Uma produção audiovisual estética, ético-política e antirracista

1. Introdução

Simplesmente Irani é uma produção desenvolvida a oito mãos. É um trabalho coletivo, concebido a partir do desdobramento de encontros e transformado em uma produção audiovisual enviada para o 8º Festival Curta na UERJ1. Em 2019, este festival tinha como tema “Memória”, o que nos despertou bastante interesse, afinal, como o próprio enunciado do festival nos informava: “a memória constituiu um fator de identificação humana, sendo mecanismo para a construção da identidade social e local”, fazendo-nos refletir sobre os diferentes aspectos da memória, seus elementos e as suas várias perspectivas.

No curta, Irani Ribeiro, protagonista e também uma das produtoras, revisita suas memórias de infância, relembra momentos marcantes da sua trajetória e divide conosco a descoberta de ser uma mulher afro-indígena. Natural do Croatá, Zona Rural do estado do Ceará; ela, assim como muitos outros Nordestinos, se embrenha numa diáspora (GILROY, 2001) em busca de novas vivências e experiências. Seu nome indígena, tupi guarani ou tapuia, que significa “rio de mel” ou “abelha enfurecida” é o ponto de partida para tal reconhecimento. 

Como somos pesquisadoras e pesquisadores da linha conhecida como cotidianos, onde um dos objetivos é refletir as tantas redes educativas que neles formamos e que nos formam, percebemos a importância de uma narrativa cinematográfica para além dos padrões hollywoodianos. Já atravessados pelas histórias de Irani, nossa “personagem conceitual” (ALVES, 2019), abraçamos a ideia de juntos desenvolvermos uma produção audiovisual para participar do festival: queríamos que nossas câmeras captassem uma Irani enunciante pois “quem enuncia tem a possibilidade de escapar do lugar da invisibilidade pela/com a palavra, pelas/com as narrativas” (PASSOS, 2014, p. 228).

Nosso curta ganhou o terceiro lugar na votação do público, o que nos estimulou a aprofundar as histórias narradas por Irani. A partir de um processo dialógico e das ideias de Santos (2001), percebemos que nossas conversas “[…] explicitam um versar com, em companhia, compartilhando falas e dividindo histórias” (p.5).  Ainda brincando/jogando com Santos (2011) e as derivações do verbo fiar, corroboramos com a autora que as rodas de conversas de um grupo de pesquisas podem ser fiadas pelo fato de não terem intenções definidas, por não receberem um controle formal e por terem como assunto temas variados (NATIVIDADE, 2011). 

Estas conversas nos levaram a experimentar o cinema – uma experiência documental e autobiográfica onde Irani (sozinha, de frente para a câmera e conversando com seus expectadores) simplesmente desnaturaliza as tantas imagens estereotipadas pelas quais somos tecnologicamente invadidos cotidianamente e busca “a escuta sensível da alteridade” (OHATA, 2013, p.21). Na posição de autora-atriz, Irani conversa com a câmera e nos permite fazer um filme: um “desafio que mobiliza qualquer um que pensou um dia em ligar uma câmera, em se relacionar com o cinema” (MIGLIORIN et al, 2014, p. 91) e em se relacionar com os outros; mergulhando na ideia de “fazer um filme para alguém sobre nossas vidas, nossa forma de ver o mundo, nosso território, as coisas que nos afetam […] o que conhecemos e queremos compartilhar, nossas histórias e invenções” (idem, p. 91). Irani nos faz perceber a existência de outras narrativas cinematográficas, outras (suas) histórias e estas carregam um pedaço da gente e certamente nos vemos, em alguns momentos, dentro dela.   

2. A felicidade sempre esteve em mim!

A cada encontro do nosso quarteto, nossas conversas nos levavam a mergulhar em todos os sentidos: ouvindo, tocando, degustando as histórias de Irani.  Através de uma escuta atenta e um olhar sensível, um agir/pensar sugerido por Passos (2014) a partir do ato responsivo/responsável de Bakthin (2010), fomos nos envolvendo com as histórias de Irani e participando das filmagens por trás dos bastidores.

