Mídia e inclusão
1. A Experiência com Audiovisual e Teatro
No ano de 2015, no Centro Integrado de Atenção à Pessoa com Deficiência (CIAD), a Oficina de Teatro, oferecida pelo Instituto Municipal Helena Antipoff, da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro, ampliou sua atividade para outras áreas das Artes Cênicas. O trabalho foi construído com um grupo de quatro alunos com diferentes deficiências e idades, todos com mais de 18 anos.
Segundo Courtney (2003), “Atuar é o método pelo qual convivemos com o nosso meio, encontrando adequação através do jogo”. Tal afirmação serviu de base para o início do trabalho, sendo realizados, como é usual nas aulas de Teatro, diversos exercícios de improvisação de momentos comuns da vida cotidiana, para conseguirmos definir, com o grupo, que jogo era esse, e entendermos seu lugar.
Courtney também afirma que “… o processo dramático é um dos mais vitais para os seres humanos. Sem ele seríamos meramente uma massa de reflexos motores, com poucas qualidades humanas”. A partir desse pensamento e do que o grupo já sabia sobre o jogo, foram realizadas novas experiências, misturando o corpo e os sentidos às situações improvisadas, emoções e reações. Direcionando o processo para a identificação das emoções em cada um dos alunos e a dramaticidade existente nas situações que as envolvem. Partindo para a separação objetiva do mundo real e do ficcional, da pessoa e da personagem.
Nesse ponto, foi observado que as referências trazidas pelos alunos, de mundo ficcional e de personagens, eram sempre do audiovisual, precisamente de novelas televisivas. O que nos levou a ampliar as linguagens artísticas estudadas e experimentadas no processo. Foram incluídos nas aulas o contato com o cinema e a fotonovela, encaminhando-nos para a experiência com animação.
Incluímos, pois, em nosso trabalho, a animação realizada a partir de fotos como experiência dramática. Os alunos viram animações, pesquisamos sobre a nova linguagem que eles estavam conhecendo e o grupo teve a iniciativa de construir duas histórias. Uma a ser encenada ao vivo para o público e a outra, uma animação, para ser exibida durante a encenação, fazendo parte da mesma.
A história a ser animada foi criada por um dos alunos e trazida para o grupo, que colaborou com o desfecho. Foi realizado o estudo das personagens, as cenas foram construídas e ensaiadas para, após, serem fotografadas, no jardim do próprio CIAD, e animadas pelo grupo. O que incluiu a busca da trilha sonora utilizada.
Com a animação pronta, o grupo construiu outra história, na qual ela já teria uma função importante, para apresentar. Dessa vez, como a trama foi totalmente criada em sala, o estudo e a construção das personagens pelos alunos/atores foi concomitante à construção da história.
Novamente foram realizados ensaios das cenas e todos resolveram juntos o cenário e os figurinos do espetáculo a ser apresentado, com base na existência de um todo maior e com características específicas. Ou seja, chegaram à conclusão de que existia uma unidade, um conceito a ser respeitado.
Nessa experiência, portanto, partindo, para a construção de um trabalho teatral, da compreensão e conceituação de ficção e realidade, bem como de pessoa e personagem, o grupo da Oficina de Teatro foi além. Eles ampliaram suas referências culturais experimentando o contato com outras produções audiovisuais às quais não estavam habituados, se apropriaram de uma técnica de animação (stop motion), compreenderam as noções de unidade e conceito em um espetáculo, bem como criaram e realizaram um espetáculo com duas histórias, utilizando linguagens e mídias diversas, e, o mais importante, tudo coletivamente, o que é próprio do teatro e imprescindível na construção de toda sociedade.
2. Proposta Pedagógica e Metodológica em Artes Visuais
O objetivo deste trabalho foi investigar processos de criação no campo do ensino das Artes Visuais através de propostas pedagógicas e metodológicas desenvolvidas na oficina de Artes Visuais. Os interlocutores desta pesquisa foram seis jovens com diferentes deficiências matriculados na rede pública de ensino do município do Rio de Janeiro. Os processos de criação aqui tratados revelaram que os variados repertórios utilizados por este grupo para criar animações, utilizando a técnica do Stop Motion, estão fortemente atrelados à produção veiculada pelas mídias na contemporaneidade. Dentre as produções de maior recorrência verificadas no interior das narrativas dos jovens estão: a produção da TV, do cinema e das histórias em quadrinhos. As investigações sobre os processos de criação deste grupo se deram tanto a partir dos seus processos individuais quanto dos coletivos.
