1. Introdução
O Cinema refletirá sempre os pensamentos, discussões e experimentações de uma época, mesmo que de maneira indireta, seja através do olhar desta época sobre outra, ou em novas maneiras de se contar diferentes histórias. Pensar em cinema enquanto marca cultural de uma civilização é reforçar a necessidade do olhar incansável sobre ele e o estudo sobre seus movimentos.
Além de toda sua questão estrutural, roteiro, narrativa, climax, personagens; há também uma forte subjetividade; “enigmas” dentro do roteiro, estética, assim como a parte técnica, tão importante quantos as outras, que demanda grandes orçamentos, tecnologia e equipamentos.
O fazer e pensar cinema, unindo técnico com artístico, apesar de estar caminhando para uma maior acessibilidade depois da globalização nos anos 2000, ainda é extremamente restrito. A globalização contribuiu com o barateamento dos equipamentos de gravação e edição audiovisual.
É importante pensar também no cinema como representação da memória: as vivências singulares de cada indivíduo colocadas de alguma forma sobre a tela, entrando, então, na questão subjetiva e individual/poética. Esse trabalho irá discutir sobre como essas memórias e subjetividades se refletem em uma formação de curso universitário de cinema e audiovisual, fazendo um estudo de caso sobre o curso da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), que conta com dois cursos de cinema distintos, sendo eles Cinema e Audiovisual e Cinema de Animação. A universidade conta também com um sistema de ingresso com cotas raciais e de vulnerabilidade social, possibilitando assim diferentes perfis de alunos.
A partir do momento em que um curso se propõe a ensinar o fazer e pensar cinema, dispondo de equipamentos e tecnologias para realização, como esses fatores contribuem para o amadurecimento estético nos curtas dos alunos?
Os sujeitos de pesquisa escolhidos foram dois diretores ex-alunos da UFPel que, em seus trabalhos de conclusão de curso, realizaram trabalhos gravados no espaço onde viveram antes da faculdade e utilizaram seus familiares como atores. Tanto o curta de ficção “Sesmaria” quanto o documentário “Deus”, ambos apresentam uma singularidade na maneira em que dialogam diretamente com a vivência dos seus respectivos diretores.
O curta “Deus” (2017), dirigido por Vinicius Silva, ex-aluno da UFPel (2013-2016), acompanha a rotina de Roseli, o filme visa expor o dia a dia de mulheres negras da periferia da cidade de São Paulo que batalham para garantir seu sustento e, especialmente, o de seus filhos. O diretor usou o nome “Deus” inspirado na música “Mãe” do cantor de rap Emicida, na música o trecho “Vi Deus, ele era uma mulher preta” foi o que guiou Vinícius para a ideia central do curta. Para ele, quando se é uma criança, sua mãe é “Deus” para você, pois tudo o que ela faz e fala é tido como absoluta verdade. No curta vemos a influência da mãe sobre o filho, e a percepção do filho sobre a mãe.
O curta “Sesmaria” (2015), dirigido por Gabriela Richter Lamas, também ex-aluna da UFPel (2011-2014), conta a história de Wilhelm e Hilda, dois fumicultores que não deixaram de colher nenhuma safra durante 50 anos. O curta discute a perda de sentido da vida quando Wilhelm, um trabalhador do campo, se vê sem “utilidade” ao adoecer.
A vontade de documentar a história do curso de Cinema parte de uma inquietação pessoal de um aluno assustado com o cenário político brasileiro em que nos encontramos em 2019, onde a relevância da educação e das universidades é colocada “à prova” e cria-se um senso comum perigoso de que estas não são essenciais para o desenvolvimento de um país. Eu, autor desta pesquisa, entrei no curso de cinema em 2015 através de cotas1, sem qualquer conhecimento sobre cinema, tanto teórico como prático.
