Um relato de experiência
1. Introdução
Este artigo traz um relato da experiência vivida na I Oficina de Cinema e Educação do Cinececult – Laboratório de Apreciação e Análise do Audiovisual, Projeto de Pesquisa e Extensão do Centro de Cultura, Linguagens e Tecnologias Aplicadas (CECULT) da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). A oficina, voltada para professores e professoras da cidade de Santo Amaro da Purificação e região do Recôncavo da Bahia, foi realizada de forma remota no mês de setembro de 2021 e ministrada por uma professora e cinco estudantes dos cursos de Cinema e Audiovisual, Licenciatura Interdisciplinar em Artes e Bacharelado Interdisciplinar em Cultura, Linguagens e Tecnologias da UFRB.
Antes, um breve histórico do Cinececult: o projeto nasceu em 2018, inicialmente como um ambiente de encontros livres para ver e comentar filmes, uma espécie de cineclube funcionando de forma improvisada numa pequena sala de reuniões, visto que no campus de Santo Amaro não temos (ainda) um auditório ou sala de projeções. Em pouco tempo, percebendo o alcance e excelente recepção das pessoas estudantes ao projeto, que passaram a lotar as sessões semanais, começamos a pensar que a comunidade externa, e sobretudo as crianças e jovens das escolas públicas da região, também poderiam se beneficiar daquele espaço. Em consonância com as diretrizes extensionistas de ampliar e solidificar as relações dialógicas com a comunidade e o território ao nosso entorno, realizamos ao longo do ano de 2019 algumas sessões experimentais de exibição de filmes para crianças de escolas da cidade. Foi aí que percebemos que havia uma lacuna ainda maior de acesso e de repertório deste público ao cinema.
Santo Amaro da Purificação fica localizada a 80 quilômetros da capital baiana e possui atualmente uma população de aproximadamente 60 mil habitantes. O município é conhecido por sua rica história cultural, sendo berço de nomes ilustres da música e cultura brasileira como Dona Canô, Caetano Veloso, Maria Bethânia, Dona Edith do Prato, Jorge Portugal, e também sítio de importantes manifestações da cultura e religiosidade de matrizes africanas, tais como o Nego Fugido e o Bembé do Mercado, festejos que remontam à resistência e ancestralidade do povo negro da região do Recôncavo Baiano.
Apesar de sua importância cultural, histórica e econômica, no que diz respeito ao cinema, a cidade não possui projetos atuais que desenvolvam o acesso da população a esta arte. Como acontece em muitas cidades do interior do Brasil, não há salas comerciais de cinema no município – a mais próxima fica a 50 quilômetros de distância, na cidade de Feira de Santana, localizada num shopping center com ingressos caros e programação limitada. Muito esporadicamente são realizadas sessões especiais em espaços culturais da cidade como o Teatro Dona Canô e o Museu Recolhimento dos Humildes. Há, também, festivais e sessões especiais que acontecem na cidade vizinha de Cachoeira, onde funciona o curso de Cinema e Audiovisual da UFRB.
Deste modo, e ainda que de forma improvisada e bastante despretensiosa, percebemos que aquelas sessões do Cinececult que havíamos começado a organizar passaram a configurar a experiência mais próxima de “ir ao cinema” de muitas daquelas crianças com as quais tivemos contato. Diante deste cenário, compreendemos na prática o que diz Alain Bergala sobre o lugar da escola, dos espaços formais e não formais de aprendizagem como locais propícios para o encontro com o cinema:
As crianças e os jovens de hoje têm cada vez menos chances de encontrar, em sua vida social normal, outros filmes que sejam não os do mainstream do consumo imediato. A escola (e os dispositivos que a ela se ligam) é o último lugar onde esse encontro ainda pode acontecer. Portanto, mais do que nunca, sua missão é facilitar o acesso – de modo simples e permanente – a uma coleção de obras que dêem uma ideia elevada, não pedagógica, daquilo que o cinema – todo o cinema – pôde produzir de melhor (BERGALA, 2008, p.206).
