A produção de vídeo estudantil tem como ação principal a criação de uma obra audiovisual em conjunto entre professores e alunos. Na cidade de Canguçu, que é um município brasileiro do estado do Rio Grande do Sul, conhecida carinhosamente como Princesa dos Tapes, existem cerca de 14 mil propriedades rurais. Canguçu é reconhecida como a Capital Nacional da Agricultura Familiar. A cidade tem uma população aproximada de 56 mil habitantes e está localizada na zona sul do Rio Grande do Sul, mais precisamente na Serra dos Tapes, a 274 km da capital Porto Alegre. Este texto apresenta uma experiência realizada em 2019.
Imagens da entrada da cidade
No início do ano de 2019, o Laboratório acadêmico de produção de vídeo estudantil1 da UFPel, conhecido como LabPVE, dialogou com o secretário de educação de Canguçu para a realização de um festival de vídeo estudantil. Duas ações foram acordadas:
1 – Capacitação Docente
2 – Capacitação Discente
O aluno nem sempre tem tempo para se expressar na escola. Com a metodologia PVE (Produção de Vídeo Estudantil) é o momento do aluno falar e apresentar o seu mundo simbólico; ser ele mesmo um pouco. Sabemos que a Metodologia PVE não vai mudar o mundo, mas tem o poder de mudar a forma do aluno ver/ler o mundo.
A importância da capacitação docente é justamente a principal ação de debates de vários pesquisadores, em função de que produzir um vídeo é muito mais do que uma ação simplesmente técnica – é também pedagógica. Os cursos de formação docente não podem ignorar o poder da imagem.
Imagem 1 – Josias Pereira em Oficina com professores de Canguçu, 2019.
Negar o poder da imagem dentro do processo educacional é um dos equívocos que a academia, que valoriza a palavra escrita, tem realizado. Enquanto a academia se fecha para essas ações, vemos na prática jovens se alfabetizando pela internet, especificamente pelo canal do YouTube. (PEREIRA; DAL PONT, 2021, p. 21)
Essa negação do poder da imagem é sentido dentro do processo educacional, principalmente nos cursos de licenciatura e pedagogia. Sendo assim, é importante debater a pesquisa de Pereira e Mattos (2017) onde, analisando os cursos de licenciatura e pedagogia das seis maiores universidades do Rio Grande do Sul, perceberam que não existia nos cursos disciplinas com a temática de produção de vídeo estudantil. Infelizmente, no Brasil, não existe uma disciplina nos cursos de licenciatura e pedagogia que capacite o futuro professor depois de laureado a realizar vídeos com os alunos.
Sendo assim, percebemos que existe uma dicotomia entre a formação docente e a realidade que os alunos vivem na sociedade. Por isso, temos a necessidade de primeiro capacitar os docentes tanto na questão teórica como na prática de produção de vídeo estudantil. No segundo momento realizamos oficinas com os discentes, justamente com a ideia de prática audiovisual para os alunos perceberem na prática como se realiza vídeo com os colegas.
Sabemos que vivemos em um momento onde a imagem e a produção de conteúdo audiovisual é uma realidade para diversas faixas etárias educacionais e sociais. Os alunos, em sua tenra idade, já iniciam o movimento de ver vídeos a partir de desenhos infantis. No entanto, não apenas assistem desenhos criados por um conglomerado midiático, mas às vezes assistem a um pai brincando com a sua filha, como ocorre com o canal Like Nastya.
Tomamos, então, como exemplo, o canal da russa Anastasia Radzinskaya, conhecida como Nastya – que tem bilhões de visualizações no mundo e apresenta basicamente o pai brincando com a filha. Quando a filha nasceu, o pai foi informado que ela poderia ter paralisia cerebral2. Assim, para ajudar no seu desenvolvimento, começou a gravar a sua filha e colocou no YouTube para os parentes assistirem, porém a coisa foi crescendo e, passado alguns anos, hoje ela é uma das maiores influenciadoras mirins: seu canal em inglês3 tem mais de 73 bilhões de visualizações. Já o seu canal em português apresenta 10 bilhões de visualizações4. A família se mudou para Nova Iorque, onde continua fazendo seus vídeos em diversos idiomas. Segundo a revista Forbes5 de 2022, Nastya é a sexta youtuber mais bem paga do mundo – com apenas sete anos de idade. Queremos com esse exemplo apresentar como essa produção de vídeo está inserida na sociedade de forma geral.