Cinco anos depois, considero-me apto para desenvolver projetos com segurança e maturidade, e essa transformação foi devido às práticas que tive acesso durante minha graduação, que me ofereceram tanto um amadurecimento do olhar sobre a imagem, possibilidade de prática e contato com um repertório diverso.
O cinema nos faz refletir sobre a imortalidade do registro, por exemplo, todas as pessoas envolvidas em um filme que foi gravado há 100 anos possivelmente já sejam finadas, mas o filme e os registros seguem vivos (e continuarão seguindo).
A partir deste pensamento acredito ser importante “olhar para trás” e pensar sobre a estrutura do lugar que tanto teve a me oferecer, e quanto mais “fundo” vou, mais percebo que o curso de Cinema da Universidade Federal de Pelotas é resultado de uma série de adaptações e iniciativas que não temeram a mudança, proponho-me então a registrá-las e de alguma forma tentar “imortalizar” essas vivências.
O cinema, por si só, foi e é uma arte elitista, pois para viabilizar sua realização é necessária uma grande quantidade de equipamentos e dominação técnica dos mesmos, deixando os custos bastante elevados e inalcançáveis para qualquer um que não pertencesse a uma elite econômica, afinal, não era necessário apenas a parte artística, mas sim uma série de acesso a equipamentos, estudos e técnicas. A própria existência do cinema esteve em conjunto com novas tecnologias, precisando sempre de tecnologia de ponta, as mais avançadas de sua época, e também grande estudo sobre várias áreas do conhecimento (sistemas de edição, som, arte, fotografia, teatro), sendo assim, o cinema desde seus primeiros “suspiros” é contado sempre pelo mesmo “ponto de vista”: o ponto de vista de uma elite financeira, tecnológica e cultural.
A possibilidade da existência de um curso de cinema em uma universidade pública que traz oportunidade para que os alunos possam estudar e ter acesso a equipamentos e técnicas custeados pelo Estado se mostra como uma possível “contracorrente” a esse movimento unilateral histórico.
É preciso analisar com cuidado as condições e circunstâncias que culminaram para criação de um curso de cinema na cidade de Pelotas sob uma universidade pública, sendo este o único no estado do Rio Grande do Sul. Diversos fatores contribuíram para a criação do curso de Cinema e Animação em 2007, que posteriormente foi desmembrado em dois cursos distintos: Cinema e Audiovisual e Cinema de Animação. Dentre estes fatores, a existência da universidade de artes, a herança cultural da cidade de Pelotas e iniciativas favoráveis do governo Brasileiro.
É necessário analisar os movimentos e impactos de uma universidade pública para que, assim, sua relevância jamais seja contestada. O poder transformatório que pode propor ao espectro social os impactos de suas “trocas” e, no caso de uma universidade de artes, o recurso técnico para que haja a possibilidade dos alunos se desenvolverem artisticamente.
As informações contidas no artigo foram recolhidas através de entrevistas com professores que participaram da criação do curso de cinema na universidade e os alunos/diretores dos curtas mencionados.
2. A faculdade de cinema
O curso de Cinema e Audiovisual foi fundado na Universidade Federal de Pelotas (UFPel) em 2007, situada na cidade de Pelotas, no Rio Grande do Sul. A iniciativa partiu do reitor da universidade na época: César Borges, que lançou a proposta de incorporar um curso de cinema dentro do Instituto de Artes e Design (IAD). Borges se entusiasmou em criar um curso de cinema após receber menção honrosa pelo filme de animação “Jogo do Osso”, dirigido por André Macedo, no festival Granimado.
Figura 1. O Jogo do Osso (2006) de André Macedo.
Após a proposta do reitor ser aceita, formou-se então uma comissão para poder instalar o curso, formada pelas professoras Maria de Lourdes, Nadja Sena, Luciana Leitão e Liangela Xavier, que posteriormente viria a ser a primeira professora do curso de Cinema da UFPel. Através dessas comissões, as professoras tiveram acesso a currículos de diversas universidades federais e iniciaram pesquisas pelas grades curriculares de todos os cursos de cinema do Brasil na época, ao lado do Prof. Dr. João Carlos Massarolo (UFSCAR).
