Rememorar, relembrar, rever, mesmo que pelos olhos dos outros

1. Introdução

No início de 2021 conclui minha graduação em artes visuais, licenciatura, e no processo de redigir o que veio a ser meu trabalho de conclusão de curso, uma pesquisa sobre as relações possíveis entre cinema e educação para adolescentes, olhando para o meu histórico quando estudante do final do ensino fundamental e médio, bem como minha prática docente nos estágios obrigatórios1 do meu curso – percebi no cinema uma maneira de interagir com os adolescentes, que outras linguagens utilizadas nas aulas de artes não me permitiam.

Por meio do cinema em sala de aula, bem como uso de jogos ópticos e dispositivos relacionados à prática audiovisual, desenvolvidos ao longo da disciplina Cinema e Educação (cursada em 2019/1),  consegui desenvolver uma troca com os alunos de um 9o ano da Escola Moradas da Hípica, na zona rural de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, que antes não havia conseguido. O uso do cinema como uma maneira de provocar afetos e afetamentos nos jovens, me remeteu em muito ao meu período escolar da adolescência.  Ao desenvolver o trabalho de conclusão de curso em Artes Visuais – Licenciatura, buscando uma aproximação sobre o que o cinema brasileiro me ensinava para a educação de jovens na disciplina escolar de Artes, me peguei por diversas vezes refletindo sobre o papel do cinema na minha formação pessoal enquanto adolescente, pois foi a partir do assistir, pensar, discutir e fazer cinema que eu construí um modo de pensar e agir.

2. Histórico

O estar no cinema como estar na escola

Ainda no final da infância, início da adolescência, eu pessoalmente tinha uma grande dificuldade de me relacionar com meus pares. Meus pais sempre falaram que isso acontecia por ser filha de um casal mais velho, era muito mais do meu normal conviver com os adultos do que com outras crianças, e isso fazia com que, para meus colegas, eu fosse provavelmente muito chata de conversar. Quando eu tinha catorze anos descobri o cinema. O cinema já existia há mais de 100 anos se contarmos a partir da exibição de “A chegada do trem à estação de La Ciotat”, “A saída dos operários da fábrica”, entre outros, no Grand Café em Paris. O cinema também já existia na minha vida, havia adentrado a sala escura algumas vezes com meus pais, alguns amigos ou mesmo em atividades da escola. Também era comum em casa que assistíssemos filmes. O que mudou na adolescência foi a descoberta do cinema como um local de aprendizagem.

Aos catorze anos eu saia da escola e me dirigia à Sala PF Gastal, cinema público de Porto Alegre (Rio Grande do Sul), situado então na Usina do Gasômetro, centro cultural vinculado à secretaria de cultura da cidade. Foi por frequentar o cinema que comecei a entender o que era ser adolescente. Esse multi-lugar que se compreende entre ser criança e ser adulto, que percebo agora quase como um limbo entre a graciosidade e potencial do infantil e a responsabilidade da vida adulta.  Foi por meio de filmes como Celine et Julie vont en Bateau (dirigido por Jacques Rivette, 1974) e Sedmikrásky (dirigido por Věra Chytilová, 1966), ambos assistidos por volta de 2012, que consegui visualizar que a infantilidade adolescente bem como esse “querer ser/querer parecer” adulto, também poderia ser valorizado e compreendido como parte de um processo maior.

Para  Elí Henn Fabris, “Quando dizemos que o cinema cria um mundo ficcional, precisamos entendê-lo como uma forma de a realidade apresentar-se” (2008, p 118.). Percebo então como foi importante que se criasse uma conexão de intimidade entre a minha formação individual e o pensar-discutir cinema, porque assim aprendi a ver filmes e interpretá-los de maneira que pudessem somar à minha composição educacional. 

Naquele momento, [quando assistimos um filme] ocorre uma simbiose entre o corpo do espectador e a história vivida na tela; o tempo e o espaço tornam-se os mesmos representados na película. Quando assistimos a um filme, a experiência renova-se – é como se fosse a primeira vez, somos levados a um tempo inaugural, sempre no presente. Podemos entender essa experiência como uma viagem em que somos convidados a ir a diferentes lugares, a conhecer povos, línguas, costumes que se aproximam ou se distanciam das nossas experiências culturais. (FABRIS, 2008, p. 118 -119).  

