou mesmo servir de desafio para encontrar a essência de alma, o som do gozo que não quer se calar, em rumo a consciência de si que desoculta na obra, como representação.
De volta ao subúrbio, do centro da cidade, mas qual? De volta ao desejo de espera para algum dia realizar, e sim nunca deixar de acreditar, que na vida é possível provocar experiências, que ao mesmo tempo são consequências da busca por sentidos; em meio popular com as realizações. Como sujeito e indivíduo, marginal3 ou herói. Cria a representação que se faz ouvir como fala, e ver como um “Olhar a vida com os próprios olhos, para descolonizar ” (Santos, 2005).
Para Santos (2005), as experiências produzem significados e passam por operações como imaginação e pensamento de seus autores, como individualismo e na busca de uma razão estratégica. Fazem reflexão sobre si próprio e o limite da ação, para saber como intervir na realidade, mesmo que alguns aspectos fogem ao controle. A construção de uma identidade coletiva depende deste processo, mas a atuação dos seus autores não é soberana. A manutenção e a interação entre si e a realidade com continuidade, descrevem o processo de apropriação das representações coletivas, com as atitudes do grupo que se relaciona. De outra forma as imagens das identidades serão apenas uma colagem, com o efeito de tornar expressivos e visíveis (Santos, 1998). A autora então ajuda a sustentar a importância do tratamento das relações dialógicas e relacionais como encontro amoroso dos homens que, mesmo mediatizados pelo mundo o pronunciam e o humanizam4 como modos, essencialismos5 em autonomia como afetos e direitos à diversidade.
Um close da Pedra da Gávea, em seguida a narradora anuncia “cartão postal da cidade do Rio de Janeiro,visão privilegiada do morador da zona sul, mas não é da zona sul que vou falar hoje”. Thaís Gavi começa seu curta “ Morador” (2018) com essa outra representação, símbolo que controla uma forma de olhar. Assim como a primeira cineasta apresentada nesse texto decide colocar uma série de depoimentos que apresentam moradores da Cidade de Deus e como encontram possibilidades de produção intelectual e artística para combater o estereótipo de violência. O filme traz em evidência personalidades que atuam junto à comunidade. O argumento do roteiro, é um convite ao encontro sobre os caminhos de merecimento e pertencimento que precisam ser percorridos para driblar e superar as dificuldades. Uma visão ampla, deslocada daqueles que buscam a fusão da arte com a vida como identificação, e descrevem o terreno estético como batalha, seus desencantamentos e desilusões cotidianas.
Assim é composta a Zona Oeste do Rio de Janeiro: Bairros que crescem ao redor da linha do trem, chamados de subúrbios; ou ao redor do mar como uma área bucólica e pitoresca. Estes compartilham em histórias e memórias, aquilo que os diferenciam e os marcam pela desigualdade na distribuição de recursos, da presença de políticas públicas, a partir das participações de sujeitos em seus territórios. De forma coletiva ou individual assumem um protagonismo e a iniciativa, como ousadia, ação política e estética. As oportunidades servem como alternativas para reflexão sobre o processo de construção social de subjetividade e de identidade que perpassam pelo exercício de autonomia e de soberania do indivíduo, ao que lhe é estruturante e ao estruturado (Bourdieu, 2007).
Assim, a Zona Oeste descreve uma realidade desigual com bairros sem nenhum teatro ou sala de cinema, como Santíssimo, bairro dormitório; e em outros, como a Barra, com várias opções como clubes, centros culturais, teatros, cinemas, faculdades, grande maioria financiada por um setor privado. Sinaliza um espaço para compor outras realidades, com ações e práticas que desafiam e soam para dar visibilidade às potências de como ação, mas também como força motivadora de um recurso em uma experiência bem sucedida. Assim, o cinema alternativo e independente que se produz no Rio nas últimas décadas acontece como possibilidade do indivíduo ser autor de seu gesto, como um modo novo de registrar as mudanças que acontecem na sociedade. É uma proposta de ocupação física e imaginária. Possibilidade de educação de sentidos como autoconhecimento, e promoção de pertencimento. É uma questão de domínio da técnica, que se refere à forma como o homem se doa ao mundo (Werle, 2011). Uma escolha ousada e radical por ser uma decisão própria de produzir, em defesa do direito à autonomia. A partir de um repertório e de uma memória que como monumentos guardam o acontecimento público para serem apropriados e lembrados. Realizam filmes como potência de movimento, como enfrentamento, e como modos de se materializar, como parte dos corpos, como complexidades de práticas e processos. Serve de objeto de inspiração para livros e documentários feitos para destacar aqueles que se encontraram no cinema, rota de um passado, e parte do movimento de produção de filmes por autonomia e autossuficiência. Sob o risco do real, para existir, e aparecer. Os cineastas, como Waldir Onofre e Júlio Pecly, moradores da região, descreveram o modo de ser e fazer parte desse território, e são exemplos. Colaboraram para a narrativa de uma cinematografia nacional. As marcas não foram tão imperceptíveis como se supunha (Santos,1998). São representações:Onofre tornou-se um personagem e um referencial para os Jovens da região como um dos primeiros cineastas negros a produzir o longa-metragem: “As aventuras de um padeiro” (1975) junto a Nelson Pereira dos Santos, ganhador do Kikito de Ouro no Festival de Gramado de 1976; e Pecly cadeirante associado às ações culturais, é lembrado e homenageado, como repertório e ícone, por sua iniciativa e ousadia de se lançar a desafios. Acreditaram na linguagem do cinema como educação, poesia e arte.