Não estamos aqui defendendo que devam ser feitas oficinas para que crianças possam se tornar famosas ou influenciadoras digitais. O que estamos propondo, principalmente, é que a produção de vídeo estudantil é um processo educacional. Sendo assim, seria importante que as universidades e os cursos de licenciatura e pedagogia utilizassem essa produção de vídeo, debatendo como ela pode contribuir para um processo educacional dentro do espaço da sala de aula.
Por conta disso, desenvolvemos em nosso LabPVE a Metodologia PVE, que tem como base principal ações didáticas e técnicas que professores e alunos possam realizar para produzir vídeos de forma simples, com base no processo cognitivo e de aprendizagem do aluno.
Assim, após as oficinas na cidade de Canguçu, iniciamos a organização de um festival na cidade – para o qual o LabPVE contribuiu de forma direta. Depois de conversar com o secretário de educação e fechar as datas, fomos dialogar com a responsável da área e marcamos o dia para a primeira oficina. O primeiro passo foi convidar professores para uma palestra para que compreendessem o que é produção de vídeo estudantil. A palestra foi realizada dentro de um seminário do município, onde falamos um pouco sobre neurociência e como ela explica porque fazer vídeo é um processo educacional.
Depois dessas ações, perguntamos aos professores quem teria interesse em realizar uma oficina, especificamente de vídeo e de vídeo com os alunos. Vinte e sete professores se inscreveram e marcamos os dias para a primeira oficina. Nessa oficina foi discutido como fazer o pitching do roteiro6. Segundo nossas pesquisas, um dos problemas dos alunos – principalmente alunos dos anos iniciais – é justamente escrever o roteiro. Não queremos que os alunos virem roteiristas, mas que peguem as histórias do seu dia a dia e produzam uma obra.
Trabalhamos basicamente com uma história Aristotélica (com início, meio e fim), para que os alunos pudessem contar uma história que possa ajudá-los a repensar as suas ações – tanto sociais quanto educacionais – na vida e no mundo. Em um segundo momento foi feita a capacitação para a gravação: o que é um plano aberto e o que é um plano fechado; como regular a câmera para focalizar um objeto dentro de um enquadramento específico; e como unir todo o material gravado, com uma oficina de edição para trabalhar a linguagem e a narrativa do vídeo. Como o conceito de narrativa e linguagem é complexo para os alunos, criamos um exercício de 5 e 15 fotos7, onde um aluno cria um vídeo, inicialmente, com 5 fotos e depois realiza o mesmo vídeo com 15 fotos. Assim, ele começa a ver a diferença entre linguagem – onde ele utiliza 5 fotos – e narrativa – quando ele utiliza 15 fotos.
Imagem 2 – vídeo narrativa e linguagem 5 e 15 fotos.
Assim, o aluno, além de praticar a diferença entre linguagem e narrativa, passa também a compreender um pouco de edição ao ter que editar esse material e começa a ver vários processos importantes para o seu futuro curta-metragem.
No terceiro momento, o aluno grava com o professor um curta-metragem que será inscrito no festival. Recebemos a reclamação de que o festival estava apenas exaltando os melhores vídeos e o processo de fazer um festival de vídeo estudantil é diferente de um festival comercial. Queríamos incentivar professores e alunos a participarem e fazerem vídeos, então o importante não é o vídeo enquanto obra, mas sim todo o processo que o aluno levou para fazer um vídeo e o quanto o aluno compreendeu e começou a realizar ações para que esse processo fosse então um processo educacional.
Imagem 3 – Final do I Festival de Vídeo Estudantil de Canguçu.
