O espaço cinematográfico como potencializador da leitura de uma pintura em sala de aula

1. Introdução

O presente trabalho é um recorte de um projeto de dissertação de Mestrado em andamento no Programa de Pós-Graduação em Cinema e Audiovisual da Universidade Federal Fluminense. O projeto visa desenvolver uma prática pedagógica que utiliza o cinema como mediador do ensino de artes na Educação Básica.

O mundo contemporâneo é muito rico em visualidade, como nunca antes na história da humanidade. Vivemos rodeados por imagens de natureza diversificadas. Desde publicidades em outdoors, filmes e comerciais na televisão, cartilhas, fotografias em redes sociais, vídeos nos celulares, imagens em livros e revistas, entre outros. Estamos sempre lendo imagens como um ato inerente a nossa forma de viver e existir na sociedade.

Desde que o ser humano começou a realizar arte rupestre cada época vive um sistema de estrutura de visualidades que reúnem um padrão de significados e convenções que exteriorizam aspectos de uma determinada sociedade (CARVAJAL, 2011).

Toda imagem produzida em nossa sociedade, seja qual for sua feição e aplicação, não possui um significado apenas e limitado em si. Cada imagem tem toda uma construção histórica de seu significado que pode ser percebido em sua narrativa visual e perspectiva cultural (SCHIAVINATTO; ZERWES, 2018).

Segundo o historiador de arte Aby Warburg existe na história da humanidade uma repetição de imagens nas representações de mundo desde a antiguidade. Toda imagem produzida carrega em si padrões visuais e aspectos culturais e sociais de visualidades do passado. Esta troca entre representações, segundo o autor, revela a importância da exposição da imagem como transmissão de saber (apud MICHAUD, 2013).

Desde que a Esfinge e as pirâmides de Gizé foram filmadas por Alexandre Promio, em uma produção dos irmãos Lumiére em 1897, cineastas interessaram-se pela possibilidade do uso do cinema em apresentar obras de arte. Muitas sendo únicas e estando em lugares distantes, elas poderiam através de filmes serem apreciadas por pessoas que não tinham o recurso nem a permissão para apreciá-las.

O objeto representado no cinema – em especial, o objeto artístico – transcende a limitação de sua representação figurada em um espaço na pintura, sendo representado no tempo e no espaço.

Quando vemos uma fotografia da pintura renascentista, desejamos ver o original e, desse modo, não ficamos realmente satisfeitos com o objeto em frente a nós; mas quando vemos um bom filme ficamos satisfeitos (…) Nossas mentes são invadidas por esse objeto na tela e são afastados todos os outros compromissos (MÜNSTERBERG apud ANDREW, 1989, p. 32).

O cinema trabalha com a interpretação – ou criação – de uma realidade imaginária, que por sua natureza tão efetiva, pode ser sentida e percebida como realidade. “Cinema é a arte da mente” (id. ibid, p. 27) – A mente de um cineasta cria e organiza um mundo, uma representação de uma microrealidade significativa e com um sentido pessoal. Os efeitos emocionais da cinematografia estão ligados diretamente aos elementos narrativos e visuais de uma história. Um filme tem uma capacidade estética de transformar elementos da realidade em objetos de contemplação cinematográfica, indo além da simples representação documental, construindo um novo objeto fílmico em um novo espaço e tempo, que pode variar de acordo com a experiência visual e psicológica de cada espectador (BALÁZS apud ANDREW, 1989).

Podemos pensar a ação destes efeitos sobre o espectador de forma didática. Se a representação de um objeto artístico em um filme pode lhe proporcionar uma multiplicidade de ressignificações, podemos então considerar o uso de um filme que ressignifique uma pintura como objeto fílmico em uma aula de Artes por exemplo. A exibição de um filme em uma sala de aula transforma um espetáculo em uma forma de pensamento. Existe uma relevância didática na apropriação que o cinema faz de elementos pictóricos em sua composição que possibilita uma transmissão de saber (MICHAUD, 2013).

