A TRAJETO ERRÁTICO é uma revista de Educação Audiovisual. Entre setembro e dezembro de 2020, recebemos muitos textos fascinantes; alguns dos quais encontram-se agora nesta edição, disponíveis (enfim!) para leitura dos interessados. Que já fique claro do início um dos difíceis trabalhos que nós, aqui editores, tivemos que fazer: recortar. Alguns dos textos enviados ficaram de fora. Olhamos para uma linha e a tomamos como limite para definir quais viriam a permanecer, e esta linha anuncia-se na primeira frase de tudo que diz respeito à TRAJETO ERRÁTICO: trata-se, afinal, de uma revista de Educação Audiovisual. Pensamos então que a melhor forma de introduzir e apresentar os textos que compõem esta primeira edição da TRAJETO ERRÁTICO seria esclarecer o que tomamos como Educação Audiovisual.
Parece fácil, mas é difícil: é traiçoeiro. Sabe-se bem o que é Educação (ainda que nem todos saibam a mesma coisa da mesma forma), e sabe-se bem o que é Audiovisual (ainda que…). Há definições de dicionário para Educação, bem como o há para Audiovisual. Mas não podemos nos deixar enganar, pois Educação Audiovisual não é o mesmo que Educação e Audiovisual. Talvez possamos ser ousados e chegar a dizer que investigar o que é a Educação ou o Audiovisual pouco contribuem (embora contribuam de alguma forma) para entender o que é a Educação Audiovisual, visto que trata-se evidentemente do nome de uma coisa outra, uma coisa autônoma em si mesma. Bem. Ainda que a Educação Audiovisual tenha muito de Educação e de Audiovisual, ela não é nem Educação e nem Audiovisual: ela é Educação Audiovisual.
Um nome – nome de uma coisa que se difere das outras, principalmente destas outras duas. Semelhante em quê? Assim como a Educação e o Audiovisual, a Educação Audiovisual é um nome universal: ele define um conjunto de coisas em particular que, por alguma razão, se aproximam, como o nome de uma espécie aproxima indivíduos singulares, como somos todos humanos. Se os textos desta edição da TRAJETO ERRÁTICO nos dão alguma pista, seria, diríamos, que a Educação Audiovisual articula experiências, aconchegos e desejos. Experiências por trazer o passado, aquilo que já aconteceu e que importa, que se lembra com carinho por um motivo qualquer. Aconchegos por trazer também o presente, aquela configuração de mundo da forma em que ela se desenrola e o agrado que se sente das coisas serem da maneira que são. E desejos, claro, por trazer também o futuro: aquilo que se projeta, que não aconteceu mas que nos mobiliza por ser um lugar de chegada (ou de futura passagem) visto de algum ponto. Na experiência, relatamos as mudanças pela qual passou a prática pedagógica de um educador audiovisual; no aconchego, trazemos uma forma de se trabalhar enquanto educador audiovisual que dialoga com (e mesmo se tornou) o dia-a-dia de algumas pessoas (uma metodologia utilizada por alguns educadores audiovisuais?); no desejo, colocamos questões teóricas e conceituais que poderão vir a sustentar práticas vindouras de educadores audiovisuais.
Tentemos ser mais claros em nosso critério de seleção, pois só tivemos um. A TRAJETO ERRÁTICO nasceu da percepção de um circuito de exclusão: temos muitos textos escritos – muitos mesmo!, textos de diversas alçadas e categorias –, e todos eles só podem ser lidos por nós e para quem nós enviamos por email ou Whatsapp. Textos que se não saíssemos por aí a falar deles diretamente para uma pessoa ou outra ninguém saberia da existência. Não temos (nunca tivemos e parece que não teremos) onde publicar, eis nossa percepção. Não temos onde expor nossas ideias, nossas vivências, nossas metodologias. Não nos publicam, ou porque não se interessam pelo que temos a dizer ou porque não temos um lattes comprido o suficiente ou porque não nascemos já bem encaminhados em nosso meio. Mas queremos nos fazer ouvidos! E queremos que outros nesta situação possam da mesma forma fazer-se. É por isso que a TRAJETO ERRÁTICO opera para publicar a maior quantidade possível de coisas. Não queremos que ninguém fique de fora. Você não precisa ter um doutorado para ter algo valioso a dizer que deveria ser ouvido e internalizado por muita gente. Ora, se as coisas são assim, quem é esse “nós” que se percebeu excluído? Nós somos educadores audiovisuais. E nesta edição estabelecemos um espaço onde podemos falar uns aos outros – onde podemos, melhor, descobrir uns aos outros.
