1. Introdução
Fabián Núñez (2011) observa questões norteadoras para pensarmos o cinema na América Latina, incluído aí o Brasil. O autor nos convida a pensar a prática material da realização cinematográfica em sua intersecção com a criação da estética visual. O interesse discursivo, mas também empírico, apontado por Núñez, nos remetem a uma ligação prática entre a criação e os modos de fazer cinema. Ambas são eminentemente e imanentemente técnicas, mas que se desdobram também de modo estético e discursivo. Se, dentro desta perspectiva, pensarmos que são os cineastas brasileiros e latino americanos que assumem e corporificam o papel de formuladores de novas estéticas e novos modos de produção, ao se engajarem no cinema, é por meio de um olhar para este sujeito que nossa reflexão sobre o cinema vai se debruçar. Trata-se de um sujeito criador, dominante, desejante e falador das técnicas do cinema. Tais técnicas podem ser concebidas como saberes/poderes relativos tanto aos discursos ou técnicas narrativas, discursivas e imagéticas; mas também a práticas empíricas concretas. Tais relações com fatores extra cinematográficos apontadas, de fato subsidiam uma teoria possível para o cinema latino americano, como cinema que se quer anticolonialista (ou decolonialista). É o descentramento em relação ao campo cinematográfico que marca a contribuição latino americana a teoria e as inovações do cinema:
“As teorias cinematográficas latino americanas são reflexões associadas à prática. Eis uma de suas singularidades. São, em geral, cineastas teóricos, que formulam não apenas uma nova estética, mas também, em alguns casos, um novo modelo de produção. Portanto, descrentes da função crítica cinematográfica de seus países, ocupam esse papel de reflexão fora dos meios tradicionais, assim como fora da academia, diferente de sua contemporânea cine-semiologia.” (NÚÑÉZ,2011. P.61)
É a partir desta perspectiva que pensamos a formação de sujeitos, que, enquanto alunas e alunos, de escolas ou de projetos sociais de cinema, se encontram com essa perspectiva de cinema latino americano possível, caracterizado pela relação extra-cinematográfica, ou seja, que escapa às possibilidades criativas e imaginativas, mobilizadas em exercícios formativos, práticos, de mão na massa, com luz, câmera e ação!
Alain Bergala (2008) é este que defende o cinema enquanto arte, ou seja, como experiência de “outra natureza”, que não a do curso localizado na escola, no curso técnico ou na universidade – que acorrenta os saberes hoje formalizados nos currículos educacionais. Para este autor, se trata de produzir o cinema como arte no espaço educacional como experiência “cuja alteridade radical os alunos devem experimentar (BERGALA, 2008, p. 31)”, e não apenas contemplar, ler ou refletir sobre. Para Bergala o cinema só o é enquanto fazer prático. Trata-se então de pensar no cinema enquanto possibilidade de criação, ou seja, que envolve o engajamento enquanto espectador atento, mas também como experiência de participação nas tomadas de decisão e nos problemas processuais que constituem uma obra cinematográfica. Os filmes são marcas de gestos de criação (BERGALA, 2008, p. 34). Não como objetos de leitura, decodificáveis, mas, estruturas onde cada plano – que pode ser experimentado e questionado cinematograficamente, ou ser realizado na prática – permite compreender um pouco do seu processo de criação.
Cabe pensar também que muito do que se compreende hoje em dia por cultura, comunicação e até mesmo conhecimento é manifesto em formato audiovisual. Um segundo ponto de vista é o de que as experiências com o cinema e o audiovisual estão intimamente e são expressivamente influenciadas pelo desenvolvimento massivo das mídias digitais em nossa era. Atualmente a mídia digital está expressivamente ligada à presença do computador e dos celulares nas mãos, casas, ambientes de trabalho, escolas, universidades e salas de aula das grandes cidades brasileiras e do mundo (SANTAELLA, 2018, p.138). Em terceiro lugar, nota-se também dentro deste desenho histórico no qual nos situamos, o surgimento e popularização da Internet, como mídia virtual, que permitiu o rearranjo em rede das formas de comunicação contemporâneas. O cinema não saiu incólume das transformações sócio culturais recentes. Neste sentido, mídias analógicas, mídias digitais e virtuais convergem, e acabam por nublar os limites entre as definições clássicas de cinema e audiovisual. O que é o cinema especificamente? O que é o audiovisual? Não cabem respostas fáceis e óbvias a estes questionamentos. Mas é importante tê-los em mente quando se trabalha com cinema e educação.
