1. Introdução

Ao longo de sua história, o cinema sempre ocupou um lugar de ambiguidade dentro das Artes. Ao mesmo tempo em que é reconhecido como uma expressão artística independente das outras, também é, estruturalmente, comunicação. Tanto por ser regido pela linguagem audiovisual, muito eficaz em comunicar e informar (documentários, telejornais, etc), tanto por também ser indústria (MARTIN, 2003), movimentando uma quantidade obscena de dinheiro todos os anos.

Em sua própria gênese o cinema já abraçava uma certa ambiguidade: surgiu como entretenimento de baixo custo nas ruas, onde aconteciam os chamados vaudevilles. No entanto, rapidamente foi apropriado por artistas e produtores das mais diversas origens e com os mais diversos objetivos. Das experiências de ilusionismos de George Melliès, passando pelas intrincadas narrativas de D.W. Griffith, até os filmes expressionistas na Alemanha dos anos 1920 (MARTIN, 2003), o cinema demonstrava caráter camaleônico. 

Mas foram os experimentos da vanguarda soviética que mais contribuíram para o estabelecimento do cinema enquanto expressão artística. Cineastas soviéticos ao longo dos anos 1920 desenvolveram uma série de possibilidades que potencializaram o cinema enquanto manifestação das Artes e ajudaram a sistematizar o que posteriormente ficou conhecido como Linguagem Cinematográfica.

Uma dessas possibilidades foi realizada por Lev V. Kuleshov por volta de 1918. Baseando-se no princípio vigente entre seus compatriotas contemporâneos, ele acreditava que a independência do cinema dava-se através do recurso da montagem, pois lhe era exclusivo. A montagem afasta o cinema da literatura, da pintura, da fotografia e, principalmente, do teatro. Para Kuleshov, através da montagem o cinema proporciona a fruição do espectador. 

O meio de expressão específica do cinema é a sucessão rítmica dos planos, ou de curtos fragmentos imóveis, o que produz a expressão do movimento, facto que, tecnicamente, se chama montagem. A montagem no cinema corresponde à organização das cores na pintura ou à sucessão harmónica dos sons na música. (…) O ritmo é o verdadeiro conteúdo do filme; é ele que decide das reacções e dos pensamentos do público. (KULESHOV, Lev V. apud CANELAS; ABREU e GODINHO, 2014, p. 30)

A partir disso, entendemos a necessidade de se trabalhar o cinema na escola sob sua perspectiva artística, contrária à perspectiva instrumental comumente usada, na qual o cinema serve ao propósito de transmitir determinado conteúdo. Mais ainda, do ponto de vista de uma educação libertadora (FREIRE, 2016), a presença do cinema enquanto expressão da Arte deve entrar na escola como uma disrupção, pois, ao contrário do que acontece com o conteúdo curricular em outras disciplinas, essa abordagem deve estimular a “doce liberdade individual” (BERGALA, 2008, p. 32) dos estudantes.

A abordagem do cinema enquanto obra de arte na educação, como levantado por Bergala, tem caráter de urgência pois “se o encontro com o cinema como arte não ocorre na escola, há muitas crianças para as quais ele corre o risco de não ocorrer em lugar nenhum” (BERGALA, 2008, p. 33). Essa perspectiva tem potência transformadora na vida dos sujeitos. A tomada de consciência do cinema como arte proporciona que, mesmo aqueles que muitas vezes dizem não gostar ou se interessar por arte, percebam que de alguma forma a consomem, abrindo oportunidade para que se aproximem da experiência artística.

Não podemos pensar a inserção do cinema nas escolas “sem a experiência do ‘fazer’” (BERGALA, 2008, p. 30). Portanto, essa “liberdade individual” deve ser estimulada tanto na dimensão de apreciação de filmes, quanto na dimensão de experimentação cinematográfica. Para Migliorin (2015), o cinema carrega consigo a inevitável reflexão sobre si mesmo, sobre seus espaços, seus sujeitos e suas relações. A reflexão repercute em cada uma dessas coisas, alterando-as no momento em que a experimentação do cinema acontece. Por isso, o cinema aparece na escola enquanto alteridade: vem de fora e nos convida a observar e pensar este espaço, inevitavelmente transformando-o.

