1. Introdução

Desde pequeno, eu sempre tive fascínio pelo terror. Lia consistentemente romances assustadores e assistia produções que não eram apropriadas para minha idade. Essa minha predileção pelo gênero influenciou, sem sombra de dúvidas, a minha trajetória acadêmica. Fiz parte de um cineclube universitário destinado a filmes de terror nacionais; contribuí (e continuo contribuindo) na realização, desde a curadoria até a produção, de festivais destinados a esse filão (enfocando obras nacionais e internacionais, animações e live actions, universitários e comerciais, longas e curtas-metragens etc); e minha primeira produção audiovisual foi um curta de terror que, sem que eu soubesse, carregava os elementos de interesse que iriam nortear minhas pesquisas e narrativas futuras: infância, terror e morte. Contudo, foi somente quando adentrei na sala de aula que percebi uma relação muito curiosa entre a infância e esse gênero audiovisual. 

A minha primeira experiência docente foi com uma turma do primeiro ano do ensino médio do Colégio Estadual Guilherme Briggs, localizado no município de Niterói. A minha proposição inicial, logo após as aulas inaugurais sobre linguagem audiovisual, foi relacionada ao terror. A turma rapidamente dispensou a ideia. Entre os comentários ouvidos por mim estavam “é muito assustador”, “não gosto de violência” e “não acho divertido”. Ao perguntar a quais filmes os educandos se referiam, eles mencionaram desde franquias como Jogos Mortais e Invocação do Mal1 a personagens como Chucky, Jason e Annabelle2. Em comum dentre todos os exemplos citados, em sua maior parte, é a violência presente nos filmes e o fato de os jovens (teoricamente)3 não serem o público-alvo dessas produções. Essa primeira reação ao terror criou um receio de levar o gênero novamente para sala de aula.

Fim da primeira experiência.

Anos mais tarde, junto ao Bernardo Campbell, companheiro de licenciatura, participei do projeto Cinema no Hospital4 que propunha a exibição de filmes e atividades relacionadas a produção audiovisual nas enfermarias pediátricas e geriátricas do Hospital Universitário HU/UFRJ — nossa preferência foi pela área pediátrica. Lá, a cada semana, encontrávamos pacientes diferentes (vide que a enfermaria por várias razões possuía uma rotatividade quase diária) e perguntávamos para as crianças interessadas (algumas abatidas demais pelos tratamentos a quais eram submetidas) se elas estavam mais animadas em assistir ou produzir filmes. O próprio projeto possuía um catálogo de produções escolhidas previamente pelos coordenadores do Cinema no Hospital, denominado cardápio de filmes, onde eram listadas todas as opções de escolhas. Contudo, as crianças, menores do que os jovens do ensino médio presentes na minha primeira experiência como educador, pediam constantemente para a gente disponibilizar filmes de terror — ausentes na curadoria do cardápio de filmes.

Nas primeiras vezes, pensei se tratar apenas de uma preferência particular de uma ou outra criança. Contudo, conforme os pedidos continuaram acontecendo por pacientes diferentes, mas de idades aproximadas, comecei a pensar: quais seriam os filmes de terror apropriados para essa idade? De fato, existiam filmes de terror apropriados para o público infantojuvenil? Pensei bastante nessa questão até que, em um dos encontros,

[…] Pedro Alves, colega do curso de Cinema e Audiovisual (Licenciatura) que acompanhava o projeto em alguns encontros, pôde levar os curtas-metragens de terror que ele já havia sugerido anteriormente. Exibiríamos os filmes de terror, como as crianças haviam pedido insistentemente e, coincidentemente, todos os filmes eram em animação (FERREIRA, p. 23).

Seguindo a essência da curadoria pregressa, optamos por filmes nacionais e de censura livre. Através dessas premissas, exibimos “Alma” (2011) e “Vinil Verde” (2004). Estávamos com receio de exibir ambos os filmes, principalmente Vinil Verde, por conta de sua relação com a morte, mas, para nossa surpresa, as crianças “não sentiram medo ou nada parecido” (ibid., p. 24). Após essa incursão pelo terror no hospital, não faltaram pedidos de educandos por filmes do gênero durante a minha trajetória, seja através em oficinas ou, até mesmo, pelos educandos da Educação Infantil do Colégio Universitário Geraldo Reis, localizado no Campus do Gragoatá em Niterói. 

Existia uma relação entre a criança e o terror que clamava por ser pesquisada e, através tanto dessa percepção possibilitada a mim pelas experiências em salas de aula quanto a minha paixão pelo gênero, eu decidi por me dedicar a ela durante a minha dissertação. 