2. Pandemia e uma mudança inesperada de rumo
Iniciamos 2020 cheios de planos para expandir o Projeto para além dos espaços da Universidade, integrando as escolas da região, estudantes e professores interessados em abordar o cinema na sala de aula. O grupo de extensão desdobrou-se em pesquisa, com o registro do projeto “Cinececult nas escolas – Cinema, educação, infância e cidadania”, que tem como objetivo estudar possibilidades metodológicas da educação para fomentar seus próprios métodos de ensino e análise do cinema nas comunidades que integram o território do Recôncavo Baiano. Estudantes dos cursos de graduação da UFRB foram agregados ao grupo, seja como bolsistas do programa de Iniciação Científica (Pibic), do Programa de Incentivo à Extensão Universitária (Pibex) ou mesmo como voluntários.
No entanto, como agora sabemos, em março de 2020 tudo iria mudar: as atividades presenciais de ensino, pesquisa e extensão foram suspensas em função da pandemia mundial da Covid-19. A situação de isolamento social e temor em relação à saúde pública, que se alastra por mais dois anos e de certa forma perdura até os dias atuais, obrigou a todos que trabalham no campo da educação a se reinventarem e criarem novas práticas de ensino, avaliação, afiliação, afeto.
Com nosso projeto não foi diferente. Diante da impossibilidade de realizar sessões presenciais de exibição de filmes, nos vimos forçados a mudar os planos e adiar nosso tão aguardado encontro com as crianças e as escolas. Durante o ano de 2021 nos dedicamos a, por um lado (o da pesquisa) aprofundar nos aspectos teóricos e metodológicos no campo do cinema e da educação e, por outro lado (o da extensão), experimentar na prática algumas ferramentas digitais e as possibilidades de realização de ações remotas. No semestre remoto de 2021.1, entre os meses de fevereiro e maio de 2021, foi ofertado um componente curricular optativo no curso de Licenciatura Interdisciplinar em Artes que serviu como protótipo experimental das propostas pedagógicas do projeto. Através deste componente curricular, vimos que não somente era possível (e até mesmo prazeroso!) realizar atividades práticas de cinema de forma remota, como também era possível compartilhar experiências subjetivas através das imagens produzidas em situação de isolamento social, reforçando, assim, redes de afeto através de experiências do sensível.
Motivados pela proveitosa experiência de ensino, no segundo semestre de 2021 nos voltamos ao planejamento de uma oficina de extensão a ser oferecida para professores e professoras da rede básica de ensino da região do Recôncavo Baiano. Durante o mês de agosto, realizamos reuniões de planejamento envolvendo todos os discentes do grupo de extensão e pesquisa para distribuição das atividades que cada um iria realizar na oficina. Neste momento é importante ressaltar que a oficina teve um duplo objetivo de formação, pois ao passo em que visava capacitar professores para trabalhar com cinema e educação, ela era em si mesma um processo de formação para os estudantes de graduação envolvidos no projeto. De acordo com os preceitos da extensão universitária, que compreende a extensão como um processo formativo que dá protagonismo aos estudantes, todos tiveram papéis fundamentais na elaboração da oficina: dos cards de divulgação do evento até o planejamento e condução das aulas remotas (para alguns, inclusive, esta seria a primeira experiência do lado de lá da sala de aula, ou seja, como docentes).
3. A oficina: professores vendo e fazendo cinema!
A I Oficina de Cinema e Educação do Cinececult foi realizada através de encontros síncronos pelo Google Meet durante quatro semanas, entre setembro e outubro de 2021. Foram quatro aulas, todas às sextas-feiras, das 17:00 às 19:00 horas. O objetivo principal da oficina foi estimular a imaginação e a emancipação autoral dos participantes, em sua grande maioria professores, buscando contribuir também para uma metodologia ativa de aplicação da linguagem audiovisual nas escolas.
Tivemos, ao todo, 32 solicitações de inscrição, das quais foram selecionados 20 participantes, entre professores e professoras de ensino fundamental, ensino médio, Educação de Jovens e Adultos e ensino superior de cidades do Recôncavo onde há campi da UFRB, tais como Santo Amaro da Purificação, Cachoeira, Feira de Santana e Amargosa, e também de cidades de outras regiões da Bahia como Alagoinhas, Valença e Simões Filho, além de participantes da capital Salvador (Imagem 1).