Essa abordagem não poderia se distanciar das ideias de Dewey (2010), onde a arte é uma potente fonte de experiências, uma vez que “toda experiência é resultado da interação entre a criatura viva e algum aspecto do mundo em que ela vive” (DEWEY, 2010, p. 122), podendo o cinema, em sua construção estética e capacidade de criar “atmosferas”, garantir uma experiência significativa. A partir desse contato dentro da escola, a experiência cinematográfica para aquele indivíduo pode se transformar em uma unidade singular conferindo o nome de aquela experiência, aquele filme e aquela aula (DEWEY, 2010).

2. O material didático

Uma grande barreira que o cinema encontra ao tentar entrar na escola consiste na escassez de dispositivos eletrônicos e de espaços propícios para apreciação e realização de filmes. Desse modo, uma alternativa viável é a produção de materiais didáticos que propiciem o acontecimento de um ensino-aprendizagem em cinema. Através de um material didático é possível inserir a linguagem e a expressão cinematográficas em sala de aula de maneira lúdica e muitas vezes interativa.

Por isso, construímos um material que, a princípio, teve por objetivo o ensino-aprendizagem sobre Efeito Kuleshov e narrativas metafóricas. O material funciona como uma espécie de jogo, com regras e objetivos predeterminados. Ele é constituído de:

  • Um trilho, com cerca de 40 centímetros de comprimento, onde pode-se inserir imagens que ficarão nele expostas;
  • Um livreto que explica resumidamente aspectos básicos da linguagem cinematográfica, o Efeito Kuleshov e as narrativas metafóricas, com o objetivo de auxiliar o educador;
  • Fichas-Comando contendo as seguintes palavras: amor, loucura, medo, perda, acuado, luxúria, inveja, além de uma Ficha-Comando em branco;
  • Fichas com imagens retiradas de filmes nacionais e internacionais, dos experimentos do Efeito Kuleshov, e imagens de outras fontes.

Antes do uso de fato do material didático, é recomendável que o educador ou a educadora contextualize para seus alunos as questões que serão abordadas durante a aula. Essa contextualização pode acontecer com o auxílio do vídeo, através da exibição de demonstrações práticas do Efeito Kuleshov e de narrativas metafóricas, ou através da utilização do próprio material. Neste caso, as imagens seriam inseridas no trilho e compartilhadas com a turma.

O material funciona com a seguinte dinâmica: um por vez, os estudantes sorteiam uma ficha-comando. De posse dessa ficha, o aluno ou aluna busca exprimir determinada sensação através da justaposição de imagens no trilho. O resultado é compartilhado com a turma que, observando a sequência de imagens, busca interpretá-la. Somente no final o(a) autor(a) da sequência compartilha como foi sua experiência em exprimir a sensação contida na ficha-comando, revelando-a.

Com isso, pretendemos proporcionar o acontecimento de duas etapas igualmente valiosas no processo de ensino-aprendizagem em cinema: a apreciação e a criação. Os estudantes terão a oportunidade de criar suas montagens e de conversar abertamente sobre os desafios e prazeres dessa experiência com colegas. Ademais, poderão observar a montagem uns dos outros, exercitando a apreciação crítica, na medida em que a contemplação ocorre no contexto do cinema enquanto objeto de estudo.

Tão importante quanto isso é a maneira descontraída e interativa com a qual a ação proposta pelo material acontece. Muito da potencialidade do que se propõe esse material manifesta-se através da troca e do debate entre alunos. Nesse compartilhar, interessa muito mais saber o que alunos e alunas sentem ao realizar a montagem, do que aspectos técnicos cinematográficos em si. Naturalmente, ainda que o material apresente objetivos, não existe uma maneira certa ou errada de se organizar as imagens. Aqui, aposta-se na troca de ideias para revelar os potenciais expressivos do cinema para nossos estudantes.

