1. Introdução

No bairro de Santa Cruz, zona oeste do município do Rio de Janeiro, um filme de curta metragem intitulado Monumento Santa Cruz (2015) surge de uma aula prática da disciplina de Patrimônio Histórico do curso de História da faculdade Cândido Mendes. A aula, uma saída à campo, se baseava no reconhecimento histórico de certos locais do bairro, proporcionando ao aluno a noção do que era esquecido e o que era exaltada pelo poder oficial, onde essa história também dita oficial criava tanto silêncios, ao se perceber casarios antes importantes e agora aos pedaços, como continuidades ao se depararem com prédios reinventados e revalorizados na criação de uma nova identidade. 

A experiência foi filmada e posteriormente editada pelos próprios alunos, no qual o autor deste artigo foi o diretor e um dos idealizadores do projeto. A elaboração deste artigo trata-se, por tanto, de entender toda essa dinâmica da produção do vídeo, onde o ponto de vista do diretor cinematográfico se cruza com o do teórico da história na reflexão sobre esse processo no qual o filme deixa de ser somente uma obra cinematográfica e se torna um monumento. Um lugar de memória para os que vivem na região e não tinham a noção das complexas relações de poder existentes ali. O filme, ao revelar os silêncios imóveis dos locais e construções esquecidas, reinsere estes fragmentos de areias e tijolos na história local.

Por tanto a metodologia proposta para se perceber essa dinâmica se baseia em dois pontos. Na análise do conteúdo estético, ou seja, uma leitura do discurso cinematográfico percebendo o filme como um meio de expressão. “Com este tipo de análise encontramos, sobretudo, o modo como o realizador concebe o cinema e como o cinema nos permite pensar e lançar novos olhares sobre o mundo” (PANAFRIA, 2009, p.7). E numa revisão bibliográfica acerca das potencialidades do documentário ora como historiografia, ora como ficção.

2.  O cinema na história 

Para o Historiador Jacques le Goff, os vestígios do passado utilizados pelo pesquisador são uma escolha e não uma verdade objetiva. São matérias de memória alicerçados pelas forças políticas e sociais do momento histórico e “estes materiais da memória podem apresentar-se sob duas formas principais: os monumentos, herança do passado, e os documentos, escolha do historiador” (LE GOFF, 1996 p.536).

O Monumento a princípio teria um valor contestável, sendo caracterizado pelo “poder de perpetuação, voluntária ou involuntária, das sociedades históricas” (LE GOFF, 1996 p.536). Já o documento, testemunho essencialmente escrito, possuía mais legitimidade por ser relacionado à “neutralidade”. “Onde a objetividade do documento era o oposto da intencionalidade do monumento” (LE GOFF, 1996 p.536).

O autor constrói esse panorama justamente para desfazer essa ideia dicotômica, afirmando que todo documento é monumento, pois ambos são frutos de escolhas e intenções de quem os elaboram. Para ele:

O documento não é qualquer coisa que fica por conta do passado, é um produto da sociedade que o fabricou segundo as relações de forças que aí detinham o poder. Só a análise do documento enquanto monumento permite à memória coletiva recuperá-lo e ao historiador usá-lo cientificamente, isto é, com pleno conhecimento de causa (LE GOFF, 1996 p.545).

Desta forma todo o registro histórico seria considerado documento. Desde vestígios arqueológicos a relatos obtidos através da oralidade.

A história oral é justamente um destas complexas fontes que sempre existiu, mas numa perspectiva de história como processo, com base positivista e historicista, não era valorizada. Na história atual ela ganha novos contornos pois permite defender pontos de vista que não são os vistos de cima, ou refazendo a história de grupos que não tinha a escrita e por tanto eram considerados sem história, ou relegados a segundo plano no esquema hegemônico da história (PRINS,1992). O mundo contemporâneo parece comportar várias formas de comunicação como as culturas orais, as culturas escritas, e culturas mistas, geradas no advento deste mundo pós-alfabetizado da comunicação de massa eletrônica (PRINS, 1992).

Por esta perspectiva a imagem cinematografia e todos os seus derivados trazem para a oralidade um registro que não o enquadraria na lógica da escrita e sim daria novos valores a ela como um documento historiográfico. No curta metragem produzido em Santa Cruz essa oralidade é importante para se perceber o processo de descoberta dos locais visitados. É através das falas dos alunos e do professor que se tem o diálogo com a história local, sem a necessidade de nenhuma narração em off, ou cartela que explique o que acontece na tela.