Percebe-se que a troca de informações e a continuidades das ações seguem num ritmo de manutenção de um circuito, com um ciclo de dependência, e as parcerias como respostas e superação. Para não ser esquecido e sempre ser lembrado, motivam outras ações. Rompem barreiras presentes no caminho da produção e da exibição dos cineastas independentes. Kaká Teixeira (Santa Cruz) não é o único a fazer documentário sobre Waldir Onofre (1937- 2015): “Waldir Onofre encena”. Carlos Onofre, o filho do ator, escreve a biografia do pai; e Sua filha Lelete Couto dirigiu o documentário “A voz dos Quilombos” (2009) exibido no 1ºencontro Estadual da juventude Quilombola, Conferência da Igualdade Racial, na Mostra Zózimo Babull, na Mostra da Caixa Econômica UEA (Angola).
Atualmente outros realizadores de cinema, autores e produtores de obras mostram o contexto que movimentam sujeitos, criam circuitos e circunstâncias, apresentam as formas diversas e alternativas de percepção, e de investigar a razão sobre o ser e o estar na realidade, e o lugar da arte na vida humana como campo de conhecimento (Moosburgeer, 2007). Demonstram o olhar para a zona oeste como parte integrante desse movimento de fala imagética. A narrativa exibida leva ao conhecimento o meio em que vive, a classe que representa, a consciência crítica da sociedade. Traz evidências dos processos políticos e culturais nacionais, dos processos de criação e democratização do imaginário em uma experiência coletiva (De Luca, 2009).
2. Desenvolvimento
Nos dias de hoje esse movimento de produção é também estratégia de relação de poder, pois fatos podem ser vistos, e disponibilizados para interpretação. Significa obter autoridade para legitimar a imagem como fala de possibilidades expressivas contidas em formas simbólicas que agem como mediação e representação. Sandra Lima faz a proposta em seu documentário “ O caminho das Pedras” (2019) de romper a invisibilidade propondo a pedagogia da cultura urbana, e a cultura com recurso para construir relações
No filme “5x Pacificação” 2012, Felha (Cidade de Deus) entre outros mostra a ocupação das comunidades pelas UPPs pode-se afirmar que o filme é o interlocutor da realidade atual. As temáticas do funk se repetem na “A história de um Silva ” (2018) de Marcelo Gulart; e “Eu só quero é ser feliz – uma breve história do funk carioca” (2017), de André Fernandes que funcionam como monumento na medida que relembra a história do funk na cidade, contadas e lembradas pelos personagens que atuaram e fizeram os bailes acontecer. Os filmes apresentam um Rio, e não deixam esquecer o sentido de ser carioca. Testemunhos com discursos de memória e poesia como afirma a frase “Menos bala no ar e mais mão pra apertar“, parte do documentário. Como pontos de atração sugerem interação e intersecção, os “nodos”, pontos de encontro iluminados, um certo lugar comum, que configuram uma centralidade meio à diversidade; um movimento de empreendedorismo e de co-produção (Vallejo, 2017). O importante é detectar o sistema de cooperação e interdisciplinaridade que substituem o sistema de competição: Cidades, pessoas, lugares, práticas, celebridades, competências que agem por uma lei de atração ou repulsão.O estudo dos festivais e sua forma de funcionamento servem como um estudo etnográfico, assim como os filmes que aparecem como elementos e parte desses circuitos que oferecem informações sobre a dimensão das interações sociais, culturais e econômicas nos últimos anos (Vallejo,2012). Essas colocações são importantes para sonhar com um fluxo de existência possível entre as duas categorias de produção e circulação destacado nesse texto, em que fazem do cinema de Zona Oeste parte de um Rio de produtores de imagens representantes.