3. A experiência

Após criarmos o material, decidimos experimentá-lo em sala de aula, para avaliar as possibilidades de execução de suas ações e entender a resposta dos estudantes a ele. Realizamos a experimentação na Escola Municipal Antônia Ferreira, localizada na região norte de Belo Horizonte, estado de Minas Gerais. É uma escola pública tradicional no bairro, fundada em 1970, que atende majoritariamente crianças de comunidades próximas. 

Venda Nova, o nome da região, tem, de acordo com o censo de 2010, o segundo pior IDHM e IDHM Educação entre as regiões da cidade, além de ter os piores indicativos em IDHM Renda e expectativa de vida. Trata-se de uma região socioeconomicamente mais desprivilegiada em relação a outras de Belo Horizonte, que tem por sua vez alguns dos melhores indicadores segundo o mesmo senso em relação a outras capitais brasileiras.

A escola dispõe de um auditório, muito utilizado para exibições de filmes. Optamos por não utilizar o auditório pois o espaço é demasiadamente grande para os poucos estudantes selecionados para realizar a ação. Foi-nos disponibilizada uma sala vazia, com cortinas blackout. Era uma sala pouco espaçosa, voltada para crianças bem pequenas. A única cadeira presente foi usada para posicionar um computador no qual exibimos os vídeos. Educandos e educadores permaneceram sentados no chão.

A primeira etapa da ação consistiu na exibição de objetos conhecidos como “brinquedos ópticos”. Tratam-se de objetos criados ao longo do século XIX cujo objetivo era, de alguma maneira, criar a ilusão de imagens em movimento. Enquanto os vídeos sobre esses objetos eram exibidos, conversávamos com os estudantes a respeito desse desejo que a humanidade demonstrou durante séculos de criar imagens em movimento. E sobre como o cinema era, no final das contas, a sequenciação de uma imagem após a outra, gerando a ilusão de movimento.

O último brinquedo óptico exibido foi o cinetoscópio, patenteado por Thomas Edison em 1891. Consiste em uma caixa com cerca de um metro de altura e sessenta centímetros de largura. Nela, a pessoa aproxima-se e olha por uma fresta localizada na parte superior. Ao inserir uma moeda, o curto filme rodava em loop no interior da caixa. Mecanicamente, é algo muito próximo do que o cinema é, embora no produto de Edison a experiência de apreciação seja individual, e não coletiva.

A contextualização inicial terminou com a exibição do filme “A Chegada do Trem Na Estação”, de Louis e Auguste Lumière, tido como o primeiro filme da história. Então, passamos a conversar sobre o fato dos primeiros filmes não terem cortes, já que a montagem só começaria a ser utilizada alguns anos depois de 1896. Percebemos certa dificuldade em ensinar o conceito de corte, pois a palavra está associada com o aspecto material da película. Como era de se esperar, sendo os estudantes todos nascidos após 2003, não conheciam esse material.

Além do mais, notamos que a própria ideia de transição entre planos não havia, até então, sido consideravelmente observada pelos alunos e alunas. Naturalmente todos viam filmes e séries com frequência. Mas, pelo estranhamento que a conversa lhes causou, pudemos perceber que não havia grande reflexão sobre as imagens que consumiam.

O que relatamos até agora consistiu na contextualização que realizamos, a fim de melhor preparar os estudantes para a segunda etapa, que consiste em uma proposição de caráter prático. 

3.1 A experiência: Relato da experimentação do Efeito Kuleshov

Após as demonstrações dos brinquedos ópticos e uma conversa significativa sobre os elementos materiais do cinema, entramos definitivamente no escopo de nossa ação pedagógica. Falamos rapidamente sobre o que é o Efeito Kuleshov e, previsivelmente, reparamos um olhar de confusão nos rostos dos estudantes. Então, exibimos um vídeo contendo a demonstração do efeito realizada pelo próprio Lev Kuleshov. 