Segundo o documentarista Eduardo Coutinho em toda a filmagem há uma tensão entre os que produzem o filme e os que falam no vídeo. Como ele cita: “Você sabe que toda filmagem – e acredito que na história oral isso exista também, mas de uma forma mais amena, mais simples, mais implícita – tem que ser negociada.” (COUTINHO, 2009 pg 21). Ou seja, só vai existir a obra se houver antes um diálogo. Por isso Coutinho preservava tanto a ideia de respeitar uma “verdade da filmagem”, acima de uma ideia de verdade absoluta.

Toda montagem supõe uma narrativa, todo filme sendo uma narrativa pressupõe um elemento forte de ficção, e isso também acontece na História, o que não quer dizer que a História seja uma ficção e nem que o documentário seja uma ficção, Eles são um tipo, se quiserem, um tipo diferente de ficção, e o que eu tento na montagem da estrutura é preservar a verdade da filmagem, que às vezes pode ser indicada pela informação da situação da filmagem, da data de filmagem, por elementos bem concretos; pelo confronto, se a pessoa pediu ou não pediu dinheiro. Isso quer dizer que, de um lado, você tem a tentativa de manter a verdade da filmagem e, de outro, você é obrigado a fazer uma narrativa com elementos de ficção, porque você constrói personagens, constrói conflitos, que se resolvem ou não. (COUTINHO, 2009, p. 26)

Um texto elucidativo, desta complexa relação do cinema documentário como o documento história é o artigo intitulado Memória em movimento: a experiência videográfica do LABHOI/UFF, dos autores Ana Maria Mauad e Paulo Knauss (2006), que trata do uso da história oral como fonte para a produção de um vídeo produzido pela reunião de um conjunto de relatos e imagens de arquivos que os autores vão chamar de “fontes de memória”. O processo narrado no artigo revela que essas fontes foram:

 (…) entrelaçadas na composição de uma narrativa que teve como objetivo original temporalizar as imagens através da memória atualizada pelo relato oral.” (…) “O significado processado pelo tempo vivido da memória foi reelaborado, valorizando a dimensão da intertextualidade, relacionando palavras e imagens, resultando numa narrativa polifônica onde os tempos históricos se cruzam.” (MAUAD; KNAUSS, 2006 p.144).

Mas do que somente uma descrição de como o processo do vídeo foi produzido, o texto Memoria em movimento assinala que o cinema é um documento historiográfico privilegiado pois faz emergir da tela o inesperado, mais do que os documentos escritos. “Dessa forma, os filmes podem revelar alguns dos silêncios da história oficial, permitindo alcançar, além da realidade representada, uma zona da história escondida, fugidia, invisível.” (MAUAD; KNAUSS, 2006 p.145)

Marc Ferro foi o primeiro que percebe o cinema como uma importante fonte, uma nova história associa a película com a sociedade que a produz. Apesar da tradição historiografia atual já assimilar novas formas de legitimar suas fontes, a oralidade, o folclore, são exemplos disto, segundo Ferro, faltaria agora inserir o filme associando ele ao mundo que o produz. “O filme, imagem ou não da realidade, documento ou ficção, intriga autêntica ou pura invenção, é História (FERRO, 1992, p.86).

Para o autor todo imaginário produzido pelo homem, sua arte, crenças, invenções, são também história. O filme então deve ser analisado não como uma obra de arte, mas sim como um produto da sociedade em que ele se insere, uma “imagem-objeto, cujas significados não são somente cinematográficos”. (FERRO, 1992, p.87) Introduzindo no estudo histórico um método em que as relações entre os componentes da narrativa fílmica e os que não são – como o seu financiamento, seu público, o momento histórico e etc. – produzem elementos que podem ser lidos e analisados.

Junto a uma análise histórica da obra cinematográfica, é possível também propor uma leitura cinematográfica do passado, marcando um outro ponto de vista sobre a relação do cinema com a história.