Pensando por um viés voltado para as artes, foi montada a primeira grade curricular do curso de “Cinema e Animação”, ofertado em 2006, para ter sua primeira turma no primeiro semestre de 2007. Dessa primeira turma do curso (2007/1) de 33 alunos ingressos, apenas 3 se formaram no tempo regular, isso se deu por conta de uma série de fatores levantados e “corrigidos” posteriormente.
A situação nos primeiros anos do curso era extremamente precária, não dispunha de nenhum equipamento e funcionava apenas com três professores substitutos e um professor efetivo. O perfil dos alunos era composto, majoritariamente, de cinéfilos que trabalhavam nos turnos da manhã ou tarde (o curso de cinema era noturno), ou pessoas que estavam fazendo duas graduações ao mesmo tempo, o que era permitido na época. É importante considerar também que na primeira versão do curso, o mesmo não distinguia as técnicas de Live-Action2 e animação. Os alunos tinham uma formação geral que misturava ambas as técnicas de produção cinematográfica, mesmo sendo estas bastante distintas.
Em 2010, percebendo deficiências na estratégia de ensino do curso, foi optado unanimemente entre os professores e coordenadores por separar o curso de “Cinema e Animação” em dois cursos distintos, na intenção de especificar melhor as formações e tentar contemplar os dois perfis de alunos, que eram discrepantemente diferentes. Foi divido então em Cinema e Audiovisual e Cinema de Animação, ambos cursos sendo uma graduação de quatro anos na área do cinema, com diferenças nas especificidades de cada área. O curso de Cinema e Audiovisual explorando técnicas de fotografia, captação e edição de som, operação, manutenção e preservação de equipamentos, direção de atores, direção de arte, roteiro, entre outros. O curso de Cinema de Animação explorando técnicas de ilustração, desenho digital, 2D, 3D e stopmotion.
Logo nos primeiros anos de divisão dos cursos, o contraste era bastante positivo, perfis mais específicos entravam para a área que se identificavam mais. Mas esta foi apenas uma das várias reformulações que o curso sofreu.
O primeiro currículo do curso, escrito em 2006, previa avaliações “eletivas”, inspirado no modelo das universidades privadas. Nas eletivas, após dois anos em contato com todas as áreas do audiovisual, os alunos deveriam escolher duas secções para se especializarem. Porém, gerir eletivas no espaço físico limitado que o curso dispunha nos primeiros anos, com o número de professores insuficiente se mostrou inviável. As eletivas, então, foram retiradas e substituídas por trabalhos individuais e, posteriormente, em 2014 pela “horizontalidade”, que planejava traçar um “desenho horizontal entre as disciplinas” do primeiro ao sétimo semestre. Este desenho é constituído de um vínculo para permitir que um conjunto específico de componentes curriculares possa dialogar para o desenvolvimento de um conjunto único de produtos audiovisuais.
Esta horizontalidade é uma orientação pedagógica com tem três propósitos:
(1) Fazer com que os estudantes compreendam o vínculo prático entre diferentes competências e saberes técnicos, estéticos e narrativos das disciplinas;
(2) Racionalizar o tempo de trabalho extraclasse e a utilização de recursos técnicos (equipamentos, laboratórios, horas de trabalho de professores e técnicos);
(3) Qualificar a produção audiovisual realizada no curso.
Além da horizontalidade, a grade curricular do curso foi pensada também para uma verticalidade entre componentes curriculares de semestres sequenciais, ou seja, roteiros escritos e pré-produzidos no semestre par serão gravados e finalizados no semestre ímpar, deixando o período de um ano para algumas produções com o objetivo de qualificar os produtos.