Claro que não queremos limitar o aluno a fazer um vídeo sobre a disciplina A ou a disciplina B – eram vídeos de ficção que não tinham em sua estrutura narrativa as disciplinas escolares de forma direta. Como afirma Pereira (2007) a produção de vídeo estudantil é um processo de educação indireta onde você pode trabalhar com um currículo informal (oculto) ou currículo formal, mas o importante é que o aluno possa ter prazer no que está fazendo, contribuindo assim com a produção de memórias de longo prazo.
Tenho certeza que quem já fez um vídeo com seus alunos, mesmo depois de 10 anos, ao encontrar esse aluno irá lembrar de tudo: da gravação, das dificuldades, do sorriso da premiação e da exibição para os amigos, etc. Isso ocorre porque quando se produz uma obra audiovisual é impossível fazê-la de modo que não tenha emoção, que não tenha medo, que não tenha problemas, que não tenha em algum momento o pensamento “vão gostar ou não?”. Todo esse processo feito pelo grupo produz serotonina, conhecida como o hormônio da felicidade. Na verdade, produz mais do que isso: ajuda na criação de memórias de longo prazo – lembrando Guerra e Cosenza (2011): a emoção é o catalisador da memória. Ou seja, quanto mais emoção eu coloco numa ação que estou realizando, mais os meus neurônios conseguem guardar aquela informação e constroem uma memória de longo prazo.
Sendo assim, se você já fez algum vídeo com os seus alunos com certeza daqui a 10 anos ou mais eles vão lembrar, pois não foi só uma prova, não foi só uma nota, não foi um conhecimento que ele teve que adquirir e não utilizar. Pelo contrário, foi algo que ele aprendeu, utilizou na prática e viu o resultado. Talvez, como defende Pereira e Dal Pont (2018), a produção de vídeo é uma metodologia ativa pois é impossível o aluno ficar numa situação de educação bancária, simplesmente olhando para o vídeo do colega. É preciso pensar, analisar e criar estratégias – percebendo o que deu certo, o que deu errado, refazendo o seu pensamento, mudando a sua estrutura mental e tendo uma meta com organização daquilo que ele deseja fazer. Todas essas ações mentais geram o aprendizado informal.
Durante o processo, é preciso realizar a ação de convidar os atores, convidar os amigos, ver os espaços de gravação, ver os problemas técnicos que sempre acontecem, modificar algumas ações que queriam, alterar a narrativa, escolher uma música, finalizar, mostrar para os amigos, rever o filme, pilotar os créditos, etc. Todas essas ações e outras pequenas ações, ainda que não tenhamos comentado aqui, são importantes para que esse processo educacional aconteça. O importante na produção de vídeo estudantil não é o aluno falar quem foi Bandeirante X ou Y; qual é a fórmula de Bhaskara e ações do tipo memorística. Defendemos que o importante nesse momento de produção de vídeo é o aluno ter voz, falar um pouco do seu universo simbólico. Assim como o professor ter a humildade de compreender que aquele momento é do aluno, o vídeo é dele e o docente vai contribuir e ajudar na organização do trabalho. O importante é que o aluno saiba o que está fazendo. Naquele momento, professor e aluno estão ali produzindo, criando uma coisa em grupo que será deles, que estará registrada. A energia que existe no fazer vídeo estará de certa forma na ação entre eles.
No festival de vídeos de Canguçu tivemos 10 categorias, dentre elas as de melhor ator, melhor atriz, diretor, dentre outros. Essa ação foi importante, pois valorizamos os alunos. Assim, cada vídeo apresenta uma performance, dentro de uma temática e dentro de uma ação. Para quem está de fora do sistema educacional e não conhece os meandros da produção de vídeos estudantis ou nunca fez um vídeo com os alunos, pode pensar que é uma perda de tempo colocar alunos debatendo e discutindo sobre o roteiro de um vídeo. Pode parecer que o professor está matando o conteúdo e perdendo tempo discutindo coisas que não são importantes para o processo educacional. No entanto, nestes debates discutimos muito do processo educacional e da formação cidadã – pois discutir, ouvir o outro, compreender o outro, saber quem é quem, saber que sua opinião é importante, saber ouvir os outros (pois vivemos numa sociedade e todos temos ações e deveres para serem realizados) é uma forma de compreender também ações políticas. O melhor é todos trabalharem juntos para a realização do vídeo.