A leitura cinematográfica do passado coloca o historiador diante do problema de sua própria escrita da história. A experiência de diversos cineastas contemporâneos, tanto no campo da ficção quanto da não-ficção, demonstra que, graças à memória popular e à tradição oral, é possível desenvolver uma abordagem do passado a partir da criação filmografia.  (MAUAD; KNAUSS, 2006 p.147)

Diferente do que se percebe comumente os documentários não podem ser vistos como verdades, eles sempre foram formas de representar uma realidade. “O cinema sempre foi um participante-testemunha e um ativo fabricante de significados, um produtor de discurso cinematográfico e não um repórter neutro e onisciente da verdade das coisas.” (DA-RIN, 1996, p.73). Da mesma forma como pensa Le Goff dos documentos escritos, como produtos da sociedade que os utilizaram.

3. O filme

Desta forma os alunos que participaram da saída a campo, cada um com suas visões particulares da realidade e do dia a dia da Zona Oeste, puderam transmitir suas percepções para a câmera, muito mais do que revelando uma verdade, mas sim apresentando suas formas de verdades que podem ser interpretadas pela lógica narrativa do filme.

 Mais do que dialogarem com a história, eles também foram impactados pelo processo. Ao assistirem ao filme e perceberem, através da experiência cinematográfica, visões que suas próprias percepções não podiam transformar em palavras e que a subjetividade do cinema pode enriquecer. Afinal, “o cinema dispõe de certo número de modos de expressão, que não se caracterizam como mera transcrição da escrita literária” (MAUAD; KNAUSS, 2006 p.146) trazendo à tona novas forma de se entender a história. 

A estrutura narrativa do filme se baseia no entrelaçamento de dois momentos. O primeiro que são as imagens da saída à campo, feitos de forma livre, quase descompromissadas, pois não havia um projeto definido do que seria feito com o material. E um segundo momento, composto pelas entrevistas de alguns participantes selecionados pelo diretor, momento em que as imagens filmadas anteriormente já haviam sido analisadas e a partir desta analise se criou um roteiro para se basear as entrevistas e a narrativa central do curta. É esse segundo momento que busca criar, através da oralidade registrada pelas entrevistas, as percepções de todo o processo que dialogam diretamente com a historicidade presente na linha narrativa da obra.

É importante também perceber a qualidade técnica do filme, que deixa um pouco a desejar se for comparar o filme a um documentário produzido de forma profissional. Em vários momentos há cenas desfocadas, movimentos de câmera abruptos, um som que se mostra cru, sem nenhum tratamento de pós-produção, entrevistas feitas de improviso. Todos os elementos que ao mesmo tempo podem ser lidos como amadorismo, mas que trazem para o filme uma liberdade estética que imprime a experiencia da saída a campo de forma mais natural e espontânea. Como já dito, a filmagem inicial foi produzida de improviso e acabam por ser fruto do próprio processo de descoberta dos patrimônios históricos visitados. Desta forma o espectador, com os personagens do filme, parece estar também descobrindo o bairro de Santa Cruz.

O filme começa com rápidas falas dos entrevistados acerca da realidade do Bairro. Para o aluno Jorge Luiz Alves:

Santa Cruz é meio camaleônica… Santa Cruz de instância real e imperial passou a ser uma roça aprazível, agradável, onde muita gente vinha para cá porque historicamente não tinha como morar no subúrbio. Foram sendo tacados para cá, mas até mais o menos os anos setenta virou um lugar bom. Hoje em dia Santa Cruz é um lugar de negociata política.

Marcando a ideia de que o local foi paulatinamente perdendo sua importância depois de ter sido um importante local para período imperial. Região que recebeu um contingente enorme de morados colocados ali pelo governo quase que a força.

A aluna Mayara Maurilo escolhe outra fala para se referir ao bairro: “Santa Cruz é o bairro da ‘galera’ que trabalha longe e só vem para dormir, da ‘galera’ que não tem muito conhecimento e a ‘galera’ não se interessa muito. Eu acho que é um bairro muito esquecido.” Suas percepções estão voltadas para as dificuldades de locomoção e de acesso a informação, tornando Santa Cruz um lugar esquecido pelo resto da Cidade.

O aluno Paulo Lima, que é envolvido com a política local, afirma em sua fala a importância histórica do bairro: “Santa Cruz é um bairro que para mim sempre despertou interesse não só da questão do interesse político, mas também do ponto de vista histórico, que assim como São Cristóvão, Santa Cruz é um bairro imperial da cidade do Rio de Janeiro”.