A proposta da horizontalidade e verticalidade, então, baseia-se em planejar a pré-produção do projeto final em um semestre ímpar e realiza-lo no semestre par. Os alunos entregam apenas um produto final e são avaliados por todas as disciplinas do semestre de formas distintas. A nova modalidade teve bastante êxito e, como consequência, houve uma melhora significativa nos produtos finais dos alunos, como os premiados “Nua Por Dentro do Couro” (Lucas Sá, 2015), “Só Sei Que Foi Assim” (Gi Paixão, 2019), “Rosana Pereira” (Mateus Armas e Robson Zago, 2016), “Asas de um anjo soltas pelo chão” (Pedro Tavares, 2019), “Deus” (Vinícius Silva, 2016), “Sesmaria” (Gabriela Lamas, 2014), entre outros.
Em relação aos equipamentos, nos primeiros passos do curso, em 2006, a estrutura era extremamente precária. Os alunos podiam utilizar um laboratório com computadores MAC, que era dividido com curso de design, não possuíam nenhum equipamento de captação de áudio e as câmeras eram Sony Handycam3, câmeras praticamente “caseiras”. Apenas em 2010 o curso passou a contar com equipamentos de áudio. Em 2012, através do programa PROEQUIP, o curso conseguiu recurso para aquisição de equipamentos audiovisuais. Mais tarde em 2015, o curso de cinema juntamente com os cursos de design e música passaram a ter um prédio institucional exclusivo, o que aprimorou bastante a infraestrutura dos cursos.
Também em 2015, o curso de cinema conseguiu inaugurar o Cine UFPel: uma sala de cinema com exibições semanais de filmes brasileiros e mostra de curtas universitários abertos à comunidade. Dessa forma os alunos poderiam experienciar terem seus filmes exibidos em uma tela de cinema e acompanhar a reação do público.
Para os professores entrevistados, o grande “divisor de águas” foi o SISU, que mudou completamente o perfil dos alunos. A partir do Sisu, o curso começou a ser integrado por estudantes de todos os cantos do Brasil que vinham até Pelotas especificamente para estudar cinema, ou seja, estudantes que almejavam trabalhar na área e construir uma carreira, além de possuírem disponibilidade para se dedicar aos estudos e práticas.
Podemos concluir, então, que o SISU contribuiu para ampliar o perfil de aluno, e a horizontalidade possibilitou uma pedagogia que valorizasse o pensar e o fazer do aluno, contribuindo também para uma melhoria do produto final.
As temáticas dos filmes também se modificaram bastante ao longo dos anos, com as primeiras turmas fazendo filmes mais voltados para a técnica sem grande profundidade política nas narrativas para, posteriormente, filmes mais densos e políticos (tais como os que serão analisados neste artigo).
É importante também salientar que para ambos os cursos de Cinema e Audiovisual e Cinema de Animação foram contratados professores de diferentes áreas do conhecimento, indo desde jornalistas, publicitários, designers de som, críticos de cinema, motion-designers, roteiristas, produtores, realizadores audiovisuais, animadores, cartunistas, entre outros. Trazendo assim uma riqueza na pluralidade de ensino, em contato com profissionais de áreas distintas.
3. Os alunos/diretores de “Sesmaria” e “Deus”
Os casos a seguir foram escolhidos, para além de serem curtas premiados da UFPel, também porque ambos ambientam o local onde os autores viviam antes da universidade, traçam uma linha híbrida entre ficção e documentário e recorrem a atores sociais para compor a narrativa. A partir de agora, o artigo irá analisar o contexto em que os diretores dos curtas “Sesmaria” de Gabriela Richter Lamas, e “Deus” de Vinícius Silva. Através de uma análise estética guiada fundamentalmente pelos pensamentos de Glaura Cardoso e Jacques Ranciére.
Tanto Gabriela quanto Vinícius ingressaram na universidade através do SISU. Os dois não residiam na cidade de Pelotas e se deslocaram apenas para estudar. Ambos os alunos voltaram para as suas respectivas cidades para filmar o trabalho prático de conclusão de curso, onde além de explorar o lugar em que viveram de uma forma cinematográfica, também utilizaram seus parentes para atuarem nos curtas.