Estas histórias de vida de Irani nos levam a refletir sobre formas outras de narrar: são narrativas autobiográficas cujo desenrolar enaltece sua leitura de vida, suas formas de ver e entender o mundo. Nos arrasta para fora da história única eurocentrada descrita pela feminista e escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie (2009) e nos coloca sobre o fato biográfico citado por Souza (2011), Irani se anuncia como sujeito e se enuncia como autora de sua própria história. Apesar de Eliseu Clementino de Souza (2011) pontuar a importância da autobiografia em relação a escrita, as narrativas cinematográficas de si também são dispositivos que preenchem a nossa formação, uma vez que “conhecer, ouvir, ler a vida do outro é um modo de formação” (SOUZA, 2011, p. 371). Assim, nossa personagem passa pelo “processo de emancipação do sujeito-ator-autor” (idem, p.380), uma sujeita-atriz-autora, e busca uma “reflexividade autobiográfica na promoção da transformação das representações de si” (idem, p. 380).

A cada história enunciada, anunciações, denunciações e renunciações eram descobertas. O filósofo martinicano, Frantz Fanon (2008) pontua “que falar é existir absolutamente para o outro” (p. 33), e à medida que Irani narrava suas memórias, começava a existir para nós uma mulher afro-indígena, possuidora de narrativas guerreiras, atravessadas por diversas vivências e experiências interseccionais cotidianas baseadas no feminismo negro diaspórico (COLLINS, 2019; CRENSHAW, 2004; DAVIS, 2016; GONZALEZ, 2020; SANTOS, 2007).

Sua fala é contaminada pela condição de mulher nordestina cujos apontamentos constantemente denunciam um olhar colonizador do sudeste sobre o nordeste, bem como confessa as dificuldades de sua travessia por territórios construídos pelo patriarcado. Enquanto se narra, é como se suas histórias fossem sendo descascadas – é como um palimpsesto que vamos raspando e descobrindo os vários lugares que ela habita. Além disto, ela anuncia sua transformação em uma cidadã preparada para invadir os espaços que deseja. 

Falando para a câmera e monologando para diversos espectadores, Irani multiplica vozes e refuta um discurso único imposto pela branquitude em relação à mulher afro-indígena nordestina, na verdade, uma imagem inventada do nordeste sobre a qual nos acostumamos (ou fomos acostumados). “Ao promover uma multiplicidade de vozes, o que se quer, acima de tudo, é quebrar com o discurso autorizado e único, que se pretende universal. Busca-se aqui, sobretudo, lutar para romper com o regime de autorização discursiva.” (RIBEIRO, 2017, p.70). Falando, Irani se conta, narra seus traquejos e vicissitudes, tal como expõe uma contranarrativa mediante aquelas produzidas pelos processos sócio-midiáticos dentro de um país classista e discriminatório.

As histórias de Irani são como a ginga da Capoeira. É na ginga que se arquiteta um ataque e até mesmo uma defesa. É uma negociação, uma verdadeira ação diplomática em que se evita o conflito direto na roda.  Então para nós, Irani com sua ginga, parece cada vez mais com a rainha a qual deu nome a esse movimento. A rainha do Ndongo, atual Angola, Nzinga Mbandi (1582-1663). A destemida rainha usava de sua perspicácia para vencer os adversários, ora enganando, ora fugindo, ora num combate direto. É o que Certeau (1998) vai chamar de “homem ordinário” ou, mais apropriado nesse caso, “mulher ordinária” que são sujeito(a)s portadore(a)s de táticas por meio das quais conseguiam transformar o contexto em que viviam, roubando, ludibriando as estratégias impostas pelas camadas dominantes. 

Percebemos nos depoimentos de nossa personagem conceitual um gingar com as adversidades da vida onde a busca pela felicidade sempre foi um dos seus ideais. Irani acreditava que a felicidade estava nos outros, ou seja, eram os outros que diziam qual era o caminho a ser tomado em prol de sua felicidade. E para nós essa narrativa refletia a felicidade nos moldes do colonizador. Na trajetória de sua vida, gradualmente, isso foi mudando. Para ela, as vozes gritantes colonizadoras quase desenvolveram um novo ser capaz de esquecer/apagar o que um dia foi sua identidade, seus sonhos e sua cultura. 

O deslocamento identitário acontece porque há uma tendência em permitir que as histórias sem perfis pré-definidos esteticamente pelo modelo padrão não se encaixem socialmente. Desta forma para atender a um modelo ideal de vida de sujeitos, Irani acreditava que esquecer sua identidade e adotar um único jeito de pensar sobre os sujeitos e os lugares era o caminho possível. Para nós, tal assertiva é uma agressão à diversidade, pois o convívio com as diferenças é uma riqueza, dada à existência de pessoas com variadas presenças culturais no mesmo espaço. 