2. Reflexões sobre o uso do dispositivo Minuto Lumiére.
A partir das perspectivas apresentadas – importância da relação produção criação, cinema enquanto arte e contexto do mundo digital – entendemos a importância e a fecundidade dos dispositivos cinematográficos como instrumento de criação artística. Portanto devemos pensá-los como estratégias de criação no audiovisual contemporâneo que já são amplamente compreendidas e dignas de atenção. Ao trabalharmos os dispositivos como instrumentos que viabilizem a criação artística, pensamos neles como componentes para se referir à disposição dos elementos constituintes de uma obra, importantes sobretudo porque são manipuláveis e transformáveis, ou seja, constituintes do espaço privilegiado no qual os estudantes-criadores atuarão.
Trata-se aqui de discutir a noção de dispositivo como estratégia narrativa capaz de produzir acontecimento na imagem e no mundo. Pensar de que forma as novas tecnologias do audiovisual são organizadas em dispositivos de criação é pensar também o estatuto da imagem contemporânea, a possibilidade e o sentido da produção de novas imagens (MIGLIORIN, 2005, p. 1).
Falar em dispositivos cinematográficos implica fundamentalmente em pensar processos de criação e interação com imagens. Processos estes que entendemos que devem colocar os interlocutores no papel de criadores, o que permite de fato pensar a criação em si. Sendo esta a condição necessária para que ocorra de fato uma experiência sensível de si e do mundo, ou seja, para que o cinema seja de fato um potencial inventor de formas de engajamentos no compartilhamento sensível de ideias, conceitos, percepções de mundo e conhecimento.
Em diversos contextos de trabalho empenhamos o dispositivo conhecido como “Minuto Lumiére” como o primeiro passo para se pensar o cinema como ferramenta educativa. De fato, se mantermos a concepção do trabalho com o cinema no formato de curso extensivo, no qual abordaremos as origens do cinema na história da humanidade, faz sentido alocar tal dispositivo junto a explanações sobre o cinematógrafo, seu tamanho e pouca mobilidade, a ausência da captação sonora, bem como os limites físicos temporais das películas.
Acontece que a imersão dos estudantes/alunos no mundo dos vídeos, e da cultura digital em geral, parece antecipar e às vezes até mesmo embaralhar alguns conceitos que se pretendem nesta proposta de dispositivo. Atualmente, não é uma novidade nem uma dificuldade se fazer vídeos de um minuto, ou mais. Mesmo sem movimento algum. A imposição do plano único, com ou sem movimentos de câmera, já é largamente praticada em postagens em redes sociais. Entendemos portanto que o Minuto Lumiére sugere pela própria prática uma oportunidade de reflexão sobre os atos de filmagem, sobre a mise en scene, do lado de cá e de lá da câmera. O que hoje, não podemos ser ingênuos, já é bastante difundido culturalmente em meio à ambiência digital e virtual que nos cerca.
O que se deve ter em vista é que o Minuto Lumiére, como dispositivo cinematográfico, também é um dispositivo “foucaultiano”. Suas “regras” discursivas possibilitam incorrer no risco de constranger olhares. Estabelecer um plano fixo, por exemplo, não permite que se façam vídeos ultrarrápidos que podem soar ininteligíveis, mas que no fundo significam algum olhar possível habitando aquele sujeito que filma. Pensamos aqui na possibilidade de um caminho que talvez se abrisse para o entendimento objetivo e racionalizado do que é um plano cinematográfico (que é histórico e discursivo portanto) pela sua antítese.