E por fim o Professor Eduardo Afonso, que guia os alunos da saída à campo, assinala que: “O Sujeito aqui parece que vive exilado numa cultura muito própria onde não há um resgate ao seu valor histórico a sua memória a sua autoestima e a sua cidadania.” Desta forma o filme revela um panorama sobre a vários aspectos do bairro marcando o seu início

A saída à campo começa com uma importante explanação do professor Eduardo Afonso na porta da universidade, revelando para os alunos os objetivos da aula. Ele fala: “Nós optamos por fazer os pontos, reconhecer estes pontos aqui localmente, muito mais por uma visão, para criar em vocês uma noção política do que é poder, do que é abandono do que é reconhecimento em relação ao patrimônio histórico-cultural do qualquer outra coisa”. Fazendo, assim, um preludio do que ele espera que os alunos percebam da experiencia.  Outra fala importante do professor se dá num trecho de sua entrevista em que de uma forma excitante ele continua essa lógica: “(…) a gente resolveu sair para ver como que a memória e a história estão sendo representados aqui na região. E de que forma esse patrimônio histórico-cultural é reconhecido pelo poder público ou não é reconhecido pelo poder público.” 

Claramente a narrativa do documentário busca demonstrar essa dualidade do que é esquecido e do que é ressignificado através de uma política local. O maior exemplo que o filme dá desta dinâmica é o momento em que os alunos se deparam com a Casa do Sal, que segundo a narrativa do documentário era o local em que se produzia o sal para a antiga fazenda imperial existente em Santa Cruz. O professor se refere ao local como uma “viúva do espaço”, pois não recebeu nenhum valor político para a história local e se encontra em um estado lastimável de degradação. A fala de alguns alunos demonstra que ali era um local desconhecido para eles, que passavam diariamente pela Casa do Sal e nunca tiveram essa percepção.

 A fala da aluna Edilaine Melo evidencia aspectos desse silêncio vindo à tona: 

Eu prestei atenção em coisas que eu não prestava, que geralmente a gente não olha, não aprecia. Que nem aquela Casa do Sal. Eu não fazia ideia de que aquilo ali tinha sido a Casa do Sal, apesar de estar super abandonada. Ninguém faz nada! Mas fiquei muito encantada em saber que aquilo era a Casa do Sal, jamais eu saberia.

Edilaine com suas palavras percebe que antes aquela casa era silencio, no sentido de ser abandonada, feia, velha. Mas agora, para seu novo olhar, virou história, a importante Casa do Sal.

Por outro lado, a visita ao batalhão Villagran Cabrita, hoje em dia pertencente ao exército, mas um lugar que sofreu mutações de acordo com o tempo e a política. Transformações que evidenciam a valorização do local, tendo em seu interior um museu do exército com itens até da Segunda Guerra Mundial. Inicialmente o batalhão era a cede de uma fazenda jesuítica, responsáveis pelo povoamento inicial do local, depois foi assimilada pelo império e virou a casa de campo do imperador Dom Pedro I. E, após a Proclamação da República, virou propriedade do exército. 

Neste momento o filme trabalha com um poder do cinema que é limitado para a escrita acadêmica da história. Que seria o da metáfora através da manipulação da imagem e do som. Quando o batalhão é apresentado para o espectador através de várias imagens de registro dos alunos interagindo com o local, se percebe a extrema valorização dos símbolos militares. Ao mesmo tempo que esses símbolos de poder bélico são apresentados, o aluno Jorge Luiz fala em sua entrevista:

Se você quer dominar, se você que exercer influência, monumento popular não interessa, se não poderíamos estar falando, já que o assunto é história, mais de Spartacus do que de Júlio Cezar. Spartacus liderou uma revolução escrava e tudo mais. Mas se fala muito em Caio Júlio Cezar, o ditador de Roma, das elites. A mesma coisa depois de dois mil, dois mil e quinhentos anos, a mesma mentalidade.

Essa construção narrativa faz evidenciar que o que se valoriza na região é uma questão de escolha das elites e do poder estabelecido. Dando a entender que o diretor do filme compactua com essa ideia e percebe nas falas dos entrevistados que esta percepção pode ser uma das verdades que expliquem a dinâmica da valorização ou não dos patrimônios históricos culturais da região.

Por mais controlador que a produção de um filme possa ser, ao tentar moldar uma ideia, há na obra final aspectos que fogem ao diretor e que podem ser lidos de outra forma. Pois o “olhar deve ser assim considerado parte da cultura que demanda uma sociedade e a experiencia de seu tempo” (MAUAD; KNAUSS, 2006 p.147) e pode ser percebido de diversas formas de acordo com o tempo e o contexto que a obra está inserida. Já a metáfora é um exercício de dar significados, e ela só se dá na experiencia de ver o filme.