Sesmaria

Deus
Iniciando por Gabriela Richter Lamas, uma aluna que ingressou no curso de Cinema da UFPel em 2011, residia na cidade de São Lourenço do Sul antes de vir para Pelotas (as cidades ficam a 70 km de distância uma da outra4).
A decisão de cursar cinema veio do interesse de Gabriela em diversas áreas da arte (Literatura, trabalhos manuais, pintura e desenho, cenografia para grupos de teatro, música) e acreditar que o Cinema englobaria todas elas de alguma forma.
Através de entrevistas, Gabriela conta que no início do curso estava desmotivada com a escolha, afinal não se identificava com o perfil de seus colegas que, em sua maioria, eram cinéfilos e conhecedores de diretores que ela não tinha conhecimento. A partir do contato com diferentes referências (ela cita Tarantino, Almodóvar, Cronenberg, Woody Allen e Polanski) e do incentivo de professores, a aluna começou a se entender enquanto realizadora.
No último ano do curso, incentivada pela professora de roteiro, Cíntia Langie, Gabriela decidiu desenvolver um argumento de roteiro que tinha feito em semestres passados, sobre uma situação que ouvia bastante falar em sua cidade envolvendo suicídio de idosos.
Surge então o curta-metragem de ficção Sesmaria, nosso objeto de pesquisa. Gravado na colônia pomerana da cidade de São Lourenço do Sul, no Rio Grande do Sul, aborda aspectos tradicionais da colonização pomerana e da fumicultura – cultura da plantação de fumo e sustento da maior parte das famílias da colônia – e da relação desta prática com o alto índice de suicídios na região.
O filme se passa na casa de Lorena e Edegar, os atores principais do filme: Lorena e Edegar Richter interpretam os personagens Hilda e Wilhelm, e também são avós da diretora Gabriela.

Edegar (Wilhelm)

Lorena (Hilda)
A escolha dos próprios avós como personagens foi feita por uma questão de produção e estética, a possibilidade de pôr o curta em prática de uma forma realizável e o cuidado em fazer algo que fosse genuíno em relação aos seus atores.
A preparação de atores de “Sesmaria” foi estudada por meio das anotações feitas durante a gravação e das conversas posteriores com o preparador de atores Rodrigo Rocha, que desempenhou papel importante no curta-metragem por seu contato íntimo com os atores sociais e suas mise-en-scènes (LAMAS, pg 5).
Para a diretora, primeiro foi necessário ter a confiança de querer fazer algo que vinha da vida pessoal, e depois de abrir os olhos para mostrar esse ambiente que era dela. Dessa forma, a riqueza de detalhes e situações foi se mostrando, sentiu-se como se estivesse olhando de fora, estudando, percebendo informações que conviveu a vida toda, pra saber como encaixar tudo em um curta.
Vinícius Silva, diretor de “Deus” vem de São Paulo (1386 km de Pelotas), ingressou em 2013 na universidade de cinema entusiasmado com a vontade de unir arte e política, vindo com uma bagagem forte relacionada ao rap. Durante o curso, trabalhou majoritariamente com som, mesmo estudando todas as outras áreas, mas ao final do curso decidiu dirigir um curta e, desde então, trabalha com roteiro, direção, consultoria de direção para longas-metragens e montagem.
Diferente de Gabriela, Vinícius é o primeiro de sua família a entrar em uma universidade e a trabalhar com arte, e conta – através de entrevistas – que apenas conseguiu autoestima para ser diretor depois de ouvir elogios de seus curtas e incentivos para seguir fazendo.
O curta “Deus”, dirigido por Vinícius, já coleciona mais de 70 prêmios. O filme é um trabalho de conclusão do curso de Cinema feito pelos alunos Vinícius Silva, Huli Balász e Débora Mitie. Finalizado em 2016, tem como personagens principais Roseli Izabel da Silva, 41 anos, e seu filho Breno da Silva de Araújo, 7 anos. Ambos os personagens têm relações familiares com o diretor.