Educação Audiovisual é um debate entre educadores audiovisuais. Um campo de estudos, alguns diriam (como a Biologia ou a Sociologia). Um espaço e um tempo onde um educador ou educadora audiovisual apresenta suas ideias, ideias que podem ser ouvidas e tomadas como fonte de orientação ou como objeto de contestação. Na Educação Audiovisual discutimos, estabelecemos nossas teorias e metodologias; apresentamos nossas práticas, discorremos sobre experiências finalizadas e tentamos compreendê-las à luz de certas ideias; apontamos equívocos em práticas e teorias dos outros e sugerimos como poderíamos fazer coisas diferentemente algum dia. Não há então, cremos, melhor maneira de definir o que é a Educação Audiovisual que ouvir os educadores audiovisuais e tentar extrair de suas falas alguns pontos em comum. É um trabalho gostoso de ser feito por conta própria, mas gostaríamos, nós aqui editores, de elencar alguns dos que julgamos mais escancarados.
Primeiro, a marcada presença da sala de aula. Sala da escola, da universidade – transformação de salas outras em salas de aula, invenção de sala de aula em qualquer lugar. Destruição da sala de aula: necessidade de abrir mão de uma história tradicionalmente escrita e com lugares marcados, tentativas de fazer em sala de aula relações antes proibidas, silenciadas. Segundo, a experiência de Educação Audiovisual que vira texto; isto é, que afeta e transparece em si na própria forma de escrita. Em um dos textos desta edição, o autor é uma sala de aula! Por fim, a soberania do fazer em um campo que estabelece destacadas ligações com o Cinema – majoritariamente e classicamente tido como lugar de ver (lugar hoje, é claro, contestado). Parece que Educação Audiovisual é algo que se dá com as mãos. Ou com os pés. Mãos que mudam e interferem, pés que deslocam e fogem – como se na Educação Audiovisual estivéssemos obrigados a correr de lugares que estagnam a vida.
Como definir o que pertence a um nome para algo em construção? Como definir sem criar mais um circuito de exclusão, sem impedir que este algo em desenvolvimento vá por um caminho ou outro? A Licenciatura em Cinema e Audiovisual da UFF, como outras Licenciaturas, coloca seus educadores audiovisuais em formação para fazer estágio obrigatório. Em escolas? Não – não necessariamente. Onde eles demonstrarem que é possível fazer estágio pedagógico obrigatório. Chegaram, desta forma, aos museus, aos hospitais, às ONGs, aos laboratórios, às bibliotecas, às escolas, às salas de cinema, aos festivais, às produções de filmes, aos canais no YouTube… Não se sabe bem onde pode atuar um educador audiovisual, proibir as tentativas de explorar lugares outros não é benéfico. Vamos por aí com a TRAJETO ERRÁTICO: três dos textos recebidos ficaram de fora, e gostaríamos que os três fossem reenviados e pudessem constar na próxima edição. Em parecer aos autores, sugerimos alguns pontos por onde poderiam estabelecer de forma mais clara aquilo que têm a dizer em seus respectivos textos nos debates da Educação Audiovisual – a TRAJETO ERRÁTICO abrirá todo o espaço do mundo para tentativas. Por ora, então, é tudo muito nebuloso. Mas esperamos que cada edição publicada desta revista contribua para construir algo mais sólido.
Temos mais uma coisa para dizer. A TRAJETO ERRÁTICO nasce do desejo de criar um espaço de fala que possa ser tomado por todo e qualquer educador ou educadora audiovisual – partindo do reconhecimento de que temos sempre muito a dizer, mas poucas vezes nos deixam abrir a boca. Nosso único critério para publicar os textos seguintes foi descobrir se tratavam ou não de Educação Audiovisual. E eles tratam: então que falem os autores. Por isso, quebramos o tradicional processo de revisão de pares que passa por solicitações de mudanças, alterações e contestações. Nós aqui editores discordamos de algumas ideias que serão, a seguir, apresentadas pelos colegas de campo. A TRAJETO ERRÁTICO não impedirá nenhum educador ou educadora audiovisual de falar porque os editores discordam de suas ideias, consideram-nas ultrapassadas ou julgam-nas mal defendidas – como fazem revistas tradicionais, o que só fortalece o circuito de exclusão e de centralização de um modo único de pensar e de se expressar. Discordamos dos outros porque não somos os outros, e isso é bonito, algo a ser estimulado. Queremos que este seja um espaço de trocas e diálogos. Então se você, aqui leitor ou leitora, discorda ou tem algum comentário a fazer sobre qualquer um dos textos que se seguem, convidamos a escrever e enviar o seu texto-resposta para nós. Comprometemo-nos a publicar nas edições seguintes, por quantas vezes for preciso, diálogos entre autores e textos-respostas aos artigos da revista.
Com carinho e alegria, publicamos a primeira edição da TRAJETO ERRÁTICO – Revista de Educação Audiovisual.
Boa leitura!
Keven Fongaro Fonseca, editor.