Imagem 1: mapa de localização dos participantes da Oficina
Fonte: elaboração própria a partir de imagem do Google Maps.
No primeiro dia de oficina, 10/09, propusemos uma atividade de apresentação inspirada pelos relatos de Alain Bergala em A Hipótese Cinema, onde o autor conta que sua relação afetiva com o cinema se instaurou de forma marcante ainda na infância. Diz o autor:
O cinema entrou na minha vida, em meio a uma infância triste e angustiada, como algo que eu soube muito cedo que seria minha tábua de salvação (…). Quis a sorte que na cidadezinha da minha infância houvesse três salas de cinema (…) e que minha situação familiar permitisse que, nas tardes de domingo, eu pudesse ver livremente o filme de minha escolha, filme do qual eu nunca falava rigorosamente nada a ninguém. (BERGALA, 2008, p.14)
Elaboramos uma apresentação afetiva que teve a memória do cinema como ponto de partida para começarmos as atividades. Nosso objetivo, ao invés de fazer aquela tradicional rodada de apresentação onde cada um diz seu nome e cidade de origem, era fazer com que cada participante ativasse suas memórias (ou a ausência delas) da forma como o cinema se fez presente nas suas infâncias. A ferramenta Jamboard1 foi utilizada (Imagem 2) para organizar as imagens que os participantes selecionavam buscando responder à provocação que lhes foi lançada: qual a sua primeira lembrança do cinema?
Imagem 2: atividade cinema e memória
Fonte: captura de tela do Jamboard elaborado coletivamente pelos participantes da oficina.
Enquanto os participantes faziam as suas contribuições à plataforma, apareciam imagens à princípio desconexas, mas que logo se encaixaram num interessante mosaico atravessado por diferentes afetos: a lembrança do único cinema de rua da pequena cidade do interior, que hoje já não existe mais; a sensação marcante de entrar na sala escura pela primeira vez, lembrança do cheiro, do estranhamento, até mesmo do sentimento de medo; memória dos filmes dos Trapalhões para alguns e de animações da Disney e superproduções hollywoodianas para os mais jovens. Após a realização da atividade, ficou marcada nos participantes a proposição de Bergala, segundo a qual a infância é um tempo privilegiado de encontro com o cinema. Os filmes que vemos e as experiências que temos no cinema neste período da vida nos marcam de uma forma singular e, talvez, irrepetível. Para acessar essa ligação, ao nos aproximarmos da relação entre cinema e escola, precisamos começar pela infância: tanto a nossa infância quanto a infância do cinema.
Após esta primeira atividade, propusemos uma atividade prática, também inspirada nos trabalhos de Alain Bergala, conhecida como Minuto Lumière. Apresentamos aos participantes uma breve retomada do início do cinema falando sobre a invenção do cinematógrafo, os irmãos Lumière, como eram esses primeiros filmes e que impacto eles tiveram na construção do olhar das pessoas no início do século XX. Mostramos então alguns dos primeiros filmes e encerramos esta primeira aula propondo aos inscritos que eles gravassem um Minuto Lumière, sem detalhar neste primeiro momento a parte pedagógica, mas focando apenas nas regras da atividade. Para a realização do minuto Lumière os alunos foram orientados a filmarem um plano do que quisessem com câmera parada, sem som e sem interferência na imagem, tendo a duração de um minuto.
No segundo dia de oficina, dia 17/09, fizemos a exibição do Minuto de cada participante (Imagem 3). Utilizando o material produzido, discutimos a relação do olhar com o cinema. Incentivamos cada um a falar sobre como se deu a escolha do que foi filmado, como se sentiram durante a experiência da filmagem e como foi ver e apresentar as imagens num coletivo. Conseguimos perceber na execução deste exercício como cada um lidava com a atividade, fosse através do processo de escolha do que filmar, fosse através da reação deles em relação ao trabalho dos seus colegas.
Somente depois de “viver a experiência” que trouxemos de forma estruturada o exercício Minuto Lumière e sua proposta pedagógica, acompanhado da pergunta: o que se aprende de fato com esta atividade? O minuto Lumière nos capacita, antes de mais nada, a experimentar uma nova forma de olhar para o mundo e para o processo de produção das imagens do mundo. É como uma espécie de “batismo do olhar”, onde existem diversas possibilidades de criação – todas válidas – entre a referência aos filmes Lumière e a intencionalidade de criar um plano original (olhar para o mundo como um/a artista). A cada minuto apreciado, há também ali uma experiência estética, um espaço-tempo diferente, a plasticidade da imagem, por mais simples que seja.