A produção do CURTA ETESC e as exibições pelo CINEMÃO indicam que a representação não definhou (Spivak, 2010) em meio de movimentos de realizações cinematográficas da zona Oeste.São projetos de busca pela garantia ao direito à diversidade, uma organização amplificada de gestos e afetos, nas primeiras décadas do séc. XXI. A linguagem do cinema como processo criativo, e suporte para compreensão das determinações sociais concretizaram nestes projetos: Um na aprendizagem da linguagem cinematográfica e como mostra do resultado; e outro como uma grande tela de exibição, fazendo do evento um momento de celebridade. Enquanto criam um lugar para as diversidades de quadro sociais distintos e garantem um movimento de filmes como também o fortalecimento de um cinema nacional. São pioneiros neste tipo de evento na região, e colaboram para a construção da relação de cinema, identidade e memória. Seguem moldes dos grandes festivais, aproveitam celebridades, eventos para retroalimentar.
Observa-se uma forma de cooperação mútua, geradora de valores e bens materiais e imateriais que buscam o cinema como arte, com encontro. Colocando em evidência a percepção da teoria de rede como metáfora, mas como condição para autossuficiência do cinema alternativo. Percebe-se como a existência dos festivais de cinemas causam impactos nas práticas cinematográficas, como desafiam e favorecem os cinemas regionais. Os dois projetos são formas de operacionalização, que configuram “nós” de circulação, ou pontos de interseção, entre atores sociais (cineastas, produtoras, distribuidoras, patrocinadores e governo), e que agem em fluxos, capazes de atrair celebridades e criar outros diálogos com outros trabalhos que indiquem como ficar interconectados com um sistema maior, da América Latina e do mundo (Vallejo, 2015).Mas que apontam fragilidades para conseguirem unir o quadro descrito de cinema independente às suas atividades. Como são inspirados nos moldes dos festivais eles podem vir a ser um lócus para receber e trocar experiências com os cineastas, e uma oportunidade para formação de plateia atendendo a vocação cinematográfica local.
O CURTA ETESC, que é uma experiência visual, com captação e produção de imagens por jovens, a partir de suas escolhas e de suas memórias, na Escola Técnica de Santa Cruz, da rede FAETEC. Desde 2000 pensar o fazer filmes ficou mais fácil e barato somado a passagem do analógico para o digital, e com acessibilidade da câmera no celular como aparato e suporte. A tecnologia modificou, facilitou e promoveu o uso das imagens no cotidiano, tornando-o expressivo, intenso e vivo. Um caminho e modelo que se instaurou como uma característica da época: Os festivais. Os alunos reagiram de forma tão empolgada que mobilizaram a atenção e a disposição das professoras em dar continuidade e legitimar o espaço dentro da escola, existiam vozes para serem escutadas. Inicialmente, parcerias eram feitas com o CETEP que emprestava o espaço para a apresentação e execução da mostra. Existia uma confiança e um combinado de convenções como o “troféu abacaxi” (produzido pelas professoras, na verdade uma releitura daquilo que premia) que iria para o vídeo mais popular (o voto era depositado na urna quando saíssem da sessão. Esse era o modo de regulação: O desejo de estar entre os mais votados, tornando-se populares, este significado cultural continua atrelado até hoje por se tratar de uma população formada por jovens. A apuração era feita manualmente e registrada em ata, na mesma onde se registrava a presença, e ao final do evento, aceitava-se sugestão para o próximo ano.
A produção e a captura de imagem fazem parte cada vez maior da rotina de uma juventude instrumentada por um celular e uma câmera digital. Com uma câmera na mão e muitas ideias na cabeça, os alunos são desafiados a retirar de sua experiência, sentidos e argumentos que os formam e os informam. Livremente, sem pré-conceitos definidos, evitando aquilo que o pode constranger ou inibir sua própria imagem e identidade, eram estas as orientações para a produção dos filmes. O CURTA ETESC é um fenômeno local por via de um processo global. “Temos o direito de ser iguais sempre que a diferença nos inferioriza; temos o direito de ser diferentes sempre que a igualdade nos descaracteriza. ” (Santos, 2006, p. 44). Portanto, o reconhecimento e o conhecimento das diferenças passam por um ato de resistência, por uma mobilização de recursos, e por uma organização utópica de força alternativa, como um conhecimento-emancipação da ecologia dos saberes, para que permaneça como um mecanismo de democracia representativa e de práticas democráticas. Como uma arena dissemina valores e procura como linguagem adaptações a produtos de uma cultura de massa.