2. Terror e infância

O terror, assim como o próprio estudo dos gêneros audiovisuais (ALTMAN, 1999; MOINE, 2008), não possui um consenso estabelecido entre os seus pesquisadores. Das variadas leituras possíveis, podemos destacar duas conceituações pertinentes para pensarmos o terror e a infância: a figura do monstro como impura e ameaçadora (CARROLL, 1999); e o maravilhoso (TODOROV, 2010). 

Para Carroll (1999) as narrativas ficcionais de terror, para serem reconhecidas como tais, acionam prioritariamente duas características substanciais – o medo e a repugnância – que se concretizam na figura do “monstro”, que é onipresente nas produções de terror. O monstro normalmente é considerado, pelos personagens, tanto impuro, ou seja, ele viola os esquemas de categorização cultural, quanto ameaçador; se “for considerado apenas potencialmente ameaçador, a emoção seria o medo; se só potencialmente impuro, a emoção seria a repugnância” (CARROLL, 1999, p. 45).

Todorov (2010), mais interessado em esquematizações para o entendimento do fantástico, conceitua tanto o maravilhoso, quanto o fantástico-maravilhoso. O maravilhoso define narrativas cujos eventos sobrenaturais são encarados com naturalidade pelas personagens. Uma conceituação que se distancia dos requisitos apontados por Carroll do que seria o terror, já que ignora o aspecto da impureza, mas que se aproxima de outro conjunto de obras muito presentes no cotidiano infantil: os contos de fadas. Destaca-se aqui que os contos de fadas, originalmente, eram destinados ao público adulto — frequentadores dos salões franceses — e que já possuíam em sua estrutura muitos elementos do terror: de criaturas monstruosas a violência explícita.  

Analisando o terror no cinema, nota-se a presença da puerícia através de personagens infantis mesmo que tais obras não possuíssem em vista esse público. No princípio, essas figuras atuavam como a representação da inocência e pureza, o que devia ser protegido — muito em decorrência da própria visão corrente sobre a infância em voga na época e de normais exteriores às próprias produções como, por exemplo, o Código Hays5. Existiu uma mudança de tropo durante a década de 1950 com a proliferação do arquétipo criança-vilã sendo a menina Rhoda, antagonista de Tara Maldita (Mervyn LeRoy, 1956), apontada como uma das precursoras desse modelo (LENNARD, 2014).

3. Terror infanto-juvenil

Para além de não ser muito aceito, a história nos mostra que a aproximação entre o terror e o público infantil era repudiada pela sociedade. Podemos perceber isso ao analisar a trajetória da EC Comics, editora que ficou conhecida por seus quadrinhos de horror (Contos da Cripta (1950-1955), Weird Fantasy (1950-1953), Weird Science (1950-1953), Shock Suspenstories (1952-1955) etc). Suas histórias possuíam todo o tipo de horror e monstruosidades: cadáveres em decomposição, crianças que matavam os pais, envenenamentos etc. Por ser um grande sucesso de vendas entre os jovens, as publicações passaram a preocupar pais e educadores por conta de suas doses massivas de sangue, violência e erotismo. Uma grande união civil se formou contra esses quadrinhos entre diferentes setores da sociedade, incluindo outras grandes editoras que se sentiam ameaçadas pela venda massiva das revistas de terror. O Senado americano resolveu ceder a pressão de críticos fervorosos, entre os integrantes o psiquiatra Frederic Wertham, e criou uma subcomissão investigativa da indústria dos quadrinhos em 1953. 

Em 1954, Frederic Wertham lançou o livro Seduction of the Innocent, onde advogou que os quadrinhos, especialmente os de terror, eram os responsáveis por desvirtuar a juventude. Após esse lançamento, instaurou-se um código de ética com uma série de restrições — que partiam desde, por exemplo, o uso das palavras “terror” e “horror” nas capas. Até o começo de 1955, todos os títulos de horror da EC saíram de circulação e muito dos monstros dos gibis foram remanejados para a ficção-científica ou fantasia — distanciando-os da “realidade”. 

Algo semelhante ocorreu no cinema. Na década de 1980, após o lançamento de Indiana Jones e o Templo da Perdição (Steven Spielberg, 1984) e Gremlins (Joe Dante, 1984), uma comoção aconteceu na sociedade estadunidense da época. Ambas as produções continham sequências violentas e assustadoras — por mais que possuíssem classificação livre e serem um sucesso entre o público jovem. Essa aflição em relação ao conteúdo das obras e o público que as assistia devia, em grande parte, ao vácuo que a classificação indicativa possuía à época. Fez-se necessário a criação de uma nova classificação indicativa, a PG-13 (não recomendado para crianças menores de 13 anos), e com isso o audiovisual presenciou o desenvolvimento de um improvável subgênero: o terror infanto-juvenil (ANTUNES, 2014; LESTER, 2016). 