Na escolha de cada um está um gesto de autoria, de criação, de posicionamento ético e estético. Na imagem escolhida está refletido esse posicionamento, que se volta para o autor no momento da observação. Na exibição da imagem está a sensação de produção e intervenção que a arte faz no mundo, a partir do mundo, sentimento também de valorização de si e do seu olhar. Como metodologia de criação, o exercício consegue combinar o prescritivo, “a regra”, com o imponderável da vida e da criação – e desse modo, será sempre uma novidade.
Imagem 3: apreciação coletiva dos Minutos Lumière
Fonte: captura de tela realizada por um dos estudantes.
No terceiro dia de oficina, dia 24/09, tivemos um momento para favorecer a apreciação a partir de leituras que fizemos da obra do psicólogo russo Lev Semenovitch Vygotsky (2014). Segundo Vygotsky, o que chamamos de criação não é um estalo, como costumamos pensar, mas sim apenas a culminância de um processo muito mais longo, que começa na experiência e no acúmulo de materiais e referências. Quanto mais experiência tivermos, na forma de oportunidades de acesso a referências, mais potencial criativo nós também teremos, pois a imaginação funciona, para o psicólogo, partindo das dissociações e associações feitas a partir do que foi visto ou vivido. É como se nossa experiência de vida se convertesse em “matéria prima” para se trabalhar o potencial criativo. Dessa maneira, compreendemos que o ato de apreciação fílmica é imprescindível como parte necessária do processo de criação na medida em que oferece ao espectador maior entendimento sobre a linguagem e maior bagagem referencial.
Com isso em mente, exibimos um pequeno trecho do curta-metragem “O Baile”, de 2019, com direção de Cíntia Domit Bittar, para passar aos participantes uma nova forma de se relacionar cinema e escola para além de se ler um filme como se lê um texto (Imagem 4). Este processo foi inspirado pelo método utilizado nas ações do CINEAD, Laboratório de Educação, Cinema e Audiovisual da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, projeto de pesquisa, ensino e extensão coordenado pela professora Adriana Mabel Fresquet. O método do Cinead consiste em “ver, rever e transver filmes ou fragmentos de filmes” (FRESQUET et al, 2021, p.651), ou seja, apresentar o mesmo trecho ou fragmento pelo menos três vezes. Após a primeira exibição, questionamos de forma livre: “O que acabamos de ver?”. A grande maioria descreveu a ação dramática. Repetimos então a exibição do mesmo trecho e perguntamos, desta vez, o que repararam em termos de unidade de tempo e de espaço. “O que viram agora que não viram da primeira vez? Qual o tempo da ação? Qual o espaço da ação? Como o filme nos “conta” o que aconteceu?”
Imagem 4: atividade de apreciação
Fonte: captura de tela realizada por um dos estudantes.
As respostas foram as mais variadas possíveis e foi curioso perceber que, em meio a descrição de suas observações, alguns participantes trilharam caminhos diferentes quanto a interpretação de tom, sentido ou mesmo semblante de alguns personagens, chegando até mesmo ao ponto de criar em cima do que foi exibido. Repetimos então uma terceira vez a exibição do mesmo trecho e perguntamos, por fim: “Quantos cortes e quantos planos tem essa sequência?”. Pegamos, em seguida, um plano específico e, fazendo de conta que participamos do momento de criação, perguntamos: “Quais foram as decisões estilísticas tomadas pela diretora? Que outras escolhas poderíamos tomar para narrar a mesma história se nós fôssemos os diretores do filme? Qual seria o resultado dessas outras escolhas?”.
A interação dos participantes neste momento foi uma das mais curiosas de todo o processo. Muitas opiniões diferentes e divergentes, além de muita criatividade por parte dos mesmos para sugerir novos rumos e sentidos para o mesmo trecho, fizeram com que esta etapa fosse ricamente produtiva. Os participantes puderam lidar atentamente com os elementos mais técnicos e específicos da linguagem cinematográfica, tais como mudança de luz, paleta de cores, altura da câmera, duração do plano, tipo de plano, movimento da câmera etc., só que de uma forma espontânea, guiada a partir da experiência de recepção.