Propõe como uma gramática alternativa de liberdade nas escolhas quanto à temática abordada, e na forma que acontece que sugere um hibridismo identitário:Personagens imaginários que unem questões cotidianas com elementos originados na mídia.Aparecem os temas relacionados à desigualdade social e às possíveis articulações de resistência e inclusão de grupos sociais. Carvalho (2001) também confirma a complexidade envolvendo as temáticas da cultura contemporânea, assim como Stuart Hall (1997) que diz que os seres humanos são interpretativos e que suas práticas sociais são reguladas por esses significados; códigos que dão sentido, são práticas de significação, por isso propõe outro olhar sobre as formas de expressões culturais contemporâneas para repensar a identidade, as relações raciais, a sexualidade, a pertença étnica, o hibridismo cultural. Toda ação social é cultural, e o CURTA ETESC possui um aspecto substantivo por se tratar de ser um local de cultura de estrutura empírica e real, em uma instituição, em relações culturais de uma sociedade, em um momento histórico particular.
É uma organização democrática como direito de narrar as experiências, “Um hiato entre o silêncio e a ação que visa libertar o sujeito de sua condição subalterna” (Carvalho, 2001). O cinema é uma atividade que permite a reflexão. Aparece como estratégia e serve de referencial filosófico e político diante da questão no que se refere à formação de uma disciplina de cinema nas Escolas de Ensino Médio, como sugeriu o FORCINE – Fórum Brasileiro de Ensino de Cinema e de Audiovisual.
Hoje o CURTA ETESC tem vida própria, em vestígios e trajetórias, na internet e em mídias, em memórias pessoais, que colaboram, fortalecem e fomentam a continuidade e a existência como projeto. Entende-se que através dos filmes, as regras de sociabilidade podem ser discutidas e dialogadas em vias de uma identidade local, em condições de convivência mais justas em relação à igualdade. Pressupõe-se que este é um espaço para debater o poder, o fazer e o conviver, como a percepção da importância do trabalho em equipe e com criatividade, descartando possíveis individualismos. É possível perceber a rotina da ETESC, os processos de exclusão e inclusão da realidade local, assim como levantar questões das vulnerabilidades das massas, e a constituição de uma sociedade a partir do consumo, como garantias dos direitos e da satisfação das necessidades, ou, ao contrário, é possível identificar também um discurso de uma solidariedade possível, como um desafio e uma conquista.
3. O Cinemão
O CINEMÃO é um carro-cinema, preto que lembra o peso e o estigma da violência do caveirão que ao entrar nas comunidades representa a militarização da vida. O “veículo de ocupação tática de cultura” é uma apropriação e ressignificação de algo que lembra a opressão para aquilo que liberta a imaginação e semeia o viver. Esse projeto ocupa e transforma os espaços comuns em sala de projeção; o cinema vai até o público. A ideia surge quando várias favelas passavam por um processo de transformação, o seu criador pensa em fazer a ocupação territorial diferente da ocupação bélica que estava ocorrendo.
Dentro dele vão equipamentos e tecnologia para promover a exibição de curtas ou longas junto às comunidades com um super telão inflável, um projetor de alta luminosidade, sistema de som, cadeiras, e até pipocas, o que for necessário para a exibição de filmes brasileiros. Atua em territórios estigmatizados pela violência, e se estende a todo município e estado do Rio de Janeiro. O cinemão trabalha na geração de oportunidade e na experiência de se ver filmes num contexto onde as principais salas encontram-se em um eixo de consumo, dentro dos shoppings.
O Cinemão é na verdade uma empresa popular de produção, exibição e distribuição dos filmes, uma indústria cinematográfica popular e única nesse modelo. Exibem filmes e realizam Mostras anuais de um calendário próprio como “É tudo Caô”, “Anima cinemão”, “Cinemão ambiental”, que privilegiam curtas metragens locais, ou de acordo com o aporte financeiro, ou a qual se enquadram a melhor dinâmica da duração e de se prestar melhor aos objetivos. Para as mostras costuma convidar uma celebridade para fazer a curadoria, e ao mesmo tempo legitimá-la. O carro é apenas um dos elementos, faz parte os trabalhadores programados para montar a programação em praças, campos, clubes, e onde for possível. Geralmente em lugares mais carentes e de baixo poder aquisitivo, territórios que não são abertos ao público, mas que passam a ser alcançados por este projeto.