A abordagem triangular desenvolvida por Ana Mae Barbosa (2005) nos anos 1980 frisava a importância da aproximação dos alunos com imagens da história da arte no mesmo nível de importância que do cotidiano como imagens publicitárias e midiáticas do entretenimento, que remetem à utilização de filmes como complemento didático como importante ferramenta pedagógica (BUGARIN; MARTINS, 2021).

2. Cinema e pintura – A pintura como espaço fílmico

O espaço cinematográfico tem a capacidade de informar o espectador aspectos narrativos e sensitivos através de camadas, planos, enquadramentos e cortes através de uma relação espacial e atmosférica. Cada elemento constitutivo de um espaço fílmico carrega um nível de significação que nunca é fixo, pois cada um é integrante de uma linguagem que permite ao espectador múltiplas leituras e significados de forma simultânea ou sucessiva (GAUDREAULT; JOST, 2009).

O cenário de um filme abarca uma série de sentidos, significados e sensações que são transmitidas aos espectadores de diferentes maneiras. Sua leitura vai além da cenografia teatral e da composição pictórica. O fluxo de transposições entre cenários dentro de um espaço fílmico transita por variadas representações de espaço, tempo e movimento, e suas ressignificações dentro da narrativa/forma do filme. A forma como o espectador recebe, entende e sente o espaço fílmico denota o potencial das narrativas sensoriais de um filme (GAUDIN, 2019).

A cenografia de um filme não tem origem cinematográfica, mas sim uma origem plástica. Os objetos e figuras são dispostos em fundos, tal qual telas de pintura. Afinal, uma pintura é também uma encenação, um cenário idealizado para uma composição. 

Tanto o cinema quanto a pintura têm suas cenografias inspiradas no Teatro Grego. Cada pintor, ou escola de um determinado estilo, constrói uma cena de acordo com uma determinada visão de mundo. Uma pintura não é simplesmente o resultado do acúmulo de técnicas, mas a utilização dramática destas no espaço encenado. 

A pintura cessa onde o cinema continua: na cena. A cena pictórica carece de uma unidade de tempo e de ação. Enquanto a cena fílmica pode ampliar e recriar as possibilidades narrativas e pictóricas através de uma ressignificação cinematográfica híbrida elaborando assim uma atmosfera. Por ter seu peso maior na visualidade, é a cenografia que responde pela maior verossimilhança de um filme, e a identificação do espectador com a realidade. 

A cenografia é, portanto, o mais visível dos elementos fílmicos, e talvez por isso tenha sido considerada a “parte mais nobre da arte do cinema” (AUMONT, 2004), o que também é defendido por Eisenstein, que idealiza uma cenografia que transgrida a segmentação espectador X filme, dando ênfase ao mundo que se cria artisticamente, pela percepção e consciência. O processo de destaque destes elementos é responsável pelo resultado de uma obra de arte cinematográfica – conceito que Eisenstein também considera aplicável à pintura, apesar de sua aparente estaticidade. “Uma obra de arte, entendida dinamicamente, é apenas este processo de organizar imagens no sentimento e na mente do espectador” (2002, p. 21). 

Segundo o cineasta John Frankenheimer, o equilíbrio no enquadramento de elementos funciona como uma forma de dirigir o olho do espectador em procura das informações visuais. Uma cena bem composta faz com que um objeto estático, como uma pintura, possa ser visto como algo extraordinário, além do seu sentido original (2009).

A disposição de objetos e suas formas e planos em um cenário pode representar desde um ateliê de um artista à recriação de uma obra de arte em si – praticamente uma pintura em movimento. O tipo de composição criado define a sensação de espaço e profundidade tal qual em uma pintura, por exemplo, e, através da representação dos elementos pictóricos de forma semelhante plasticamente, obtém-se o entendimento da linguagem daquela obra, sem que haja muitas informações que não sejam de natureza visual.