O sentimento por qual Irani vivia pode ser retratado em Davis (2016) quando a autora faz uma reflexão do quanto a mulher negra é desumanizada e nos mostra “a necessidade da não hierarquização das opressões, ou seja, o quanto é preciso considerar a intersecção de raça, classe e gênero para possibilitar um novo modelo de sociedade” (p.12). Logo, é necessário salientar um fato importante da nossa realidade histórica: “a consciência da opressão ocorre antes de tudo por causa da raça” (GONZALEZ, 2020, p.147), ou seja, o primeiro olhar que nos atravessa é racial. Daí a importância de nossa personagem reconstruir sua identidade indígena e resgatar a cultura negra de sua história quando se autodeclara uma mulher afro-indígena.

3. Espaçostempos em Irani

Irani não desistiu de buscar os seus sonhos. Ela aproxima sua história aos olhares públicos por cerca de dez minutos e deixa claro o quanto somos um país excludente. Conta que seu sonho de ser professora nasce muito cedo, mas só ingressará em uma universidade aos quarenta e dois anos para cursar Pedagogia. Em 1996, Irani deixa o interior do Ceará, sua terra Natal, e vai tentar a vida na cidade grande. Antes da tão sonhada universidade pública, ela conclui os estudos a noite – pois precisava trabalhar durante o dia e cuidar de três filhos. Termina o antigo oitavo ano em 1999, pelo Telecurso 20002 em uma igreja. Logo depois, cursa o ensino médio, tudo perto de sua casa, no Parque União, Maré – RJ, para onde se mudou quando saiu do Ceará. 

Morou durante dezessete anos neste complexo, um lugar onde, mesmo diante das dificuldades, ela subverteu o sistema excludente e criou seus filhos, trabalhou e estudou. Para Irani o lugar tem um significado de resistência assim como a história dela – falar do lugar, dos movimentos sociais que lutam continuamente por igualdade social através de projetos, ONGs e escolas (que funcionam à noite para atender este público ‘fora’ da idade escolar). Tudo isso se mistura às suas vivências. Foram justamente tais oportunidades que lhe possibilitaram o ingresso na universidade, a UERJ.

O Bairro da Maré, região conhecida também como o Complexo da Maré3, é uma aglomeração de quinze favelas na Zona Norte do Rio de Janeiro. Toda a região da Maré era ocupada por pântanos e manguezais junto à orla da Baía de Guanabara e abrangia vários acidentes geográficos que desapareceram com os sucessivos aterros. Suas delimitações geográficas são definidas pela Baia de Guanabara e três vias expressas: Avenida Brasil, Linha Amarela e Linha Vermelha.

A área começou a ser ocupada na primeira metade do século XX, pois a cidade do Rio de Janeiro crescia, e com isso mãos de obra eram necessárias. Aliados a esses fatores, a seca também impulsionava a saída de mão de obra do nordeste para a região sudeste, de modo que a Maré ia se compondo como um grande território de migrantes nordestinos. O termo “Maré” tem origem no fenômeno natural que afligia os moradores das palafitas que ocuparam a região a partir de 1940. Em 1982, foi implementado o “Projeto Rio”, grande intervenção pública para reassentar os moradores das palafitas em conjuntos habitacionais. 

Pensamos o Complexo da Maré através das concepções de Xavier (2012) entendendo o território como “um ‘campo de forças’, uma teia ou rede de relações que, a par de sua complexidade interna, define num só tempo um limite e uma alteridade” (p.1013). A territorialidade nesse sentido vai se compondo de forma subjetiva e relacional, podendo ser conhecida e reconhecida por suas diversas formas e expressões, ou seja, será um patrimônio cultural (XAVIER, 2012). Para Sodré (2002) o território é um “espaço-lugar” (p. 23) que se substancia nas memórias que seus agentes constroem, sendo por isso forças ativas e simbólicas. Na Maré, os migrantes que chegavam juntavam-se aos pescadores e construíam suas moradias sobre as palafitas num processo de associativismo. Em 1994, a Prefeitura do Rio de Janeiro oficialmente declarou o bairro da Maré como sendo parte da 30ª Região Administrativa4

O geógrafo carioca, professor e pesquisador Luiz Lourenço (2017), pontua que sua pratica pedagógica no ensino de geografia no bairro Maré se dá através da cartografia social e alternativas de estudos decoloniais.