Cid é um operário da indústria visual, produtor, e cineclubista, morador da zona Oeste. Assim se identifica o idealizador do projeto que tem a formação de jornalista. Monta uma produtora antes de começar a atuar com a forma atual, atendendo a demanda cultural de cada local. É um idealista que disponibiliza sua indústria e tem ambição de transformar o cinemão como uma indústria apoiada pelo governo entre município e estados. Ele acredita nesta forma de democratização de cinema pela real formação de plateia, atendendo o grupo distante e afastado, muitas vezes excluído. Procura levar o cinema às pessoas, que de fato esperam por ele e admiram a iniciativa e operacionalidade dos eventos. A produção do cinema nacional é realizada com verbas, editais e renúncias fiscais, e muitas vezes essas obras não são exibidas e nem chegam ao grande público. As salas de cinema não colocam filmes nacionais, pois seu principal foco é o lucro.
Desta maneira este projeto faz a ocupação de território com a prática de uma rede exibidora de caráter popular em comunidades que oferece experiência de cinema e com produtos nacionais, e locais e provocam a reflexão em qual cinema se quer para se formar uma rede atuante na formação da sensibilidade e do conhecimento. “As pessoas querem se reconhecer e protagonizar seus processos”, afirma Cid. Por isso o caráter flexível em suas propostas.
4. Considerações finais
O trem, a Pedra, a mostra de curta metragem, e o carro simbolizam e representam a identidade da Zona Oeste, mas a vontade não se preocupa mais com o objeto e sim com o projeto, o desejo e a intenção(Arendt, 2000). Para a emergência da aparição traçou-se um mapeamento da ocupação situacional, pessoal e relacional das experiências com o cinema como objeto de construção de identidade coletivas. Para se entender os territórios de pertencimento, de memória e de identidade nos bairros cariocas, na zona Oeste do Rio de Janeiro. Potencializado com esta reflexão a autoridade e o poder dos projetos. Longas e curtas metragens servem de reflexão sobre qual poética e política de protagonismo assumem estes autores e produtores que organizam as relações. Como formas estratégicas, com técnicas de visualização local e remota para autoconhecimento, ou subversão.
Sugerem redes e através das singularidades apoiadas em memórias e em representações, e vão além da busca de sentido existencial de ser e estar em bairros subúrbios do Rio de Janeiro. A indústria nacional precisa ter uma política de audiovisual favorável para a expansão do mercado com vigor e potência para alcançar essas iniciativas como representação e visibilidade de um povo herói que se faz estrutura de seus sonhos, o investimento financeiro ainda é a fragilidade do setor. Muitas vezes o filme estreia, e as despesas ainda pesam nos ombros do diretor e produtor, e nem todos os funcionários participantes da obra têm os seus provimentos quitados como o ideal. Assim na garra da produção é a produção e exibição independente acontece. O Curta Etesc e o Cinemão poderiam ser metas e objetos de conexão para um futuro. Estes passam a fazer parte da história de difusão cultural, que busca reverter o quadro de hegemonias de grandes estúdios e desigualdades, ao mesmo tempo em que fortalecem o setor cinema e educação.
Como ser autossustentáveis?A formação de plateia é um dos benefícios dos projetos, e torna acessível a experiência cinematográfica pelos territórios cariocas, locais com várias demandas e carências sociais e políticas. Uma realidade que é um constante desafio para os sujeitos que optam pelo caminho da fruição e da sensibilidade para entender o conjunto de causas e efeitos: Ou as causas próprias ou outra gestualidade alternativa que representa o direito de intervir, de olhar, de classificar e de separar e que resultam na expressividade como linha de fuga; e a garantia do direito à diversidade.
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6. Anexos
“O CINEMÃO”
Imagens resgatadas de plataforma virtual.
CURTA ETESC
Imagens de arquivo pessoal da autora.
7. Notas
- Fala verbal de Faustini, no filme “Cinema do meu Bairro” (2015), de Renata Lima. ↩︎
- Cinema do Meu bairro, Cadê Você?, de Renata Lima (Rio de Janeiro/RJ, 13 minutos, 2015). ↩︎
- O termo inspirado no poema/bandeira de Hélio Oiticica ”Ser marginal ou Herói” (1968). Serve como provocação para pensar como a vida do subúrbio era vista tempos atrás. O que está à margem, o que aparece despercebido, oculto, esquecido, substituto do periférico. ↩︎
- Educomunicação é um termo para se pensar o campo de mediações que une educação e comunicação como espaço de construção de conhecimento crítico e criativo para a cidadania e a solidariedade (Soares, 2000). ↩︎
- O espaço autônomo e esclarecido da arte confronta outros modos de viver, como em tudo dizer (Sade) e um tudo olhar (Mirzoeeff) (Bausbaum,2018). ↩︎