Figura 4. Roseli e seu filho Breno.
O curta narra uma semana do cotidiano de Roseli, mulher negra, mãe de Breno, moradora da Cohab I, no bairro Arthur Alvim em São Paulo/SP. Ela é separada do pai de Breno e cria o filho sozinha. Em sua forma final, o filme tem como eixo temático a influência que esta mãe tem sobre a vida do filho, mas também como o filho influencia a mãe; atravessando reflexões sociais, raciais e de gênero. Existem como base para a história a própria rotina e os papéis sociais desempenhados pelos sujeitos em suas vidas cotidianas. No entanto, este cotidiano, em sua forma fílmica final, é dotado de uma estrutura narrativa que dialoga com um universo ficcional, especialmente no que se refere à identificação de personagens e uma estrutura dramática que se estabelece e evolui entre as cenas (SILVA pg. 8).
Nos dois curtas é presente o caráter observativo da câmera, a utilização de atores sociais para a tentativa de obtenção de uma mise-en-scène orgânica que, apesar da invasão não-natural da câmera, ainda assim recebe o estímulo de ações e assuntos dos atores sociais dentro de seus próprios universos (NICHOLS, 2009, pg 54).
A memória e vivência nos documentários, que podem ser considerados “biográficos”, embora isso se dê de forma mais complexa em alguns casos, já que assumidamente trabalham no plano da encenação de múltiplas biografias buscadas no empréstimo das vivências dos próprios atores e atrizes, observa a transformação de todos os agentes que compõem a realização (CARDOSO, pg2).
Em “Sesmaria”, mesmo que inconscientemente, somos apresentados ao universo do qual a diretora veio, entramos em contato com um “plano de fundo” do Rio Grande do Sul rural, com rituais da zona rural local, como o café da tarde com toda a família e muita comida e a galinha morta para ser posteriormente comida por quem a matou.
Temos também o contraste entre o trabalho manual e as máquinas o tempo todo no filme, trazendo a questão da substituição do homem pela máquina, já mostrado no primeiro plano do filme (figura 7). No curta, também vemos presente o fogão a lenha, que reforça novamente a ideia do antigo/manual que, iminentemente, se tornará obsoleto, traçando assim uma horizontal com o drama vivenciado pelos personagens que se sentem sem utilidade no trabalho, tudo de forma bastante sutil, como uma “ambiência” aos acontecimentos da trama.
Em “Deus”, também somos apresentados ao contexto de Vinícius que, da mesma forma que o protagonista, foi criado por mulheres solteiras: mãe, tia e avó. Vemos o deslocamento de Roseli pela cidade, o modo como ela quase nunca come à mesa, sempre se alimenta no ponto de ônibus na ida ao trabalho e a forma como ela encontra momentos de descontração em meio à rotina árdua.
Figura 5. Roseli é sempre mostrada pequena em relação à cidade.
A ambientação do curta “Deus” é sufocante, a trama imerge na vida de Roseli, acompanhamos seus dilemas, problemas financeiros, a rotina de deslocamento e os momentos em que orienta seu filho. Em contraponto a esse ambiente caótico da cidade de São Paulo, os momentos de maior descontração e “respiro” do curta são na casa de Roseli, em planos bastante fechados, que normalmente remeteriam a ideia de sufoco/claustrofobia, mas no curta é atribuído uma outra forma de ver esses enquadramentos, como se a personagem encontrasse conforto apenas dentro de sua própria casa.
Ao mesmo tempo em que se produz um filme lastreado na realidade, tem-se a consciência de que esta não é a realidade. O que ocorre no filme é uma ficcionalização deste real, que ocorre por meio do imaginário ou da ficção que é decorrente da relação com o outro, expressa na câmera (GONÇALVES, 2008).