A cartografia é uma ferramenta de ensino essencial no campo da Geografia, uma vez que é através dela que podemos mensurar, representar e reconhecer a espacialidade dos territórios e suas particularidades. Sua importância nas salas de aula reside em sua capacidade ilustrativa de revelar aos estudantes aspectos gerais sobre um determinado local. A partir da visualização espacial do território, é possível desenvolver as temáticas concernentes ao ensino de Geografia, criando nexos entre o arcabouço teórico dos conteúdos e seus reflexos no entendimento das dinâmicas territoriais (p. 77).

Lourenço (2017) nos informa que as principais ferramentas para o ensino de Geografia são os mapas do local, que muitas vezes não possuem quaisquer representações cartográficas sem relação a realidade do lugar, obrigando professores a usarem estes ou se reinventarem. O fato é que estes mapas oficiais criam dificuldades para os estudantes  entenderem situações reais da sua própria localidade. Para tal, foi desenvolvido um mapa pelo próprio autor através do projeto educacional analisado e desenvolvido no Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (CEASM), Organização Não Governamental (ONG) que atua no segmento de ensino, comunicação, memória e cultura, sendo uma importante referência dentro do bairro Maré.

De acordo com o Censo Populacional local – Redes da Maré – em 2013, o Complexo somava 139.073 moradores distribuídos em 47.758 domicílios. A economia local conta com três mil cento e oitenta e dois (3.182) empregos, destacando-se aí os bares (660) e os salões de beleza (307). Atualmente é o maior complexo do Brasil com quarenta e seis (46) escolas oferecendo todos os níveis da educação básica, com um percentual menor no ensino médio comparado ao restante da cidade do Rio de Janeiro. Apenas 2,4% dos moradores do complexo conseguem cursar a universidade5.

Consequentemente, é essencial entender a favela como um território integrante da cidade, e não como margem/marginalidade da mesma. Apesar de ser visto como um espaço cujos habitantes não são pertencentes ao centro urbano e estar repleta de clivagens sociológicas que interferem nos modos de vida destes sujeitos favelados, faz-se necessário entender que estes movem as engrenagens dos lares, indústrias e comércios viabilizando o funcionamento e o sustento da cidade. A favela se mantém, se (re)produz e é base para a economia dos municípios a partir da mão de obra de seus moradores. Nesse sentido,

A margem não deve ser vista apenas como um espaço periférico, um espaço de perda e privação, mas sim como espaço de resistência e possibilidade. […] é um local que nutre a nossa capacidade de resistir à opressão, de transformar e imaginar mundos alternativos e novos discursos. (KILOMBA, 2019, p.68).

Irani, após onze anos consegue retornar aos estudos e o sonho de se tornar professora. No final de 2013, ela procura um pré-vestibular comunitário e inscreve-se no Redes da Maré na favela da Nova Holanda, porém só é aprovada através das cotas ao final de 2015. Em 2016, para a alegria da família, dos amigos e principalmente dela, entra para cursar Pedagogia na Universidade Estadual do Rio de Janeiro.  Uma nova visão de mundo se abria para Irani e, consequentemente, o choque de realidades. Apesar do choque, a posição de Irani dentro dos espaços percorridos faz com que ela reflita de forma diferenciada e ampla em relação a si mesma e em relação à sociedade. Ela é “uma forasteira de dentro”, uma outsider within, (COLLINS, 2016) cuja observação e ponto de vista do seu em torno é diferenciada pois “aquelas em contato com sua marginalidade  em contextos acadêmicos, exploram esse ponto de vista produzindo análises distintas quanto às questões de raça, classe e gênero” (COLLINS, 2016, p.100).

Ao entrar na Universidade, ela conheceu um outro mundo que lhe possibilitou perceber o quanto sua trajetória de vida tinha feito com que ela esquecesse sua própria história. Inclusive a realização de seu sonho, porque em seu íntimo era comum a ideia de que não seria mais capaz de aprender. Não podemos dizer que Irani nesse momento resgatava suas memórias, pois o conceito de memória é um processo dinâmico com deslocamentos e permanências. Não é um “simples depósito de dados” ou “uma busca do que se fixa, do que não se transforma, do que é estável” (BARATA, 2002, p. 9). A memória vai se constituindo daquilo que lutamos para lembrar e daquilo que lutamos para esquecer. 