Trata-se de um vídeo curto, de cerca de 40 segundos, dividido em três partes. Na primeira, temos a imagem em close do rosto de um homem e, em seguida, um prato de comida. Depois, o mesmo rosto e, em seguida, um plano de uma criança morta. Por último, o rosto aparece novamente, dessa vez justaposto à imagem de uma mulher. O vídeo não foi exibido de uma só vez. Apresentamos uma parte de cada vez e pedimos que os estudantes nos relatassem suas impressões sobre a curta cena. A impressão geral foi a mesma imaginada por Kuleshov: em cada parte, tem-se a sensação de que o personagem retratado tem, respectivamente, fome, dor pelo luto e desejo.

Por fim, exibimos um vídeo em que o diretor inglês Alfred Hitchcock explica o efeito, de uma maneira um pouco mais provocante: vemos a imagem em close do rosto de um homem. Em seguida, uma mãe segurando seu bebê. E então, o mesmo homem sorri. Tem-se aqui a ideia de ternura na reação do homem retratado. Quando Hitchcock substitui a imagem do meio pela de uma mulher de biquíni, o sorriso do homem adquire um ar malicioso.

Os alunos e alunas selecionados apresentavam idades entre 9 e 12 anos, permitindo que tivéssemos impressões sobre as potencialidades do material em diferentes etapas do desenvolvimento escolar. Após a contextualização, passamos para o desenvolvimento da atividade com os alunos.

Chamaremos cada um dos resultados avaliados por essa pesquisa de “caso”, visando preservar a identidade das crianças. Nas ações realizadas, todos os estudantes optaram por usar um conjunto de pelo menos 3 imagens, sendo sempre a primeira e última imagem a do rosto de Hitchcock, retirada do vídeo em que ele explica o efeito Kuleshov.

Caso 01: Aluno de 11 anos, sorteou a Ficha-Comando com a palavra “amor”. Utilizou, na ordem: a imagem do rosto sério de Hitchcock; uma imagem da sombra de um casal projetada em uma cama, prestes a se beijar; o rosto sorrindo de Hitchcock. Todos os alunos compreenderam facilmente a representação de amor ali. 

Caso 02: Aluna de 12 anos, sorteou a Ficha-Comando com a palavra “medo”. Utilizou, na ordem: a imagem do rosto sorridente de Alfred Hitchcock; uma imagem da sombra retorcida de um homem, pertencente a um filme expressionista alemão (O Gabinete do Dr. Caligari, 1920); o rosto sério de Hitchcock. Todos os estudantes compreenderam a ideia de medo. A utilização das imagens do rosto de Hitchcock invertidas (primeiro sorrindo e depois com uma expressão séria) não foi sugerida por nós. Deste modo, por conta própria, educandos decidiram pela inversão entre o que seria a primeira imagem (o rosto impassível do diretor inglês) e a segunda imagem (o mesmo rosto, agora reagindo à imagem justaposta anteriormente), demonstrando um entendimento do processo.

Caso 03: Aluno de 12 anos, sorteou a Ficha-Comando com a palavra “inveja”. Utilizou, na ordem: o rosto sorridente de Hitchcock; uma imagem de um vampiro próximo de morder a sua vítima (Drácula, 1932); e o rosto sério de Hitchcock. Nossos educandos, neste caso, não reconheceram a imagem do meio como sendo a de um vampiro, entendendo-a como a de um homem prestes a beijar o pescoço de uma mulher. Por isso, interpretaram a montagem como sendo a expressão da sensação “inveja”, o que vai de acordo com a intenção do aluno-autor da montagem. Foi interessante aqui a divergência de interpretação entre os estudantes e educadores. Por conhecermos a origem da imagem, imediatamente associamos a montagem com a sensação de “medo”.

Caso 04: Aluno de 12 anos, sorteou a Ficha-Comando em branco, decidindo construir uma narrativa sobre “emoção”. Utilizou, na ordem: o rosto sério de Hitchcock; a imagem de um garoto sorridente enquanto olha um rolo de película de um filme entre suas mãos (Cinema Paradiso, 1988); e o rosto sorridente de Hitchcock. O aluno, possivelmente em razão da baixa resolução da imagem, pensou que o menino segurava um violino. Por isso, entendeu a imagem como a representação de uma bela música. A montagem, portanto, expressava a reação emocionada do homem (representado pelo rosto de Hitchcock). Apesar da confusão a respeito do que a imagem do meio retratava, os estudantes conseguiram chegar à ideia de emoção. Novamente aqui, alunos e educandos divergiram em suas interpretações devido ao conhecimento do filme de origem. Algo que, em nossa visão, demonstra a potencialidade do material por si próprio, independendo de diretrizes rígidas por parte dos educadores.