Como na pintura, o cinema elabora seu espaço fílmico baseado em conceitos visuais como a criação de um ponto de vista que dá consistência à perspectiva do espectador realçando assim a consistência da assimilação daquela mensagem visual. Podemos pensar então como a elaboração de espaço renascentista ainda permanece presente na elaboração do espaço fílmico do audiovisual (GAUDIN, 2019).

3. O moinho e a cruz

No filme “O Moinho e a Cruz“, o quadro “A Procissão para o Calvário“, de Pieter Brueghel, o Velho é recriado como uma obra em construção, através da preparação de personagens, figurinos e a presença do próprio artista na encenação. Os personagens e as tramas paralelas retratam o cotidiano – muitas vezes cruel e mesquinho – da Flandres do século XVI, tal qual é retratado Cristo caído com a cruz na pintura de Brueghel, um fato que passa praticamente despercebido pela sociedade tão apressada, tão ignóbil e tão absorta em si própria, associando uma característica mais humanizada a uma passagem bíblica (MESTRES, 1978).

Figura 1 – Pieter Brueghel, o velho – “Caminho Do Calvário” (1564) – Óleo Sobre Madeira – 124 cm × 170 cm  – Kunsthistorisches Museum, Viena, Áustria – Fonte: Wikimedia1.

Esses personagens secundários aparecem como recriação do ambiente e inspiração visual para a obra. O cenário também é enriquecido visualmente através do uso de fundos pintados à mão.

Segundo Gaudin (2019) a partir da primeira imagem do primeiro plano de um filme, o espectador já se sente envolvido pela atmosfera e espaço de um filme. No momento em que se inicia a projeção, ele encontra-se absorto por aquele espaço visível na tela através de uma sensação corpórea na qual a pessoa projeta suas percepções e sensações dentro do universo fílmico.

Durante o tempo da duração da exibição do filme o espectador vivencia uma imersão naquele mundo exibido pelo espaço fílmico tal qual uma pessoa entranhada em seu sonho onde acontecimentos sucedem-se de forma que diversas camadas são relacionadas a diferentes sensações corpóreas e sensíveis relacionadas a narrativas pessoais (PROECHT, 2013).

Tal qual em um sonho, durante um determinado intervalo de tempo o espectador sente-se deslocado no espaço-tempo de forma que aquele ambiente apresentado por um meio (filme/inconsciente) associado a sensações corpóreas e sensíveis dá credibilidade para que a experiência seja a mais próximo possível da realidade concreta. Em outras palavras o espectador por um breve período de duração sente-se em outro lugar e outro tempo, como parte integrante daqueles acontecimentos ou mero observador (MACHADO, 2002).

O moinho e a cruz” apresenta como o pintor Brueghel tinha um “olhar cinematográfico” para realizar as composições de suas pinturas. Elas retratam cenas dinâmicas com ações simultâneas. Os personagens não aparecem posando como para um retrato, mas como que orientadas por um diretor de cinema, que as dirige em como se locomover, agir e reagir (MESTRES, 1978). 

Temos o pintor aparecendo como um personagem imerso no próprio quadro que ele está elaborando em uma leitura metalinguística de sua obra. Ele vai realizando esboços enquanto os personagens vão sendo preparados em suas poses e figurinos. Ele vai observando o cenário e comentando sobre a composição com outro personagem fornecendo uma perspectiva imersiva acerca da problemática da representação pictórica.

Todo quadro é referência ao olhar que o concebe (o pintor) e que ao ser apreciado é substituído pelo olhar do espectador, que é limitado por uma utópica comunicação equivalente entre ambos os pontos de vista. Por outro lado, o filme assimilou um novo ponto de vista na pintura de Brueghel, ao dar substância ao personagem/autor: O Cinema multiplica o lugar o qual o espectador observa ao compartilhar um olhar com o autor (do filme) e o autor (da obra), que por ser também um personagem representado durante a execução de sua obra observa e compartilha com o espectador do filme a hipóstase da obra (AUMONT, 1985). 