2.1. Metodologia:
O trabalho realizado com alunos com deficiência foi pensado sob o contexto que visa garantir o acesso à educação para todos, independentemente de suas características ou necessidades e, dessa forma, convida os sujeitos a lidarem e a relativizarem ideias preconcebidas e construídas socialmente. O desafio de iniciar um processo de pesquisa-intervenção com esse grupo de jovens com deficiência baseia-se no pensamento de Pereira (2012), cuja dinâmica de trabalho está comprometida em relacionar pensamento e ação, e objetivou minimizar as relações hierárquicas estabelecidas social e culturalmente entre adultos e jovens e, principalmente, no contexto de trabalho com estudantes que apresentam deficiência. Trouxe para as ações que planejei a reflexão acerca da questão da desigualdade estrutural entre pesquisador e pesquisado apontada por Castro (2008). Durante o processo de trabalho, busquei estabelecer uma relação de porosidade entre os lugares do pesquisador e do pesquisado. Estes momentos ficaram demarcados durante o trabalho na oficina, na medida em que a produção plástica dos jovens necessitava entrar em contato com questões técnicas que os meios escolhidos exigiam, principalmente em relação ao uso da máquina fotográfica e do computador. Ao longo da pesquisa, realizei uma série de mediações com os jovens sobre as produções realizadas por eles, como a intervenção que propus em relação à construção de personagens para a animação intitulada Os Defensores.
2.2. Resultados:
O que a pesquisa trouxe para a minha vida e a dos meus interlocutores? O encontro entre professor e os jovens foi motivado por interesses mútuos. Não penso o meu espaço de trabalho como um espaço asséptico, inocente: existe ali um jogo de interesses. Foi preciso observar como foi a negociação dos nossos mútuos interesses quando estávamos juntos. Nos encontros, compreendi que o grupo queria suporte, diálogo, intervenção e não condução para os seus processos de criação. Como afirmou Morais (2001, p.171), “vítima constante da guerrilha artística, o espectador vê-se obrigado a aguçar e ativar seus sentidos (o olho, o ouvido, o tato, o olfato, agora também mobilizados pelos artistas plásticos) e, sobretudo, necessita tomar iniciativa”. Os estudantes, assim como os espectadores e criadores contemporâneos, souberam tomar iniciativa para executarem seus processos de criação quando apontaram seus repertórios midiáticos, trouxeram seus materiais para os encontros e se manifestaram sobre os usos dos aparatos tecnológicos. Estavam mostrando seus interesses para defender aquilo que move sua criação. Ao professor interessou dar o suporte porque quis ver o processo. O pano de fundo dessa dinâmica foi o tempo: da chegada, da espera e da partida para observar como engendram-se os processos de criação.
Com o passar do tempo, o grupo se deixou envolver por uma série de encontros e cada indivíduo, envolvido com o coletivo, soube também contribuir com o que lhe é mais valioso, com seus processos de criação individuais, com aquilo que lhes importa. Quando afirmei que o ato de ser afetado pelo outro foi aprendido por mim através das ações que vivenciei, apontei para uma maneira de ser e de querer ser afetado pelo outro.
3. A Proposta Pedagógica e Metodológica em Dança
O projeto “Dança e Identidade Cultural: Laços Intermináveis” foi implantado no ano letivo de 2012/2013, em parceria com a Oficina de Artes Visuais e uma fotógrafa profissional. Ao todo participaram do projeto 23 pessoas, sendo 20 alunos com diferentes tipos de deficiência (Def. Visual, Auditivo, Def. Intelectual e Desenvolvimental, Def, Físico e Transtorno Global do Desenvolvimento – Transtorno do Espectro de Autismo), duas professoras (Dança e Artes Visuais) e uma fotógrafa. Todos compreendidos na faixa etária de 18 a 50 anos. A maioria é do gênero feminino, com 13 participantes. E 10 do gênero masculino.
O projeto emerge de um conjunto de experiências consignadas através dos processos de criação em dança, assim como, o repertório trazido pelos alunos brasileiros (vindos de diferentes regiões do Brasil) e estrangeiros (um Angolano e um Cabo Verdiano) aos aspectos que remetem à questão de identidade cultural (HALL, 2005) em nível nacional / internacional.
Assim, consideramos que as pessoas que residem no Brasil, sejam brasileiros ou estrangeiros, naturalmente passam a formar laços de identidade com algumas das diversas manifestações culturais existentes em cada região do Brasil e pelo movimento regional migratório entre as grandes capitais, pela procura de novas oportunidades de trabalho, passam a conviver e desenvolver laços de identidade cultural.
A proposta metodológica de ensino adotada foi Dança em Contexto de Marques (2010). Para a autora, a dança é percebida enquanto possibilidades e caminhos para ensinar e aprender as múltiplas leituras das relações dança/mundo”. Deste modo, consideramos fundamental compreender as trajetórias e percursos traçados pelos alunos matriculados na oficina de dança a partir de suas redes de relações afetivas, culturais e sociais, inclusive dos reflexos do CIAD na vida pessoal e social dos seus frequentadores.