Caso 05: Aluno de 11 anos, sorteou a Ficha-Comando em branco decidindo construir uma narrativa representando “casamento”. Utilizou, na ordem: o rosto sério de Hitchcock; a imagem de uma mão segurando uma aliança (O Ring, 1927); a imagem de uma mulher de vestido; e o rosto sorridente de Hitchcock. Os estudantes interpretaram a montagem como representando a ideia de casamento (ou seja, em acordo com a intenção do autor). No entanto, o aluno-autor neste caso utilizou a montagem para construir uma narrativa sequencial, ignorando, aqui, o Efeito Kuleshov.

Caso 06: Aluno de 9 anos, sorteou a Ficha-Comando em branco decidindo construir uma narrativa representando “paz”. Utilizou, na ordem: o rosto sorridente de Hitchcock; a imagem com um plano detalhe de duas pessoas de mãos dadas; e o rosto sério de Hitchcock. Neste caso, nenhum aluno ou educador conseguiu interpretar a ideia de “paz” a partir de sua montagem. Possivelmente a ideia é demasiadamente abstrata para ser representada naquelas circunstâncias, sendo assim uma escolha pouco apropriada por parte do aluno. Outra possibilidade é a de que o aluno fosse muito jovem e, portanto, a abordagem utilizada não tenha sido adequada aquela faixa etária de idade.

3.2 A experiência: Relato da experimentação com Narrativas Metafóricas

Em um segundo momento, passamos para a Narrativa Metafórica, que nos parecia   uma etapa mais desafiadora para a faixa etária dos educandos. Foi nossa primeira vez explicando um conceito como metáfora para crianças tão jovens. Inicialmente eles não compreenderam sua definição. Então passamos a usar exemplos de metáforas relacionadas ao cotidiano. Dissemos que um dos alunos tinha “ficado vermelho igual tomate após ter levado uma bronca do professor” e depois perguntamos o significado da frase. A maioria dos estudantes, a partir daí, conseguiu entender o conceito de metáfora.

Em seguida, pedimos que eles transformassem esse exemplo em uma construção visual, explicando como fariam para representar essa frase através das imagens no trilho. Um dos alunos respondeu indicando que colocaria, em ordem, a imagem de um garoto, a imagem de um tomate e uma imagem totalmente vermelha. Todos os colegas concordaram.

Superada a dificuldade em conceitualizar a metáfora, buscamos mostrar que era possível realizar essa figura de linguagem através de imagens, utilizando o corte entre duas sequências. Através da justaposição entre a primeira e a segunda sequência, um sentido metafórico poderia ser construído junto ao espectador. Como exemplo de uma metáfora extradiegética, isto é, onde a segunda sequência não faz parte da ação do filme (MARTIN, 2003), apresentamos aos alunos cenas extraídas do filme “Lucy” (Luc Besson, 2014).

Escolhemos o filme Lucy por ser um exemplo recente e direto da utilização de uma metáfora extradiegética. Vemos que, ao montar a cena em que Lucy é levada por seu namorado a fazer uma determinada coisa, Besson acrescenta no meio do diálogo a cena de um rato aproximando-se de uma ratoeira. Perguntamos aos alunos o que tinham entendido a partir daquela curta cena (a cena estava com áudio original em inglês e propositalmente não levamos legendas) e todos interpretaram que a personagem Lucy estava caindo em uma armadilha. 