Para historiadores como Hayden White e Frank Ankersmit, a dimensão da metáfora no discurso historiográfico é, em última instancia mais poderosa do que a literal e factual, atualmente. (ROSESTONE, 2010,)

Essa percepção se problematiza, e parecem ter dois pontos de confronto. O primeiro que tem Frank R. Ankersmit (2001) como um de seus defensores, percebe a historiografia ligada muito mais com a estética do que com conteúdo, onde a noção da criação literária se apresenta como uma realidade para os autores. A realidade estaria submetida ao discurso, onde as relações de causa e efeito positivista não fazem mais sentido. Está na interpretação e na relatividade o poder da história. Tanto que o autor percebe que o que se escreve são interpretações de um texto e não mais o texto em si, quando se estuda um pensador, a analise deste já está comprometida por diversos outros textos que o interpretam, sem nem precisar ler o texto original.

Já Peter Zagorin (2001), percebe a historiografia como conteúdo, onde uma realidade percebida pelo pesquisador é que vai gerar o discurso, onde o documento seria uma forma de validar a verdade e a separa da literatura, pois para o autor as ideias como as de Ankersmit tiram a funcionalidade da história, que seria contar o passado. Zagorin critica essa ideia pois toda essa argumentação transformava a história em um simples discurso literário, onde a estética era mais importante.

Apesar da polêmica que esse diálogo gerou na historiografia atual, é justamente essa concepção, a que percebe a história como interpretação, irmã da ficção, que abre o caminho para se pensar mais seriamente no cinema como uma possível fonte de história, e mais além, como um autêntico produtor de uma historiografia. E no documentário analisado há uma tentativa de fazer essa historiografia particular que trabalha com símbolos e metáforas para ajudar a escrever significados que vão além da pura interpretação objetiva do que se está falando através das entrevistas no filme.

4. Considerações finais

Esse processo, que já foi desenhado em páginas anteriores e se inicia de forma despretensiosa, trabalha uma linha narrativa que transforma as imagens da saída a campo em um discurso, modelado principalmente quando o filme foi editado. Onde a fala do professor Eduardo Afonso e as imagens dos alunos na rua, foram sendo cruzadas com os depoimentos dos entrevistados. 

E através desses dois momentos se chegou a um terceiro, onde até os personagens que tinham falas importantes no filme não tinham a total ideia do que seria a obra final. É justamente nessa etapa que se percebe uma das principais características do processo; quando os alunos, e aí se referindo a todos, não só os que deram o depoimento, mas também os que participaram da aula, puderam ter acesso a esse terceiro elemento, que não é a visita a campo em si, nem puramente suas percepções particulares sobre a realidade, mas sim um terceiro ponto de vista que escapava aos olhos destes alunos. 

A visão cinematográfica trouxe uma outra perspectiva sobre o assunto. Pode ter tornado mais impactante para alguns, mais curioso para outros, ou mais esclarecedor. À medida que a experiencia vivida ia se perdendo no imenso mundo da memória, esse terceiro elemento a quem chamamos de filme, se tornava a sua história e a história do bairro que transitavam.

É justamente nesse lugar que não tem fala, que se insere na percepção de cada um e por isso escondido, que se dá o silêncio da experiência vivenciada nesse processo. É quando os próprios participantes desta realidade participam de uma exploração desta natureza e em seguida podem se distanciar virando espectadores, que há uma outra forma de percepção, a que estava escondida no silêncio da história oficial. 

Através das entrevistas se pode obter as informações que não estão escritas, revelando através da entonação do entrevistado, do seu gestual e reações corporais uma outra percepção dos fatos, que não são da ordem objetivista que se espera de um trabalho escrito. Quando se escuta um personagem falar, também estamos adentrando no seu subjetivo e lidando com outras formas de perceber o mundo, que por sua vez também são fontes para o historiador trabalhar. “O profissional da história define-se como mediador entre os que fizeram a história, legaram seus registros, estão querendo contá-la e aqueles que estão querendo ouvi-la e vê-la.” (MAUAD; KNAUSS, 2006 p.151) 

Na parte final do filme a narrativa ainda busca demonstrar uma forma de lidar com essa dinâmica entre o que foi esquecido e o que foi continuado como referência histórica local. Que seria, justamente, a inserção do cidadão, do habitante da região, nos estudos da história da região, através do ensino superior. Como fala o professor Eduardo Afonso: “Acho que o papel da universidade é provocar essas questões, provocar uma crítica e uma parceria para soluções, ver a problematização e trabalhar parcerias para soluções.”  As falas finais de cada entrevistado também ressaltam essa importância de se estudar o local onde se vive. 