Ela não nos conduz a reconstituir ou recuperar o passado, mas sim a reconstruí-lo com base nas questões e nas indagações que formulamos e que fazemos a ele, questões que dizem mais de nós mesmos e de nossa perspectiva presente. (OLIVEIRA, 2011, p.1).

Outro choque relatado por Irani ao ingressar na Faculdade de Educação foi ver entrar em sua sala de aula uma professora negra.  O susto foi grande e a decepção também. Simplesmente para Irani e para muitos outros estudantes, não era comum encontrar uma professora universitária negra. Não percebia que seu pensamento naquele momento reproduzia ideologias coloniais. Inclusive, como ela mesmo relata, esse pensamento de rejeição da imagem da docente era corroborado também por alguns colegas negros e isto a incomodava. 

Para Irani, duas questões já a inquietavam no cotidiano acadêmico. A primeira era o acesso de pessoas negras a universidade e a ocupação de cargos dentro dela. Como se dava aquele processo? A segunda era uma questão identitária, ou seja, como ela e seus/suas colegas de curso não se reconheciam negro(a)s? Talvez naquele momento, faltasse a eles leituras de teóricos como Stuart Hall e seus escritos sobre a possível existência de uma crise de identidade, propondo novos olhares para essa temática. Ou, ainda, de Frantz Fanon e Achille Mbembe cujas reflexões são pautadas sobre a construção dos conceitos de “negro” e “raça”, as relações entre Europa e África através do colonialismo e como a população negra precisa ter uma tomada de consciência para o que Fanon chamou de “ascensão coletiva em humanidade” (MBEMBE, 2018, p. 305). 

Contrário a essa tomada de consciência, vive-se sob o modelo introjetado de uma cultura dominante/colonizadora.  Adichie (2009) adverte sobre “o perigo de uma história única”, questionando o não reconhecimento e o apagamento de histórias outras. A referida autora, indaga sobre a cultura que vivia, os livros que lia e a falta de autores que dialogassem com sua identidade. Tal concepção explica porque Irani não se reconhecia em sua cultura. E neste processo de reconhecimento, a abelha enfurecida voa e atravessa (sendo também atravessada) pelos territórios supramencionados. O curta leva a personagem das fronteiras do Ceará às margens da favela do Parque União, mostrando que estes lugares abrigam inúmeras narrativas e resistências. A câmera que filma seu caminhar entrando no Ciep desta comunidade é a mesma que a acompanha pelos corredores da universidade, de onde sua voz ecoa. Num dado momento, a câmera repousa para gravar suas ‘fotografias narradas’ (MIGLIORIN, 2014, p.49) enfocando a importância de se “perguntar o que está por trás de uma imagem, que tipo de história as pessoas querem contar e como as contam” (idem, p.49). Enquanto isso, Irani documenta as imagens que compõe o entorno de sua biografia nos fazendo intensificar os olhares sobre os territórios vividos por ela bem como redescobrir histórias destes espaços por onde ela transitou e ainda transita.

4. O meu lugar… O meu chão

Croatá é um município brasileiro do estado do Ceará, fundado em 03 de Maio de 19886. Ao redor da primitiva capela de Nossa Senhora das Dores desenvolveu-se o atual centro urbano, que se emancipou do Inhussu. Localiza-se na microrregião da Ibiapaba, Mesorregião do Noroeste Cearense – faz parte das terras da serra dos Cocos, localizado no lado sul da Chapada da Ibiapaba, na divisa com as terras do sertão de Crateús – e era habitado por nações indígenas como os tupis (tabajaras, tupinambás) e tapuias (calabaças, cararijus, kariris, inhamuns, karatis, jaburus, javanbés). A elevação do povoado a categoria de vila ocorreu segundo a lei n° 2.677, de agosto de 1929, e a de município conforme lei n° 8.339, de 14 de dezembro de 1965, antes de ser instalado e restaurado na forma da lei n° 11.430, de 28 de abril de 1988. 