O fluxo de passagens dos personagens que uma hora fazem parte daquele universo em que vivia Brueghel e em outra são personagens do seu quadro como Jesus e Maria reflete o que Gaudin relata como variações espaciais as quais o espectador não estranha e simboliza sua postura em relação às frequentes alterações no tempo/espaço inerentes a narrativa fílmica (2019).

O espaço fílmico em “O moinho e a cruz” recria o quadro “A Procissão para o Calvário“, de Pieter Brueghel de uma forma extremamente contemplativa em conformidade com a natureza da expressividade da linguagem pictórica que orienta a narrativa. As escolhas realizadas na decupagem que irão nortear a duração e as formas de ação dos planos em um filme devem ser baseadas nas características inatas da linguagem na qual ele se baseia (GAUDREAULT; JOST, 2009).

O filme apresenta dois espaços semelhantes, mas que na mente do espectador podem ser percebidos como distintos: A flandres do século XVI e seu dia a dia e o ambiente do quadro que está sendo preparado. Percebemos o primeiro por meio do realismo com que se recriou aquele espaço-tempo e que serve de ambientação para os personagens. Podemos perceber o segundo por sua intensa exploração de elementos visuais bem próximos dos cânones renascentistas como uso da profundidade (perspectiva) que nos apresentam a totalidade pelas partes e suas aplicações dramáticas de luz e sombras (GAUDIN, 2019).

4. Apreciação pedagógica do filme

De acordo com a abordagem triangular desenvolvida como método de ensino de artes por Ana Mae Barbosa (2005) a apreciação e contextualização de uma obra da história da arte são importantes para o desenvolvimento da percepção, do raciocínio, do pensamento crítico e da capacidade criadora e expressiva. Os métodos que a abordagem propõe em sua aplicação visam integrar o ensino às necessidades dos alunos e a própria linguagem artística e suas diversidades. Entre as linguagens possíveis temos a do cinema, que pode integrar no ensino a significação dos meios e conteúdos ao potencial expressivo da linguagem artística (PERES, 2019).

O uso da linguagem do audiovisual enriquece de forma significativa o processo de aprendizado nas aulas de artes ao expor aos alunos que existem similaridades de uma leitura visual entre meios midiáticos de entretenimento e obras de arte pictóricas. Essa associação dos conteúdos imagéticos do plano de aula a imagens do cotidiano e lazer dos alunos contribui para uma assimilação mais significativa de uma apreciação/contextualização artística (BUGARIN; MARTINS, 2020).

O filme de Majewski, por exemplo, pode ser visto como um ótimo exemplo de material didático em um plano de aula sobre o Renascimento Flamengo. Seu foco pouco narrativo e mais expositivo contribui para uma apreciação mais contemplativa tal qual a fruição estética de um espectador diante de uma pintura. Ao ser exibido em aula a obra audiovisual pode realçar as interpretações e significações acerca de uma obra pictórica, pois possibilita que os alunos se apropriem do conhecimento abordado por meio de formas de leituras de mundo as quais eles já estão habituados e podem as ter como comuns ao seu cotidiano, sendo assim mais substancial (FERNANDES, 2015). 

O moinho e a cruz” amplia e desenvolve em seus espaços cenográficos todo um mundo que vai além da moldura do quadro de Brueghel.  Os alunos-espectadores reconhecem aquele universo que corresponde a uma pintura do século XVI como um espaço-tempo concreto, por mais distante que esteja de suas realidades. O dispositivo fílmico aqui possibilita a identificação de um espaço solidificado de forma perceptiva e sensível aos seus aspectos criativos indo bem além de uma noção básica de realismo. O filme proporciona a fruição de um mundo o qual os espectadores sentem-se envolvidos e podem perceber leituras de diversas camadas dos espaços expostos em si (APARÍCIO, 2019).

Podemos perceber que as cenas que elaboram e apresentam o processo de criação do quadro “A Procissão para o Calvário” e suas potenciais leituras sensíveis podem ser analisadas como geradoras de ressignificações e múltiplas leituras que enriquecem os potenciais visuais e simbólicos da obra original (CICHELA, 2018).