Outro aspecto que se pode perceber no filme, como na maior parte dos documentários produzidos, é de que, assim como o trabalho acadêmico, conta um enredo com começo, meio e fim, na busca de exemplificar sua tese. “Como o acadêmico o cineasta está sempre incorporado a uma visão progressiva do passado. (ROSESTONE, 2010, p. 35)”, ou seja, existe na própria narrativa cinematografia elementos que representem essa progressão de fatos e de conflitos inerentes ao pensamento histórico.

Nem todo cinema é historiografia. Um filme de época sem pretensões históricas usa o ambiente do passado como um cenário para um romance ou uma aventura sem se preocupar em interagir com os discursos historiográfico. “Um filme histórico, por outro lado, interage com aquele discurso fazendo e tentando responder perguntas que, a muito tempo circundam um determinado tópico.” (ROSESTONE, 2010, p.74) 

No entanto, um documentário por ter em sua estética a preocupação com a realidade, acaba por ter na sua gênese essa relação com a história. Sua narrativa não deixa de ser uma tentativa de criar elementos que abordem um ponto de vista sob uma suposta verdade, usando de fontes e documentos, apesar de o gênero também ser uma ficção.

Estudiosos e críticos do documentário já enfatizaram as implicações ideológicas existentes na representação da realidade por meio desta modalidade fílmica. A objetividade realista do documentário, por exemplo, pode facilmente escamotear o fato de que o filme está baseado numa certa visão de mundo. (MAUAD; KNAUSS, 2006 p.147)

Desta forma o curta-metragem “Monumento Santa Cruz” está produzindo historiografia, através da modalidade do documentário que aborda a história como tema. Criando uma narrativa que elabora um discurso sobre a valorização ou não dos locais reconhecidos pela historicidade oficial, e como os alunos podem perceber os nuances desta relação mudando suas formas de perceberem o próprio bairro. Neste sentido o filme cria um diálogo com a história ao tentar dissertar sobre o que seria um patrimônio e o que seria o silêncio da história usando o registro da oralidade, tanto do momento da saída a campo como nas entrevistas feitas posteriores a aula, para se chegar a ideia central do texto cinematográfico. Transformando o documentário em um Monumento de Santa Cruz.

5. Referências bibliográficas

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COUTINHO, Eduardo. O cinema documentário e a escuta sensível da alteridade. In: Ética e História orais – Projeto História. Revista de pós-PUC\SP no.15; Educ,1997.

COUTINHO, Eduardo. Encontros – Eduardo Coutinho. (Felipe Bragança – Org.). Azougue Editorial: Rio de Janeiro, 2009.

DA-RIN, Silvio. Auto-reflexividade do documentário. Cinemais: Revista de cinema e outras questões audiovisuais, Rio de Janeiro, n.8, p. 71-92, 1997. 

FERRO, M. Cinema e História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

FERRO, M. A história vigiada. São Paulo: Martins Fontes, 1989.

LE GOFF, Jacques. História e Memória. 4.ed. Campinas: Editora da Unicamp, 1996.

MAUAD, Ana Maria; KNAUSS, Paulo. Memória em movimento: a experiência videográfica do LABHOI. História Oral, Rio de Janeiro, v.9, p. 143-158, 2006.

PANAFRIA, Manuela. Análise de Filmes – conceitos e metodologia(s). VI Congresso SOPCOM, abril de 2009. Disponível em: <https://mail.google.com/mail/u/0/ > Acesso: 24/06/2019

PRINS, Gwyn. In: Burker, Peter. A escrita da História: Novas perspectivas. São Paulo: UNESP,1992. 

ROSENSTONE, Robert A. A História nos filmes/ Os filmes na História. Rio de Janeiro; Paz e terra, 2010

ZAGORIN, P. Historiografia e pós-modernismo: reconsiderações. Topoi, Rio de Janeiro, mar. 2001, pp. 137-152.

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