No encerramento da aula, propusemos que cada um dos inscritos filmasse um plano que serviria de base para nosso último exercício prático. Para guiar este processo, concebemos um dispositivo que foi nomeado como “casa/cores”. No Jamboard fizemos três colunas: na primeira, colocamos uma escala básica de planos (aberto/médio/detalhe); na segunda, colocamos cômodos de uma casa (quarto/banheiro/cozinha/sala); e na terceira, colocamos um elemento de composição que é a cor (azul/verde/vermelho/amarelo). Cada pessoa ficou responsável por escolher uma combinação desses elementos, de modo a formar a sua instrução (ex. fazer um plano detalhe no banheiro, usando a cor azul). Fora isso, a composição seria livre: a câmera deveria estar parada, mas foi estimulado que tivesse movimento dentro dos planos (alguém andando, abrindo portas, olhando no espelho, comendo na cozinha, etc). Os planos deveriam ter aproximadamente 10 segundos de duração.
Por fim, no quarto e último dia de oficina, dia 01/10, apresentamos a proposta de um exercício de montagem conjunta, abrindo os planos filmados por cada um dos inscritos e fazendo a montagem na hora, de forma colaborativa. Para a execução desta atividade, nós utilizamos o programa de edição gratuito Shotcut, cuja tela foi compartilhada no Google Meet para que todos pudessem ver e participar ativamente do processo de montagem. Todos participaram deste processo criativo que usou os planos feitos pelos próprios participantes para criar alguns filmes com mais ou menos um minuto de duração. Os participantes puderam perceber que, mudando a duração e ordenação dos planos, conseguiríamos ter uma impressão diferente do sentido que cada imagem possui. Chamamos esta atividade de Minuto Kuleshov pois, assim como Lev Kuleshov percebeu a partir de seu experimento, percebemos que a edição é capaz de sugerir diferentes sentimentos e ideias a partir de fragmentos, transformando imagens em conceitos, sentimentos, histórias que se concretizam no espectador no momento da apreciação. Da mesma forma como fizemos com o Minuto Lumière, somente após a vivência retomamos os preceitos pedagógicos de forma mais estruturada para explicar como eles poderiam usar esse exercício em sala de aula, relembrando a importância do olhar, a importância da apreciação como gesto de criação, o aprendizado intuitivo sobre a montagem, o respeito à alteridade, à individualidade e à imaginação infantis a partir de Bergala e Vigotsky.
4. Considerações finais
Iniciamos a oficina sem saber como seria a resposta dos participantes. Não saberíamos sequer se uma oficina de cinema realizada de forma remota, durante uma pandemia, teria sentido na vida dos professores e professoras. No entanto, encerramos o último dia de aula satisfeitos com toda a experiência e recebemos dos participantes um retorno bastante positivo. Dos 20 participantes inscritos, 13 concluíram a oficina, o que, para um curso remoto realizado durante um cenário pandêmico, pode ser considerado plenamente satisfatório. Após o fim da oficina, nós enviamos algumas perguntas num questionário para que os participantes pudessem responder e nos ajudar a ter algum tipo de feedback documentado, os quais comentaremos aqui à guisa de conclusão deste relato.
A maioria dos participantes (87,5%) relatou que se interessou pela atividade pela oportunidade de conhecer métodos práticos de aplicação do cinema na escola. Muito se fala sobre os usos inadequados do cinema como “tapa-buraco” nas atividades escolares, ou sobre a falta de preparo e letramento adequado dos docentes para introduzir atividades escolares utilizando o audiovisual. Mas para além disso, é preciso nos perguntarmos que acesso real estes docentes têm à atividades de formação, de repertório e de capacitação. O que percebemos na nossa oficina foi que muitos professores têm interesse, até mesmo desejo de trabalhar com cinema em suas práticas, mas simplesmente não sabem por onde começar, ou sentem-se fortemente intimidados por livros e cursos demasiadamente técnicos, acadêmicos e elitistas.