Em decorrência dessas fugas do ambiente escolar para a sala de cinema que me interessei e descobri uma vontade por, além de assistir e debater, fazer filmes. Escrevo então, também do lugar de alguém que, nos últimos anos, trabalhou como atriz e realizadora audiovisual. O fazer cinema se tornou meu modo de trabalhar, e, ao passo que estudei para tornar-me professora, se tornou também um modo de perceber as potencialidades da educação formal.

3. Metodologia

 O cinema como maneira de pensar o ser professor

Quando passo a entender o assisitir-pensar-discutir-fazer cinema como algo tão importante para a minha formação enquanto sujeito, isso passa a ser tornar um marco fundante também do meu processo de formação enquanto professora, e daquilo que acredito como importante para uma aula.  A partir de aproximações de trabalhos no universo que compreende a Cultura Visual e Educação, se entende que o cinema cria imaginários coletivos que dão estrutura não só para ideias, mas também para que estabeleçamos relações simbólicas dentro das nossas próprias relações sociais e maneiras de compreender e ver o mundo (VALLE, 2015). 

Deste modo, percebo o cinema como um facilitador de afetos, de maneiras de ser afetado e atravessado pelas histórias dos outros, e de afetar e atravessar estruturas com nossas próprias histórias. Seria, portanto, o cinema um criador de “cenários reais e possíveis, não apenas um reflexo do que já acontece do lado  de fora da tela – tentamos ser como nos vemos e nos vemos como pensamos ser” (MELGAREJO, 2021, p. 18). Dessa forma entendo que uma “educação audiovisual” pode (ou deve) perpassar por todas as disciplinas e dinâmicas escolares, proporcionando outras experiências de aprendizagem, onde o cinema atue, também, como um facilitador de afetos ao passo que sensibiliza o olhar e a atenção. 

Me interessa agora, enquanto educadora, seguir observando atentamente para buscar entender o quanto os filmes impactaram e exerceram um poder de transformação no meu processo de subjetivação, e qual o potencial do uso dos artefatos e dispositivos audiovisuais, para se pensar uma educação integral. Minha investigação ativa enquanto professora passa pela constante tentativa de entendimento do quanto a experiência cinematográfica transforma a criança, o jovem e o adulto, às suas maneiras, e mais,  “o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece.” (LARROSA, 2002, p. 21)

4. Reflexão

Rememorar, relembrar, rever, mesmo que pelos olhos dos outros

Nesse caminhar, se o cinema transforma minha forma de ser e ver-mundo, é preciso reafirmar que é a partir dos filmes que vejo que me torno quem sou. Os filmes, então, exercem um poder transformador de rememorar, relembrar e me fazer rever a mim mesmo, mesmo que pelos olhos e recortes dos outros. A pesquisa que venho desenvolvendo enquanto pesquisadora e educadora, busca equilibrar as peças de um quebra-cabeças que compõem o meu olhar para cinema e para educação. 

Sou realizadora audiovisual, ao mesmo passo que sou formada em licenciatura, que atuo em filmes e penso sobre o potencial pedagógico dessas imagens. As lentes pelas quais enxergo o mundo e vejo os filmes, alcançam mais do que uma foto, múltiplas perspectivas que acontecem concomitantemente, no mesmo tempo e espaço em que se pode ser professora, atriz, estudante, tentando ver sempre aos filmes como pela primeira vez. Como se, por um filtro, tudo acontecesse de maneira prismática, o que nos permitisse enxergar, ao mesmo tempo, de maneiras diferentes o que acontece (MELGAREJO, 2021). Dentro dessa formulação de pensamento,  acho importante dizer que “antes de apresentar conteúdos, as possibilidades discursivas e sensíveis, o modo de ser-mundo do cinema, provoca, intensifica e potencializa tudo o que atravessa a escola” (MIGLIORIN, 2014, p. 46).

Auto retrato em fotografia digital.

Fonte: Arquivo Pessoal (2021).