Para Benjamin, o Cinema tem uma vantagem em relação à Pintura, onde no público a crítica e a fruição da obra não se separam. A exibição de um filme, visto como um espetáculo contribui no prazer do seu desfrute pelo espectador, deixando-o mais propenso a uma postura positiva em relação a uma obra. Um vínculo mais complexo de se estabelecer entre este mesmo espectador e a obra em si mesma (1985).

Técnicas de reprodução visuais como o cinema podem modificar o sentido de obras de Arte do passado mudando a forma como o espectador percebe, entende e dá importância à obra que está sendo apresentada, por aspectos como a contextualização individual de cada espectador e sua imersão na leitura da mesma (id. ibid.).

Os filmes que apresentam pinturas e obras de artistas ou movimentos artísticos podem ser encaradas não apenas como uma releitura ou uma simples homenagem, mas uma forma de renovar e evocar a importância de pinturas e seus autores a plateias de espectadores por meio de significações e ressignificações derivadas de uma espectatorialidade cinematográfica (CICHELA, 2018).

5. Cinema e educação – Integrando alunos ao conhecimento

Que professor nunca passou pela experiência extremamente desanimadora de planejar uma aula com uma grande expectativa para chegar no dia e ouvir o seguinte questionamento dos alunos: “Para que eu tenho que aprender isso?”. Ao invés de encararmos essa questão como algo desestimulante podemos nos sentir incitados a repensar e reestruturar certas práticas didáticas para conseguir atingir cada vez mais os alunos de forma que o conhecimento passe a ser mais significativo na construção de sentidos de um currículo possibilitando proximidades e discernimentos constantes na sala de aula (SALES; AXER, 2014).

Apesar de frequentemente o audiovisual ser apontado como ferramenta de imensa importância pedagógica ele acaba sendo adotado mais como um meio auxiliar e poucas vezes como cerne do aprendizado.

Vivemos em um mundo onde existe um grande predomínio da produção de imagens na cultura. Se a sala de aula é um reflexo da sociedade, como manter os alunos alheios a formas tecnológicas e midiáticas de transmissão de informação e conhecimento? As formas como eles se relacionam com a informação visual estabelece vínculos e estimula apropriações de significados e percepções de forma mais profunda e imersiva que apenas a leitura de uma reprodução fotográfica de uma obra (FERNANDES, 2015).

Pieter Brueghel, o velho viveu e trabalhou em uma época que predominava as pinturas de representações heróicas, retratos de nobres e burgueses. Ele distanciou-se dessa primazia para retratar o cotidiano das pessoas comuns. No caso do quadro “A Procissão para o Calvário” ele insere uma passagem da bíblia no seu presente espaço-tempo como uma forma de ligar este acontecimento à realidade dos espectadores de forma mais concreta. Brueghel retrata um fato na vida de Cristo como um fato comum da sua época (MESTRES, 1978).

Esse caráter integrativo da obra de Brueghel que fazia e faz os espectadores envolverem-se de forma mais efetiva durante a apreciação de suas obras representa a contemplação sincera que instiga as pessoas a entenderem melhor o que está acontecendo naquele contexto. Podemos associar isto às diversas práticas pedagógicas que vêm sido desenvolvidas no intuito de promover um envolvimento maior dos alunos com seu aprendizado de forma mais múltipla e concreta em relação a suas percepções (MILLER, 2014).

O filme de Lech Majewski usa recursos cinematográficos e tecnológicos que ressignificam os modos de leitura e apreciação da obra tema do filme. Os alunos podem perceber por meio destas reconstruções visuais e pontos de vista remodelados uma integração mais profunda com suas realidades em meio a um universo imagético atual que se constitui como tão repleto (LOPES, 2019).