Desta forma, nossa oficina teve como objetivo principal, desde o início, fortalecer o aprendizado a partir da experiência prática, sem enfatizar os aspectos teóricos que, não obstante, estruturaram todas as atividades. Para isso, consideramos fundamental a ação de colocar os docentes no lugar de alunos, vivendo na prática as experiências que eles, depois, poderão propor como docentes. Acreditamos que, uma vez que eles tenham vivido na pele a experiência de, por exemplo, filmar um minuto Lumière, essa atividade poderá ser proposta a partir de um outro lugar. Uma das participantes disse: “A construção de atividades de forma interativa foi excelente”, enquanto outra ressaltou como pontos positivos a linguagem dinâmica e a leveza das aulas, “sem pesar no academicismo”. Percebemos o quanto foi surpreendente para muitos deles, que esperavam encontrar um curso “chato” e “teórico” vindo da Universidade, se depararem com um ambiente onde eles iriam realizar atividades totalmente práticas e interativas. Foi também surpreendente para muitos o quanto se divertiram e se dedicaram ao processo com imenso prazer. Um dos participantes diz ter se sentido um verdadeiro realizador, um cineasta, ao dedicar-se intensamente à concepção de seu vídeo (para o qual chegou a testar diferentes materiais, cenários, figurinos e ângulos de câmera). Por fim, durante a conversa de encerramento da oficina, este mesmo participante faz espontaneamente uma conexão direta com a primeira atividade proposta – a lembrança de infância ligada ao cinema –, dizendo que aquela era a atividade que ele gostaria de ter feito na infância e nunca fez. E, ao fazê-la agora, enquanto professor, se permitiu voltar ao local de experimentação da infância. Especialmente durante o período da pandemia, em que os professores se viram sobrecarregados, preocupados, até mesmo adoecidos diante das alterações em suas práticas profissionais, foram poucos os momentos de diversão e de leveza. Ouvir este relato nos causou uma enorme satisfação.
Por fim, reconhecemos que esta foi apenas uma primeira aproximação para os docentes participantes, e que a demanda por formação pede um maior aprofundamento e continuidade. Embora a maioria dos participantes tenha relatado que iria implementar alguma das atividades propostas em sala de aula, alguns ressaltaram que ainda se sentem inseguros em dar continuidade às atividades por conta própria. “Passei a compreender um pouco de como se dá o processo, mas preciso de mais encontros para me sentir mais segura”, disse uma das participantes.
De nossa parte, a experiência da Oficina serviu para comprovar, por um lado, a eficácia das atividades práticas no engajamento subjetivo e na transformação geradas pela pedagogia do gesto de criação e, por outro lado, a urgência de se olhar para os professores e professoras como agentes dessa transformação, ampliando cada vez mais o acesso à atividades de formação, de formação de repertório, de cineclubes etc. É somente a partir da sensibilização dos professores que o cinema chegará às escolas, e é somente a partir da sensibilização da potência criativa e lúdica nos professores que essa experiência atingirá seu pleno potencial junto às crianças e jovens.
5. Referências bibliográficas
BERGALA, Alain. A hipótese-cinema: pequeno tratado de transmissão do cinema dentro e fora da escola. Rio de Janeiro: Booklink, 2008.
FRESQUET, A.M. et al. As ações do programa de extensão universitária Cinead em tempos de isolamento social. Expressa extensão, v. 26, n. 1, p. 645-658, JAN-ABR, 2021.
O BAILE (Summer Ball). Curta-metragem, 18min, Brasil, 2019. Direção: Cíntia Domit Bittar. Produção: Novelo Filmes. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=PO_iwPpkL0Q >. Acesso em: 13 ago 2021. VYGOTSKY, L.S. Imaginação e criatividade na infância. São Paulo: Martins Fontes, 2014.
6. Notas
- Jamboard é um aplicativo do Google que assemelha-se a um quadro branco onde podem ser feitas intervenções escritas, desenhos e colagens de imagens. Tal recurso tornou-se muito popular durante a Pandemia de Covid-19 por permitir que pessoas situadas em diversas localidades pudessem fazer intervenções de forma colaborativa no mesmo arquivo ao mesmo tempo. ↩︎