O topônimo Croatá é uma alusão à planta silvestre da família das bromélias, também chamada gravatá, coroatá, caruá, coroá, crauá, croá, caroá, que é abundante na região e que tem diversas utilidades. Das folhas retira-se fibra sedosa que serve para fazer cordas, linhas de pesca, capacho e até alimento. A planta propaga-se pelas sementes ou pela separação de brotos. As folhas da planta fornecem fibra para a confecção de barbantes, linhas de pesca, tecidos, cestos, esteiras, sandálias e chapéus; além de outras peças artesanais e decorativas, que geram renda para famílias da caatinga que tiram sustento da exótica planta. Inclusive, as memórias de infância de Irani ainda estão carregadas pelas amarras feitas nos feixes de lenha e como brincadeiras de pula corda. Mas, como toda planta, ela também pode ser usada para finalidades ornamentais, porque suas flores são lindas e os frutos chamam atenção pelo formato e textura, sendo encontrada em quintais das casas da roça, em feiras e mercados locais.

Todas estas informações são carregadas pelo corpo de Irani. Atravessam sua vivência e sua história biográfica e, agora, cinematográfica. A beleza e a simplicidade das tantas culturas que costuram o tecido social brasileiro e que são esquecidas e minimizadas pela intelectualidade acadêmica dos ditos principais estados do Brasil.  Poderíamos facilmente dizer que o filme de Irani é também um acontecimento heterobiográfico, pois ele nos afeta intensamente.  A heterobiografia acontece

[…] quando as suas experiências de vida se deparam com as experiências de vida de uma outra pessoa que conta a você sobre o que viveu. Quando você se reconhece na história que o outro conta, acontece a heterobiografia: que é a interpretação de si por meio das narrativas experienciais de uma outra pessoa. (PAIVA, 2018, s/p.).

Assistir a Irani, é afetar-se, é se reconhecer em algumas falas, em algumas de suas histórias dentre as tantas que foram editadas e que nos levou a refletir sobre nós mesmos. E provavelmente foi assim que muitos sentiram assistindo a contação da trajetória de Irani e suas passagens pelos mais diversos territórios brasileiros.

5. Considerações finais

Nossas histórias importam! E a história de Irani nos incentiva a pensar em histórias outras de um Brasil plural e diverso, que assim como a história dela, é atravessada por muitas experiências interseccionais cotidianas (COLLINS, 2019; CRENSHAW, 2004; DAVIS, 2016; GONZALEZ, 2020; SANTOS, 2007), com conflitos, negociações e tensões, e dão a sua vida um novo sentido a partir do seu reconhecimento como afro-indígena. Esse texto e a produção audiovisual podem ser utilizadas como referência em propostas pedagógicas para os cursos de Formações de Professores, como uma das formas de aplicabilidade das Leis nº 10.639/03 e 11.645/08, que torna obrigatório na Rede de Ensino a “História e Cultura Afro-Brasileira, Africana e Indígena”. Observe, que todas as mãos que modelaram este trabalho são mãos docentes e Irani, enquanto graduanda de Pedagogia é a próxima educadora do nosso grupo de estudos.

Como já supracitado, conhecer a vida do outro e de outra é também um modo de formação. Consequentemente, toda a História e as histórias dos territórios atravessados por Irani, bem como aqueles que ela atravessou, podem ser carregados para discussão em sala de aula. Estudantes do ensino médio, por exemplo, que tenham características de vida e/ ou familiares semelhantes certamente passariam por um processo de autoquestionamento que influenciaria na sua formação.  

Não podemos ignorar que somos um país racista! Um país que silencia e apaga histórias em detrimento de outras. Poder narrar a história de Irani através das suas descobertas é também uma forma de enfrentamento do racismo.  E, atualmente só é possível falar sobre esse enfrentamento porque os movimentos sociais (negros, indígenas e outros), através de muita resistência e lutas por emancipação, conseguiram tal reconhecimento (GOMES, 2017)

Reconhecer a existência do racismo (e seus apagamentos) entranhado na construção do nosso Estado-Nação, oportuniza-nos visualizar a importância da formulação de ações práticas e teóricas imediatas, como as já citadas e utilizadas pela protagonista deste trabalho. Podemos citar as políticas públicas, tais como: conjuntos de programas, ações e decisões tomadas pelos governos (nacionais, estaduais ou municipais) com a participação direta ou indireta de entes públicos e/ou privados que visem assegurar determinado direito de cidadania para vários grupos da sociedade ou para determinado segmento social, cultural, étnico ou econômico.