Nas cenas seguintes, o filme retrata a personagem sendo capturada e entregue a uma gangue de mafiosos. Através da montagem, Besson intercala a ação do filme com cenas de uma gazela solitária em um campo, enquanto animais predadores são vistos próximos a ela. Novamente pedimos que as crianças nos falassem da cena e, sem dificuldades, um a um foi explicando as comparações entre a ação do filme e a ação extradiegética, que denotava o perigo iminente da protagonista naquela situação.

Após a exibição das cenas, entendemos que os alunos já haviam suficientemente se familiarizado com os conceitos apresentados e então partimos para a experimentação do material na perspectiva das narrativas metafóricas. Tratava-se, portanto, do mesmo material, com as mesmas imagens. Porém, nessa parte não há fichas-comando. Na experimentação, um a um os estudantes deveriam pegar o trilho e construir uma narrativa metafórica livremente, valendo-se das imagens disponibilizadas.

De acordo com o objetivo do material, os resultados não foram satisfatórios. As crianças, infelizmente, não conseguiram desenvolver narrativas metafóricas. Utilizando as imagens que tinham à disposição, os estudantes construíram narrativas sequenciais e até mesmo simbólicas, mas nenhuma metáfora foi produzida com elas. Falaremos a seguir de dois exemplos de narrativas realizadas.

Caso 01: Foram utilizadas 3 imagens, sendo: uma corda de forca; um caixão com uma criança morta; e a imagem de uma grande árvore com algumas pedras, que foram entendidas como lápides. O aluno buscou produzir a seguinte narrativa: uma mulher foi condenada à forca por “pecar demais”. Em seguida, foi enterrada num cemitério. 

Caso 02: Foram utilizadas 5 imagens, sendo: uma estátua de um leão; uma cena de guerra com soldados mortos; duas pessoas jogando xadrez; um homem segurando um homem morto em seus braços; e uma imagem de um túnel, gravada de dentro para fora. O aluno buscou realizar a seguinte narrativa: um leão matou e devorou uma imensidão de pessoas. Dois sobreviveram. Um dos sobreviventes, à meia-noite, resolveu se sacrificar para que o leão não matasse o seu amigo. 

4. Análise dos Resultados

Os resultados da experiência foram interessantes e animadores. Apesar das pequenas dificuldades, o material se mostrou eficaz para as finalidades que lhe foram propostas. Foi possível desenvolver ações pedagógicas de montagem cinematográfica sem a dependência de equipamentos tecnológicos. Além disso, ele proporcionou a abordagem do cinema dentro da escola enquanto processo de criação, permitindo exercitar a produção cinematográfica enquanto expressão artística.

4.1 Análise dos Resultados: Efeito Kuleshov

Os estudantes relacionaram-se bem com o material. Através dele, foi possível perceber a concretização do Efeito Kuleshov na criação de diversas narrativas, em diferentes sentidos e contextos, utilizando sempre as mesmas imagens que retratam o rosto do personagem, mesmo que através de frames impressos. 

Outra observação interessante, como já apontamos anteriormente, está nos casos em que a imagem central era desconhecida pelos alunos, mas conhecida pelos educadores. Ali, nós atribuímos sentidos diferentes às narrativas, realizando interpretações ligadas ao valor simbólico da imagem central (isto é, a partir de seus filmes de origem). Por outro lado, os educandos construíram sentidos a partir da observação objetiva das imagens (isto é, aquilo que elas concretamente retratavam ou aparentavam retratar).

A situação apresentada sobre a diferença de interpretação da imagem entre educandos e educadores poderia, a princípio, ser entendida como um problema. No entanto, em nossa análise, essa diferença é positiva. Os alunos, através de seus conhecimentos e vivências, apropriaram-se da ferramenta e dos conteúdos aos quais acabaram de ser apresentados e conseguiram desenvolver o efeito de forma a se relacionarem com os colegas, fazendo-se entender. Foram capazes, portanto, de interpretar de acordo com o autor de cada montagem as narrativas propostas, em algumas situações, melhor que os educadores.