A partir deste viés, tivemos a intenção de gerar espaços para múltiplas possibilidades artísticas no processo de criação e recriação do produto artístico [os processos de criação e recriação nunca se esgotaram neste projeto, pois sempre se renovaram], seja ele materializado através de recursos audiovisuais, digital, materiais impressos e laboratórios de movimentos.
A proposta pedagógica foi fundamentada nos quatros pilares da Educação apresentados por Delors (2005), aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a viver juntos e aprender a ser.
O processo é mediado pelos professores e se inicia com a escolha dos ritmos musicais, seguidos do desenvolvimento de laboratórios de movimentos, captação de imagens pela fotógrafa (no final de cada laboratório), transferência das fotos para o programa com o objetivo de clarear a foto, impressão das fotos, recriação da foto (pintura), recriação do movimento com base na imagem recriada e captação de novas imagens. Este processo é continuamente repetido ao longo do ano. As imagens do processo são confeccionadas em vídeo e apresentadas no final de cada mês ao grupo através de um projetor de imagens. Na segunda passagem do vídeo os alunos dançavam atravessando as imagens projetadas e recriando novos movimentos.
As temáticas e algumas questões geradoras que acompanharam o processo de criação foram:
- Autoimagem. Como são as partes do meu corpo? Como eu posso desenhar o meu corpo dançando? Como eu posso mexer cada parte do meu corpo? Qual a imagem que tenho do meu corpo e como percebo meus colegas?
- Identidade Cultural pelos Ritmos Nacionais e Internacionais. Quais os ritmos musicais que mais me identifico? E quais os diferentes movimentos que executo? Será que o ritmo que eu mais gosto de dançar tem a ver com o meu jeito de ser?
- Recriação da Imagem em Movimento. Como posso transformar as imagens em movimentos que me “tocam” (Processo de sensibilização)? Quais as sensações percebidas ao recriar a fotografia captada pela pintura? Como transformo a imagem recriada em movimento? Qual é o percurso realizado? Meu vocabulário de movimento se ampliou ao longo do processo?
- Identidade Familiar. Quem são meus familiares? O que eu mais gosto na minha família? Qual o lazer preferido da minha familia? Quais os ritmos musicais mais tocados em casa?
- Identidade Família CIAD. O que é o CIAD para mim? Conheço bem o CIAD? Qual é o local do CIAD que mais gosto? Qual a família de amigos que formei no CIAD? O que tem de mais precioso na relação com meus amigos do CIAD?
3.1. Resultados alcançados:
Como produto final foi elaborada uma coreografia com projeções paralelas das fases do processo individual e coletivo, das recriações realizadas pelos alunos nas imagens (fotografia digital) e pelo movimento dançado recriado. Com base nas vivências, o grupo concluiu que as imagens impressas e projetadas transformaram-se num prolongamento do movimento e uma forma de conexão para novos movimentos. Percebeu-se que este processo era infinito e mutável, visto que nunca se repetia a mesma imagem e nem movimento, serviu como fonte espoletadora da criatividade, da renovação com os aspectos culturais dos países em tela, formação de vínculos afetivos e sociais entre os pares e melhor percepção da importância do espaço CIAD na vida desses jovens adultos com deficiência. Assim sendo, este processo de criação em Dança direcionado a resgatar a identidade cultural contribuiu para a percepção de que os laços culturais são marcantes e intermináveis, como corrobora Hall (2005), a identidade cultural é algo que está em transformação, dependendo constantemente do atrelamento das experiências culturais e sociais que os indivíduos passam a vivenciar.
4. Referências
CASTRO, Lucia Rabello de. Conhecer, transformar (-se) e aprender: pesquisando com crianças e jovens. In: Castro, Lucia Rabello de e BESSET, Vera Lopes (orgs). Pesquisa-intervenção na infância e na juventude. Rio de Janeiro: NAU, 2008.
COURTNEY, Richard. Jogo, Teatro e Pensamento: As Bases Intelectuais do Teatro na Educação. São Paulo: Perspectiva, 2003.
EISENSTEIN, Sergei. 1990a. O sentido do filme. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva e Guaracira Lopes Louro. 11ª ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.
KOUDELA, Ingrid Dormien. Jogos teatrais. São Paulo: Perspectiva, 1992.
MORAIS, Frederico. Contra a Arte Afluente: O Corpo é o Motor da Obra. In: BASBAUM, Ricardo (org.) – Arte contemporânea brasileira: texturas, dicções, ficções, estratégias. Rio de Janeiro: Rios ambiciosos. 2001.
PEREIRA, Rita. Encontrar, compartilhar, transformar: reflexões sobre a pesquisa intervenção com crianças. In: PEREIRA. Rita M. Ribes & MACEDO, Nélia Mara. (Orgs.) Infância em Pesquisa. NAU, 2012.