Esses direitos assegurados na Constituição Federal Brasileira de 1988 dialogam com a alteração prevista na Lei nº 9.394/96 que estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), e tem como objetivo o resgate das contribuições históricas desses dois grupos étnicos (negros e indígenas) nas áreas social, econômica e política, pertinente as histórias do Brasil. Elas tratam especificamente dos currículos oficiais da maior parte da Educação Básica brasileira – Ensino Fundamental e Ensino Médio – dos estabelecimentos públicos e privados, onde as temáticas “História e Cultura Afro-Brasileira Africana e Indígena” deverão ser ministradas durante todo o ano letivo. Nesse caso, observa-se a preocupação com o sistema educacional do país que não poderá mais aceitar a parcialidade e os preconceitos de outrora. A história de Irani pode e deve ser discutida com o corpo discente das unidades escolares, mostrando-lhes outras narrativas, outras possibilidades, outros modelos, outras vozes e cenários.

Tomados por todas as mudanças políticas e sociais que ocorreram no país nas últimas décadas, trabalhamos e (re)inventamos outros olhares junto com Irani, além de filmarmos pensando outros territórios e alteridades. Foi neste “processo que descobrimos a força que existe em criar um ponto de vista sobre o mundo ou um lugar para ouvir o que nunca antes havíamos parado para escutar” (MIGLIORIN et al, 2014, p.11-12). Entendemos então que narrar-se também é existir para o outro e, além disto, é modificar o outro. Somos afetados e entendemos que Irani, simplesmente, nos afeta e modifica.

6. Referências 

ADICHIE, Chimamanda. O perigo da história única. TED Ideas Worth Streading, 2009. Disponível em: <https://www.ted.com/talks/chimamanda_ngozi_adichie_the_danger_of_a_single_story?language=pt-br>. Acesso em: 02 abr. 2020. 

ANDRADE, Nívea; CALDAS, Alessandra Nunes; ALVES, Nilda. In: OLIVEIRA, Inês Barbosa de; SUSSUKIND, Maria Luiza; PEIXOTO, Leonardo (orgs). Estudos do cotidiano, currículo e formação docente – questões metodológicas, políticas e epistemológicas. Curitiba: CRV, 2019.  

BAKHTIN, Mikhail. Para uma filosofia do ato responsável. 2.ed.São Paulo: Pedro & João Editores, 2010.

BARATA, Denise. Permanências e Deslocamentos das Matrizes Arcaicas Africanas no 

Samba Carioca. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO, 

25., 2002, Salvador. Anais. Salvador: 2002. 

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: Artes de fazer. 3ª ed. Petrópolis: Vozes, 1998. 

COLLINS, Patrícia Hill. Aprendendo com a outsider within: a significação sociológica do pensamento feminista negro. In: Revista Sociedade e Estado, v. 31, n. 1, p. 99-127, jan./abr. 2016.

CRENSHAW, Kimberle Williams. A intersecionalidade na discriminação de raça e gênero. In: VV.AA. Cruzamento: raça e gênero. Brasília: Unifem, 2004. Disponível em: <https://www.acaoeducativa.org.br/fdh/wp-content/uploads/2012/09/Kimberle-Crenshaw.pdf >. Acesso em: 01 abr. 2020.

DAVIS, Ângela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo Editorial. 2016.

FANON. Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008. 

GILROY, Paul. O Atlântico Negro. Modernidade e dupla consciência. Rio de Janeiro: Universidade Candido Mendes – Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001.

GOMES, Nilma Lino. O movimento negro educador: saberes construídos nas lutas por emancipação. Petrópolis/RJ: Vozes, 2017. ISBN 978-85-326-5579-0.

GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano. In: Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Flavia Rios, Márcia Lima (orgs). 1ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.

KILOMBA, Grada. Quem pode falar? Falando do centro, descolonizando o conhecimento. In: Memórias da Plantação – episódios de racismo cotidiano. 1 ed. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019. 

LOURENÇO, Luiz Augusto Ferreira. Cartografias da decolonialidade: o ensino de geografia no bairro Maré. G I R A M U N D O, R i o d e J a n e i r o , v. 4 , n . 8 . p. 7 7 – 8 9 , jul . / dez . 2 0 1 7. Disponível em: < https://www.cp2.g12.br/ojs/index.php/GIRAMUNDO/index>. Acesso em: 09 jan. 2021.

MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. São Paulo: n-1 edições, 2018. 

MIGLIORIN, Cezar et al. Inventar com a diferença: cinema e direitos humanos. Niterói: Editora da UFF, 2014.

NATIVIDADE, Lindinalvo. O Discurso Pedagógico na prática da Capoeira. Teias. v. 12.  n. 26, 171-180, set./dez. 2011. 