O interesse de crianças e pré-adolescentes em produções do gênero, assim como a existência de obras de horror que já flertavam com o direcionamento a essa faixa-etária, antecedeu a esse período — destacando-se, por exemplo, a animação televisiva Scooby-Doo, Cadê Você? (1969-1970). Entretanto, essa restrição etária ofereceu aos criadores audiovisuais a oportunidade de aprimorar o subgênero com algumas produções de terror produzidas especificamente com essa audiência mais nova em mente. Assim como fez os grandes estúdios identificarem uma chance financeira de realizarem produções de terror com um público mais abrangente que os jovens-adultos, consumidores frequentes.

Como exemplificado anteriormente, as incursões nesse subgênero não se limitaram ao cinema ou a produções live action existindo numerosos exemplos a partir da própria década de 1980 como O Caldeirão Mágico (1885) e Os Treze Fantasmas do Scooby-Doo (1985), versão da animação que investiu em referências mais diretas ao horror, ou contemporâneos como ParaNorman (2012) e Frankenweenie (2012) 一 todos possuindo variados graus de aceitação de público e crítica.

Stephen King propõe que as crianças seriam “o público perfeito” (KING, 2007, p. 122) fundamentando seu argumento principalmente na força imaginativa que elas possuem e que, para ele, iria ser o elemento que as fariam capazes de chegar a uma superação do medo a partir do seu próprio entendimento. As obras de terror infanto-juvenil, por mais complexas que sejam de se caracterizar, possuem alguns elementos recorrentes que podem ser identificados. O mais interessante seria a aplicação dos conceitos toxificação e desintoxificação feitas por Carroll (1999a) ao refletir sobre as aproximações entre horror e humor.

Quando o medo e a repulsa são misturados em imagens que provocam horror, o que é repulsivo se torna ainda mais assustador à sua própria maneira. Chame esse processo de toxificação […] quando o medo é subtraído de imagens potencialmente horríveis – como acontece em muitas comédias – as imagens se desintoxicam (CARROLL, 1999a, p. 158, tradução nossa)6.

A toxificação de elementos em determinadas sequências, assim como a subtração do medo e o decorrente alívio de tensão, são constantes e constituem artifícios narrativos basilares em filmes de terror infantojuvenil. Uma mescla constante entre terror e humor que fazem tais obras receberem diversas catalogações de gênero entre família, aventura e, mais comumente, fantasia.

O mais importante ao se analisar tais produções é evitar a todo custo as encaixar em elementos apontados por estudos de terror direcionados ao público adulto, considerando que nenhum deles as abarca. Faz-se necessário uma nova forma de análise dedicada especificamente a esse tipo de narrativa.

4. Terror como narrativa iniciática

Ao analisar produções audiovisuais protagonizadas por personagens infantis, o pesquisador José de Souza Miguel Lopes cunhou o termo narrativas iniciáticas. Para ele, esse tipo de ficção

baseia-se numa relação exterior/interior, quer se trate do percurso de um personagem que entra no mundo dos homens (como se a criança não fizesse inteiramente parte dele ou nele devesse conquistar o seu lugar), quer se trate da descoberta de uma outra vertente, que seria um caminho iniciático direcionado para um melhor conhecimento de si, possibilitando encontrar uma entrada para o auto-conhecimento. (LOPES, 2008, p. 26)

Partindo dessa definição, podemos nos indagar: é proveitoso encarar produções de terror infanto-juvenil sob a ótica das narrativas iniciáticas? Pensando o termo como uma das subdivisões das histórias de amadurecimento (coming of age, no original), onde acompanhamos um jovem passando por eventos-chaves para a sua jornada em direção a fase adulta, podemos destacar a importância desse tipo de história para o público infantil. Tanto esse público quanto essas narrativas passam em seu cerne por um encadeamento de “primeiras vezes”. Para além disso, as produções de terror infanto-juvenis tratam sobre temas complexos como, por exemplo, a morte por vias fantásticas.

O terror aqui analisado surgiria dessa forma como uma narrativa iniciática de mão-dupla. Os protagonistas dessas obras, geralmente crianças e pré-adolescentes, transpassam e superam medos que os oferecem mais experiência. Contudo, ao contrário da tradicional narrativa iniciática, direcionada a uma platéia adulta com uma visão mais nostálgica dessa etapa da vida; os filmes de terror infanto-juvenil têm em vista um público com idade próxima a de seus personagens principais. Por conta disso, tratam de assuntos e medos ainda experienciados por seus espectadores através de uma abordagem adequada e oferecem a oportunidade do enfrentamento de medos com o distanciamento possibilitado por essa forma de entretenimento.