Em “Deus”, por exemplo, foi decisão do diretor não mostrar Roseli se alimentando em casa e enquadramentos que a fizessem parecer pequena em relação à cidade. Essas escolhas narrativas que compõem a ficcionalização do real para que, assim, uma mensagem ou um “enigma” possa estar presente na narrativa estabelecendo-se de uma forma sutil.
Escolhas narrativas como as que foram tomadas nos curtas são resultado de prática e um extenso contato com repertórios diversos (principalmente não comerciais).
Apesar de nenhum dos dois curtas expor qualquer traço de autobiografia, de forma que não sabemos que aqueles eram os ambientes de vivência dos diretores dos curtas, isso está em tela, não implícito, mas como um “enigma” que se esconde na narrativa. Para Rancière, esse é o paradoxo do espectador, onde o espetáculo deve mostrar “um enigma cujo sentido os espectadores tivessem que buscar, como cientistas quando observam os fenômenos e procuram suas causas” (RANCIÈRE, 2012, p.11).
Um curso universitário tão colaborativo como o de cinema necessita de um olhar incansável sobre seus processos. A capacidade de adaptação dos professores e a vontade de aprimorar o curso de Cinema na Universidade Federal de Pelotas foram fundamentais para um método que possibilite e incentive os alunos a se imporem enquanto realizadores fílmicos, fornecendo um diálogo vertical entre os dois lados, para que haja uma vontade de realizar sem medo. A possibilidade de haver diferentes vivências sob o mesmo espaço, “bebendo das mesmas fontes”, apesar de estimulados da mesma maneira, irá gerar materiais completamente diversos, e é nesta pluralidade de vivências que se enriquecem as narrativas dos alunos da UFPel.
O amadurecimento da estética se dá em alguns pontos fundamentais que a formação do curso de cinema proporciona. Primeiramente repertório, entender que os alunos já chegam com alguma bagagem, mesmo que não muito diversa. Todos já carregam preferências pessoais, e exercício, a partir daí, é fazê-los pensar tecnicamente sobre suas referências e deixá-los expostos a um material diverso para que, apenas assim, possam analisar não apenas a narrativa de uma obra, mas também outros elementos: arte, fotografia, mise-en-scène. Autoestima, compreender que as vivências e bagagens do indivíduo podem ser contadas cinematograficamente, independente de quais forem, e que seus pontos de interesses e pontos de vista têm uma riqueza singular e muito a oferecer. Reflexão sobre a imagem, questionar sobre o espaço em que estão. O que querem contar nos seus filmes? Por que filmar? Defender a relevância de seus projetos e conseguir, assim, visualizar a viabilização do mesmo. E, finalmente: prática, para compreender os processos de realização, interação da equipe e divisão de funções, adquirindo assim experiência e maturidade.
Através desses processos, os estudantes conseguem desenvolver não apenas um protagonismo próprio em seus projetos e autonomia para conseguirem, como também desenvolvem um atravessamento social e crítico.
É necessário prática, repertório e confiança para que os filmes se façam.
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5. Notas
- A Lei 12.711/2012. Esta Lei garante 50% das vagas nas Universidades Federais e nos Institutos Federais de Educação para alunos que fizeram o Ensino Médio em escolas públicas municipais, federais ou estaduais. ↩︎
- Termo utilizado para definir vídeos que são realizados por atores reais, ao contrário das animações. ↩︎
- Foi lançada em 1985, com a principal característica de ser uma câmera leve com encaixe para a mão. Seu lançamento foi um contraste marcante ante as câmeras de ombro maiores. O modelo em questão possuía formato MiniDV (de fitas MiniDV) que gravavam em 720×480 entrelaçado, a captura era em tempo real via Firewire. ↩︎
- Gabriela atravessava as cidades diariamente para cursar a universidade, apenas nos últimos dois anos de curso que ela se mudou efetivamente para a cidade de Pelotas. ↩︎