Nos casos em que o Efeito Kuleshov não foi concretizado (Caso 05 e Caso 06), questionamo-nos se a não realização do efeito deveu-se por: 

  • Falhas na contextualização do efeito e do material; ou seja, a apresentação da proposta não foi suficientemente desenvolvida para melhor compreensão de todos;
  • Momento inadequado de formação escolar; isto é, as crianças poderiam ser muito jovens ou não terem ainda concluído determinada etapa do desenvolvimento escolar, apresentando dificuldades em organizar narrativas ou construir sentidos através de símbolos e representações;
  • Equívoco na idealização da ficha-comando em branco; pois os casos que não desenvolveram o Efeito Kuleshov haviam sorteado essa ficha-comando.

4.2 Análise dos Resultados: Narrativa Metafórica

As narrativas produzidas pelos alunos foram bastante complexas, tanto em desenvolvimento quanto nas relações entre as imagens. Nesse ponto, tanto educadores quanto educandos tiveram dificuldades em interpretá-las. Apesar de não atingir o objetivo com as narrativas metafóricas, a experimentação foi bastante interessante ao demonstrar a criatividade dos alunos, assim como suas capacidades de construir narrativas através de relações simbólicas com as imagens disponíveis. 

Isso evidencia que, apesar da ausência de metáforas, os alunos exercitaram a ideia de montagem ligada ao fazer cinematográfico, pois ao justapor “dois planos (…) faz-se nascer uma ideia ou exprime-se algo que não estava contido em nenhum dos planos tomados separadamente” (JOLY, Martine. apud CANELAS; ABREU e GODINHO, 2014, p. 31).

Foi curioso observar que, na segunda parte da experimentação, de uma maneira ou de outra, o teor de todas as narrativas realizadas pelas crianças foi violento. Se considerarmos os dados de IDHM apresentados pela região de Venda Nova, não surpreende que a violência possa não ser estranha à realidade daqueles alunos, sendo curioso que ela tenha aparecido neste momento, mas não tenha aparecido quando do desenvolvimento da atividade com o Efeito Kuleshov. Durante a experimentação ligada ao Efeito Kuleshov, os estudantes estavam mais ou menos limitados pela construção de sensações e pelas fichas-comando. Nas narrativas metafóricas, eles estavam completamente livres para construir a história que quisessem.

Analisando posteriormente os resultados obtidos com a segunda etapa da experimentação, concluímos que ela deve ser mais objetiva e clara. Ao permitir que os alunos desenvolvam suas narrativas sem utilizarem uma ficha-comando ou outro tipo de orientação mais objetiva, a realização da ação torna-se muito aberta. Isso faz com que os estudantes realizem narrativas inventivas, o que é ótimo. No entanto, dificulta a realização da narrativa metafórica e ainda possibilita o surgimento de temáticas tão violentas.

Além disso, as imagens presentes no material eram limitadas. Concluímos que devemos pensar na inserção de imagens específicas, que facilitem associações mais simples com outras já presentes no material. Ainda, devemos pensar em fichas-comando para nortear a construção de narrativas metafóricas.

5. Conclusão

Entendemos como necessária e urgente a inserção do cinema dentro da escola. No entanto, devemos nos atentar para que essa inserção não aconteça reproduzindo-se velhas práticas educacionais de maneira mais modernizada (SODRÉ, 2012). Não podemos conceber o cinema instrumentalizado, que funciona apenas para facilitar a transmissão de conteúdos multidisciplinares. O cinema deve entrar na escola como expressão da Arte, com sua disrupção e seu potencial transformador de sujeitos, corpos e espaços (MIGLIORIN, 2015).

Uma questão que consideramos de fundamental importância nesse trabalho é a democratização ao acesso das possibilidades de ver e fazer cinema. Sabemos que muitas escolas, especialmente aquelas localizadas em regiões socioeconômicas menos favorecidas, não possuem material adequado para projeção e visualização de filmes. Muito menos dispositivos de gravação de imagem e som, computadores, ferramentas de edição etc. Porém, acreditamos na possibilidade da experiência e potencialidade educacional do cinema mesmo sem a mediação dessas tecnologias.