5. Considerações finais

Seja analisando as transformações de elementos característicos do gênero nas produções destinadas ao público infantojuvenil (SILVA, 2020) ou a maneira com que esse conjunto de produções foi popularizado por outras mídias para além do cinema propriamente citado (SILVA, 2021), um aprofundamento nas pesquisas entre o terror e a infância nos oferece várias vertentes de análise. Uma das mais potentes, especialmente para educadores, é a compreensão de que essas narrativas possuem atravessamentos na rotina de educandos e que também possibilitam novos métodos para se tratar do medo, sentimento universal e nem sempre fácil de enfrentar.

6. Referências bibliográficas

ALTMAN, Rick. Film/genre. British Film Institute, 1999.

ANTUNES, Filipa. Children Beware!: Childhood, Horror and the PG-13 Rating. McFarland, 2020. BELLANTONI, Patti.

AUSTIN, Bruce A. The influence of the MPAA’s film-rating system on motion picture attendance: A pilot study. The Journal of Psychology, v. 106, n. 1, p. 91-99, 1980.

CARROLL, Noël. A filosofia do horror ou paradoxos do coração. Campinas: Papirus Editora, 1999.

CARROLL, Noël. Horror and humor. The Journal of Aesthetics and Art Criticism, v. 57, n. 2, p. 145-160, 1999a.

FERREIRA, Bernardo Campbell Braga. CINEMA NO HOSPITAL? Práticas pedagógicas com o cinema e o audiovisual no espaço hospitalar. TCC (Licenciatura em Cinema e Audiovisual) – Instituto de Arte e Comunicação Social, Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2018.

HOLZBACH, Ariane Diniz; SILVA, Pedro Henrique Alves. De Branca de Neve a Gremlins: a instituição do audiovisual de terror infanto-juvenil. 30º Encontro Anual da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação (COMPÓS). São Paulo: Compós, julho de 2021. No prelo.

KING, Stephen. Dança macabra. Suma, 2007.

LENNARD, Dominic. Bad Seeds and Holy Terrors: The Child Villains of Horror Film. SUNY Press, 2014.

LESTER, Catherine. The Children’s Horror Film: characterizing an “impossible” subgenre. The Velvet Light Trap, n. 78, p. 22-37, 2016.

LOPES, José de Sousa Miguel. O cinema da infância. Revista Txt: Leituras Transdisciplinares de Telas e Textos, v. 4, n. 7, p. 22-35, 2008.

LOVECRAFT, Howard Phillips. O horror sobrenatural na literatura. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora, 1987.

MOINE, Raphaëlle. Cinema Genre. Blackwell Pushing, 2008.

SILVA, Pedro Henrique Alves. Perdidas no Desconhecido: O terror infanto-juvenil em O Segredo Além do Jardim. In: I Seminário AnimaMídia, 2020, Niterói. Disponível em:

<https://pesquisaanimamidia.files.wordpress.com/2020/08/perdidos-no-desconhecido-o-terror-infanto-juvenil-em-o-segredo-alem-do-jardim-pedro-alves.pdf>. Acesso em: 04 jul. de 2021.

TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 2010.

7. Notas

  1. Ambas as franquias têm classificação indicativa “R”, ou seja, menores de 17 anos são proibidos de assisti-los no cinema sem que estejam acompanhados pelos responsáveis. ↩︎
  2. Interessante notar que os personagens citados possuem em maior ou menor grau proximidade com a realidade infanto-juvenil: Chucky e Annabelle mais perceptivelmente por serem bonecos/brinquedos, objetos presentes no cotidiano desse público-alvo, e Jason por toda sua história pregressa aos filmes envolvendo a sua própria morte ainda criação por conta da omissão de cuidado dos mais velhos. ↩︎
  3. Para maiores informações sobre como grandes estúdios usaram crianças em teste de mercado para filmes violentos acessar: <https://www.nytimes.com/2000/09/27/us/how-the-studios-used-children-to-test-market-violent-films.html>. Acesso em: 02 de jul. de 2021. ↩︎
  4. Para maiores informações acessar: <https://cinead.org/cinema-no-hospital/>. Acesso em: 02 de jul. de 2021. ↩︎
  5. Para maiores informações ler AUSTIN (1980). ↩︎
  6. No original: “For when fear and disgust are mixed in horror-provoking imagery, what is disgusting becomes additionally fearsome in its own way. Call this process toxification. (…) when fear is subtracted from potentially horrific imagery-as happens in much comedy-the imagery becomes detoxified”. ↩︎

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