Assim como as obras de Brueghel ofereciam uma imersão que pode ser sentida como uma coautoria por parte dos espectadores, o filme de Majewski estimula a mesma sensação ao construir pacientemente todas a atmosfera da sociedade da época em que o quadro foi realizado. Toda a tecnologia empregada na elaboração da atmosfera fílmica potencializa a linguagem pictórica da pintura (id. ibid).

Pode-se através destes processos sensíveis de colaborações entre dois meios artísticos ao mesmo tempo distintos e tão próximos almejar alcançar as realidades, preocupações e vivências dos alunos e os meios que os cercam a fim de desenvolver um ambiente escolar mais lúdico e estimulante (MILLER, 2014).

“O moinho e a cruz” abrange a temática do uso de novas abordagens metodológicas no ensino de artes de forma que as ferramentas pedagógicas estejam mais alinhadas à realidade da atual juventude e no processo de sua própria formação de uma identidade visual, neste caso pelo uso do cinema na educação. 

A linguagem metalinguística empregada no filme onde a criação de uma pintura pelo pintor é abordada como a criação de planos e cenas de uma obra audiovisual pelo diretor pode remeter a uma leitura atualizada da criação visual por parte dos alunos. O dispositivo cinematográfico pode ser visto como a modernização da criação plástica de uma narrativa (FERNANDES, 2015).

Figura 2 – Pieter Brueghel, o velho (Rutger Hauer) faz esboços enquanto observa camponeses no filme “O moinho e a cruz” – Fonte: Mubi.

6. Considerações finais

Geralmente quando professores de artes ponderam o uso de filmes como ferramenta de apoio didático o que vem à mente são documentários pedagógicos e cinebiografias de pintores que detalham diversos fatos históricos de suas vidas.

Apesar de ser importante conhecer detalhes mais dramáticos sobre a vida dos artistas, podemos ver isto como certa distração sob a ótica de um contato inicial com a obra de determinado pintor. É interessante que uma apreciação introdutiva de uma obra ou conjunto de obra seja mais enfatizado nas características estéticas e visuais a fim de valorizar mais a interpretação individual dos alunos (BUORO, 2001).

Para isso existe uma grande variedade de filmes que expandem e (ou) recriam obras de arte ou estilos artísticos de tal forma que suas fruições podem ser apreciações amplificadas destas e contribuir para novas e diversificadas leituras e interpretações inclusive de forma mais significativa e envolvente.

O moinho e a cruz” é um filme que se encaixa nesta hipótese. Ao realizar a recriação de um quadro do Renascimento Flamengo, Majewski ressalta o cinema como uma forma de arte genuína e que possui uma relevância cultural, educacional e social ao enfatizar-se a importância do meio cinematográfico como forma de arte e de transmissão de cultura de forma original e única, graças à sua abrangência e aspecto fruitivo. 

Seu filme busca esmiuçar a linguagem visual de Brueghel por meio de uma atualização do dispositivo de imersão na narrativa pictórica com o propósito de revitalizar seus significados para plateias contemporâneas.

É plausível então que reflitamos como este entendimento pode ser empregado como forma de despertar o interesse de alunos da educação básica em aprofundar-se e perceber alguma significância da apreciação de pinturas da história da arte por uma mediação do cinema.

Podemos assim apontar o cinema como um importante e acessível meio de transmissão de mensagens, conhecimentos e valores por juntar fenômenos de diferentes aspectos sociais, e evitar que o mesmo, se mal aproveitado, torne seus alunos-espectadores meros consumidores de um mercado audiovisual, sem absorver nada novo ou construtivo. Aponta-se então um caminho relevante para o uso do cinema na educação.

É interessante perceber como podemos vincular partes do cotidiano dos alunos os quais eles não associariam normalmente ao ato do aprendizado de forma a lhe dar uma maior consistência e relevância de acordo com as necessidades e afinidades de cada turma, série e escola em especial.

7. Referências bibliográficas

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8. Notas

  1. Disponível em: <https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Pieter_Bruegel_d._%C3%84._007.jpg> Acesso em: 13 de jul. 2020. ↩︎

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