Portanto, o material é desenvolvido sob essa perspectiva. Trata-se de um objeto feito com papel, de fácil reprodutibilidade. Após a experimentação em sala de aula com estudantes da Escola Municipal Antônia Ferreira, concluímos que o material é bem-sucedido em exercitar as práticas e sentidos do cinema. Vimos como as crianças, sem dificuldades, conseguiram criar suas montagens que, de acordo com a perspectiva do Efeito Kuleshov, reproduziam determinadas sensações.

Mais do que isso, em alguns casos, a nossa interpretação divergiu daquela feita pelos estudantes. E, no entanto, a interpretação dos alunos foi de encontro com a do aluno-autor da montagem. Esses momentos são carregados de potência, pois nos mostram duas coisas.

  A primeira é que o material dá espaço para que se enfatize os conhecimentos trazidos por alunos e alunas, fazendo com que sejam usados na aquisição de novos conhecimentos (FREIRE, 2016; RANCIÈRE, 2010). Isto é, as relações de interpretação e significado que estudantes possuíam foram usadas na experimentação de suas montagens para que eles se apropriassem dos novos conhecimentos trabalhados pelo material (narrativa, metáfora, Efeito Kuleshov etc).

Além disso, essa divergência na interpretação revela o alcance de um outro objetivo que tínhamos desde o início: que o material funcionasse por si só, independentemente de quem realiza a mediação. Naturalmente, alguma contextualização se faz necessária, mas como o próprio material é acompanhado de um livro didático, proporciona por si só o acontecimento da ação pedagógica.

Por outro lado, vimos que, no que concerne à narrativa metafórica, a experiência não atingiu os resultados esperados. Não foi possível, para as crianças, a criação de metáforas através da montagem das imagens no trilho. Por um lado, entendemos que alguns ajustes se fazem necessários, como a inserção de mais fichas com imagens e de fichas-comando para as narrativas metafóricas. Por outro lado, independentemente de objetivos, a potencialidade da experiência existe por si só. Os estudantes não montaram narrativas metafóricas, mas montaram narrativas. Depois de montarem, exibiram suas histórias para seus colegas e conversaram livremente a respeito delas. Sem câmeras digitais ou celulares, fizeram suas pequenas “cenas” e experimentaram o fazer cinematográfico, refletiram sobre as imagens, sobre seus significados e suas relações e o fizeram dentro do espaço da escola, o que, acima de qualquer coisa, deve ser o objetivo principal.

6. Referências

ATLAS Brasil: banco de dados. Disponível em: <http://www.atlasbrasil.org.br/>. Acesso em dez. 2020.

BERGALA, Alain. A Hipótese Cinema: pequeno tratado de transmissão do cinema dentro e fora da escola. 1 ed. Rio de Janeiro: Booklink; CINEAD-LISE -FE/UFRJ, 2008.

CANELAS, C.; ABREU. J. F. e GODINHO, G. As Bases Históricas e Teóricas da Montagem no Cinema. Portugal: Avança Cinema, 2014.

DEWEY, John. Arte como Experiência. 1 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 53 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2016.

Kuleshov Effect / Effetto Kuleshov. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=_gGl3LJ7vHc>. Acesso em: dez/2020.

LUCY. Direção de Luc Besson. França: EuropaCorp. 2014. Netflix. Acesso em: dez. 2020.

MIGLIORIN, Cezar. Inevitavelmente Cinema: educação, política e mafuá. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2015.

MARTIN, Marcel. A linguagem cinematográfica. São Paulo: Brasiliense, 2003.

RANCIÈRE, Jacques. O Espectador Emancipado. URDIMENTO. Santa Catarina, v. 2 n.

15, p. (107-122), set, 2010. Disponível em:

https://doi.org/10.5965/1414573102152010107. Acesso em: 14 de set. 2020.

SODRÉ, Muniz. Reinventando a educação: diversidade, descolonização e redes. Petrópolis: Editora Vozes, 2012.

Telescope: A Talk with Hitchcock. Disponível em: <https://the.hitchcock.zone/wiki/Telescope:_A_Talk_with_Hitchcock_(CBC,_1964)>. Acesso em: dez/2020.

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