Quando trazemos esse ser-mundo do cinema para dentro do ambiente escolar, mesmo que enquanto artefato material, como um filme, se valoriza não apenas a produção da obra em si, mas existe aí um potencial, quando é tangível a possibilidade de: 

reconhecer uma troca humana (entre colegas e professores) de maneiras de ver o mundo e da cultura de cada um (…). Quando se leva um filme para dentro da sala de aula com o intuito de fazer filmes, de propor aos alunos que, na aula de Artes, eles se tornem sujeitos ativos do fazer cinematográfico, indicamos outra maneira de se comunicar através do mundo das imagens. (MELGAREJO, 2021, p. 47)

5. Considerações finais

O que se mantém até aqui dessa reflexão sobre o apoio do pensar, discutir e fazer cinema para o processo de subjetivação adolescente, partilhada  ao longo das páginas anteriores, é, principalmente, o entendimento de que o cinema propõe em sua forma de ser-mundo, uma maneira de afetar ao espectador, atravessando-o. No ambiente escolar e na prática educativa com adolescentes, o cinema acaba por tornar tangente as maneiras de ver e ser visto a partir dos filmes. Para Lutiere Della Valle, desde muito cedo “diante da tela (de cinema), construímos nossas referências, formas de compreender e representar o universo simbólico à nossa volta” (2015, p. 213).

Entendo assim, que me encantava enquanto adolescente ver filmes com personagens femininos e jovens em universos de fantasia, pois assim me via pelos olhos dos outros, ao ver um filme que me tocava. É esse decurso de se ver e se sentir refletido a partir de como quer ser visto, que me interessa ao trabalhar com cinema para adolescentes. 

Acredito no potencial de um processo de aprendizado que parte de uma pedagogia das imagens que torne o aprendizado escolar mais “poroso”, transmutável, mesmo que isso não venha a partir de conhecimentos já consagrados dentro da academia ou do ambiente educacional para crianças e jovens, mas processos esses que educam à sua maneira. Boaventura de Sousa Santos, no texto Para uma Sociologia das ausências e uma sociologia das emergências, publicado pela Revista Crítica de Ciências Sociais em 2002, diz:

Em primeiro lugar, a experiência social em todo o mundo é muito mais ampla e variada do que a tradição científica ou filosófica ocidental conhece e considera importante. Em segundo lugar, esta riqueza social está a ser desperdiçada. É deste desperdício que se nutrem as ideias que proclamam que não há alternativa, que a história chegou ao fim e outras semelhantes. (SANTOS, 2002, p. 238).

 Mesmo que a passagem acima não seja propriamente sobre cinema, ou sobre suas implicações e potenciais para a educação de adolescentes, acredito que some ao que quero dizer ao concluir essa reflexão partilhada. O multi-lugar  do cinema (e não “não-lugar”, uma vez que o cinema se apresenta de maneiras diferentes ao longo da nossa formação) é esse “labirinto onde por muitas vezes nos perdemos ao tentar classificá-lo, ora como arte, ora como comunicação” (MELGAREJO, 2021, p. 46), de uma competência e potencial pedagógico inegável.

6. Referências bibliográficas

FABRIS, Eli H. Cinema e educação: um caminho metodológico. IN:___Dossiê Cinema e Educação. Revista Educação e Realidade, v.33, n.1, p. 117 – 134, jan/jun 2008. 

LARROSA, Jorge. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira de Educação. 2002, n.19, p. 20 – 28.

MELGAREJO, Maria Galant. Adolescências Brasileiras: lições de cinema e educação para o ensino de artes visuais. Trabalho de Conclusão de Curso, Graduação em Artes Visuais – Licenciatura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2021 (67 páginas).

MIGLIORIN, Cezar. Deixem essas crianças em paz: o mafuá e o cinema na escola. In:___BARBOSA, Maria Carmen Silveira; SANTOS, Maria Angélica dos (org.). Escritos de Alfabetização Audiovisual. Porto Alegre: Libretos, 2014. p. 156 – 162.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma Sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. Revista Crítica de Ciências Sociais, 63, p.237-280. 2002. Disponível em: http://www.boaventuradesousasantos.pt/media/pdfs/Sociologia_das_ausencias_RCCS63.PDF . Acesso em: 26 mar. 2021.

VALLE, Lutiere D. Quem aprendi a ser a partir dos filmes que vi? Explorando o potencial narrativo/ evocativo/ pedagógico do cinema no contexto educativo.  IN:___Educação da Cultura Visual: aprender…  pesquisar… ensinar… Raimundo Martins e Irene Tourinho (organizadores). Santa Maria: Ed. da UFSM, 2015, p. 221 – 237.

7. Notas

  1. No curso de Artes Visuais, licenciatura, da UFRGS, são três os estágios curriculares obrigatórios, sendo o Estágio I de observação, o Estágio II de prática docente para ensino fundamental e o Estágio III de prática docente para o ensino médio, cada um equivale à um semestre cursado. ↩︎

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