O que estamos fazendo na produção de vídeo é que o aluno compreenda um pouco mais do seu universo. Se um aluno ganhou um debate, mas, ao ver que o amigo ficou triste, vai querer incorporar a ideia do amigo ou simplesmente vai deixar de lado e fazer a sua parte, estamos falando de alunos em processo de aprendizado: alunos que estão crescendo, socializando entre si e compreendendo a sociedade. Assim, estaremos compreendendo e colaborando para que a nossa sociedade no futuro seja uma sociedade melhor, onde esses futuros alunos, ex-alunos, estarão debatendo não só o que é melhor para si mas o que é melhor para todos; para o grupo.
Imagem 4 – fotos da premiação do I Festival de Vídeo Estudantil de Canguçu, 2019.
Finalizamos esse pequeno relato de experiência informando que o festival foi interrompido no ano de 2020, em função do início da pandemia da COVID-19. No entanto, muitos aprendizados que realizamos com os alunos e professores foram utilizados por eles na pandemia: aprender a fazer vídeo, aprender a fazer entrevistas e aprender a utilizar os mecanismos tecnológicos audiovisuais.
A produção de vídeo ainda é um mistério para muitos professores, porém cada vez mais percebemos que essa produção de vídeo não é um mistério para os alunos, pelo contrário, eles a realizam a todo tempo. Tem-se na produção de vídeo uma ação importante para o seu processo educacional.
Devemos nós, enquanto professores e educadores, debater e perguntar:
– Qual é a importância de um festival de vídeo?
– Por que o professor vai utilizar um pouco do seu tempo de aula para fazer vídeo com os alunos?
– Qual a vantagem pedagógica desta ação de fazer vídeo?
Educação não é apenas informar, mas também ouvir os alunos. Na produção de vídeo estudantil tem um momento no final do ano, ou em algum momento determinado, em que os professores podem sentar com os alunos no auditório, onde os pais podem estar presentes e assistir aos vídeos e sorrir também – criando um momento em que a escola pode respirar e não só colocar informações atrás de informações. A produção de vídeo estudantil tem contribuído para que possamos repensar o processo educacional de diversas formas.
Referências bibliográficas
COSENZA, R. M.; GUERRA, L. B. Neurociência e educação: como o cérebro aprende. Porto Alegre: Artmed, 2011.
PEREIRA, Josias; DAL PONT, Vania. A Formação de Professores na Produção de Vídeo Estudantil: Importância dos Cursos de Licenciatura se Abrirem para Novas Metodologias. Revista Roquette Pinto. Pelotas. 5º Edição, p. 17-24. outubro/2021.
PEREIRA, Josias. A produção de vídeo em escolas: um estudo sobre o perfil dos professores que trabalham com a criação de vídeos em escolas do município do Rio de Janeiro. 2007. 147f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.
PEREIRA, Josias; MATTOS, Daniela Pedra; CHAVANTE, Eduardo. A Tecnologia Na Prática Pedagógica: Ações Docentes Que Se Distanciam. VI Congresso Brasileiro De Educação, 2017.
PEREIRA, Josias; DAL PONT, Vânia. Como Fazer Vídeo Estudantil na Prática da Sala de Aula. Pelotas. Erdfilmes, 2018.
Notas
- https://wp.ufpel.edu.br/labpve/ ↩︎
- https://br.rbth.com/estilo-de-vida/83284-nastia-a-youtuber-mais-popular ↩︎
- https://www.youtube.com/channel/UCJplp5SjeGSdVdwsfb9Q7lQ/featured ↩︎
- https://www.youtube.com/channel/UCtyr6UXUdZJJHuWGKzoiLfg ↩︎
- https://www.dn.pt/dinheiro/menina-de-7-anos-integra-lista-dos-youtubers-mais-bem-pagos-do-mundo-com-25-m-14504648.html#:~:text=O%20fenómeno%20mais%20marcante%20é,%2C6%20milhões%20de%20euros). ↩︎
- https://www.youtube.com/watch?v=3GRKHOAmAD8 ↩︎
- https://youtu.be/MMDnO01zMVI ↩︎