OHATA, Milton (org.). O cinema documentário e a escuta sensível da alteridade. In: Eduardo Coutinho. São Paulo: Cosac Naify, 2013.

OLIVEIRA, Antonio José Barbosa de. História, memória e a construção de enunciados: algumas reflexões teóricas. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH. São Paulo: julho, 2011.

PAIVA, Élica. A narrativa de quem ensina a contar histórias. Entrevista. Disponível em https://avoador.com.br/papo-aberto/a-narrativa-de-quem-ensina-a-narrar/ . Acesso em: 14 fev.2021.

PASSOS, Mailsa Carla Pinto. Encontros cotidianos e a pesquisa em Educação: relações raciais, experiência dialógica e processos de identificação. In: Educar em Revista. Curitiba: Editora UFPR, n. 51, jan./mar. 2014, p. 227-242.  

REDES DA MARÉ. Censo de Empreendimentos Econômicos da Maré. Rio de Janeiro: Observatório de Favelas, 2014.

RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte (MG): Letramento, 2017.

SANTOS, Carolina da Costa. O(s) nós das redes de conhecimentos e subjetividades: entre possibilidades de fiar narrativas e literatura brasileira. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL – As redes educativas e as tecnologias. Anais do VI Seminário. Rio de Janeiro: UERJ/Proped. 2011. 

SANTOS, Sônia Beatriz dos. Feminismo negro diaspórico. In: Revista Gênero, Niterói: UFF, n. 1, v. 8, 2º sem. 2007, p. 11-26. Disponível em: http://www.revistagenero.uff.br/index.php/revistagenero/article/view/157 . Acesso em: 30 mar. 2019.

SIMPLESMENTE IRANI. Direção de Aline Brito e Danielle Oliveira. Rio de Janeiro: curta, Festival 8º curta na Uerj, 2019. Disponível em: <https://youtu.be/Q9JQyrdwEDw>. Acesso em: 03 fev. 2020.

SODRÉ, Muniz. O Terreiro e a Cidade: a forma social negro-brasileira. Rio de Janeiro: Imago/ Salvador, Fundação Cultural do Estado da Bahia, 2002.

SOUZA, Elizeu Clementino de; PASSEGGI, Maria da Conceição; VICENTIN, Paula Perin. Entre a vida e a formação: pesquisa (auto)biográfica, docência e profissionalização. Educação em Revista. [online]. 2011, vol.27, n.1, p. 369-386. ISSN 0102-4698.  https://doi.org/10.1590/S0102-46982011000100017.

XAVIER, Maria Aparecida de Sá. Territorialidades e identidades para construção de uma horizontalidade na promoção da saúde: alguns apontamentos críticos. I Simpósio Internacional sobre Território e Promoção da Saúde. Uberlândia, 2012.

7. Notas

  1. O Festival Curta na Uerj é um concurso anual aberto ao público de todo o país que recebe produções em vídeo e animações de até 10 minutos. O Festival é dividido em duas categorias: Teen (para autores de 12 a 17 anos) e Adulto. Com temas diferentes a cada ano, na sua oitava edição teve mais de 550 curtas-metragens inscritos. Disponível em: <http://www.curtanauerj.uerj.br/>. Acesso em: 03 fev. 2020. ↩︎
  2. O Telecurso é uma tecnologia educacional, reconhecida pelo Ministério da Educação (MEC), que oferece escolaridade básica de qualidade. Atua na solução de problemas educacionais que impactam nas avaliações nacionais, como: distorção idade-série, evasão escolar e defasagem na aprendizagem. Disponível em: <http://www.telecurso.org.br/>. Acesso em: 18 mar. 2020. ↩︎
  3. Disponível em: <https://www.data.rio/app/bairros-cariocas>. Acesso em: 09 jan. 2021. ↩︎
  4. Disponível em: <https://racismoambiental.net.br/2017/01/20/um-mergulho-na-historia-o-nascimento-e-formacao-do-complexo-da-mare/>. Acesso em 18 mar. 2020. ↩︎
  5. Disponível em: https://redesdamare.org.br/br/info/12/censo-mare. Acesso em 18 mar. 2020. ↩︎
  6. Disponível em: <https://www.croata.ce.gov.br/>; < http://www.camaracroata.ce.gov.br/>. Acesso em: 03 fev. 2020. ↩︎

Deixe um comentário