Os dispositivos cinematográficos podem fazer com que os sujeitos reflitam sobre suas imagens, sobre si e sobre o mundo. Fazem com que eles ou elas desenvolvam suas próprias noções do que gostaram ou do que não gostaram em um filme ou em um processo, e os porquês destas sensações. Vemos aí uma potencial forma de trabalho que faz com que os envolvidos se tornem educadores de si mesmos. Abre-se uma infinidade de diferentes percepções, e, consequentemente, daquilo que as regras de linguagem cinematográfica convenceu-nos a chamar de “erros”. E para, além disso, podemos daí refletir também sua construção como erro visual ou estético. As possibilidades são infinitas e os sujeitos passam a inventar reflexões com o material que eles e elas mesmos criaram quando trabalham com esse modo de fazer cinema. O cinema livre como arte, mas pensado como educação.
As diferentes e possíveis formas de abordar e trabalhar com o Minuto Lumiére, revelam em algum momento o movimento de uma lógica de “revelação”, onde os planos, movimentos de câmera e cortes (estipulados pela “linguagem do cinema clássica” de Marcel Martin, Harry Watts, Walter Murch entre outros) são apresentados em sua visualidade cinematográfica, mas para além disso, são apontados nela discursivamente. O entendimento do discurso vem “de fora” para revelar até então o que estava contido “dentro” do cinema. Assim apontamos a linguagem clássica como modo de fazer, mas sempre tentando lembrar que ela enquanto forma não é única, nem a “correta”, mas a que foi imposta e estabelecida como social e visualmente inteligível. Reprodução técnica que se firmou enquanto discurso cinematográfico. Essa deve ser supostamente a revelação. De um olhar que já se tinha, mas que ainda não era compreendido. Esse dispositivo pode ao mesmo tempo estimular um rompimento a partir do entendimento do que é a linguagem hegemonizada no cinema, ou por outro lado, estimular mais uma forma de reprodução, no intuito de sinalizar um domínio dessa linguagem corrente. Ambas são válidas. Porém esse método exige uma carga mais professoral de atuação do oficineiro ou da oficineira, no sentido de que eles devem carregar as amostras de sentido, para que as imagens não exerçam a sedução de se copiar para agradar. É mais legal inventar e criar com a imaginação.
Uma consideração ainda que devemos tomar é sobre o cinema enquanto processo. Um minuto Lumiére isolado, feito para ser assistido e apagado, como mero exercício técnico parece trair a arte do cinema. Pensar em cinema é pensar em filmes, obras construídas, e não planos racionais isolados que um dia serão somados numa contabilidade visual. Os exercícios são sim fundamentais, o que não os limita enquanto obra.
3. Educadores e educadoras nas pedagogias do cinema.
Saviani (1996) propõe uma muito difundida e reconhecida categorização de saberes para pensarmos o fenômeno educativo no Brasil. Propomos um exercício reflexivo que confronta tal categorização de saberes com as práticas de cinema em ambientes educacionais, o que sugere possibilidades primeiro sensíveis, depois teóricas e práticas, de diálogos entre as áreas. O cinema tem sido pensado muitas vezes em termos de técnicas propiciadas pelo domínio de certas habilidades, mas, como veremos a seguir, as reflexões educacionais contribuem para outros entendimentos destas práticas.
Um primeiro grupo de saberes que emerge da categorização de Saviani (1996) diz respeito aos saberes chamados por ele de atitudinais, porque contemplam comportamentos, atitudes e posturas ligados à prática educativa. A categoria diz respeito a vivência, e em certa medida também, aos aspectos de sociabilidade adquiridos e praticados por um sujeito em sua vida como docente e cidadão. São saberes que o educador e a educadora devem ter em conta quando executam seu trabalho, mas que não são exclusivos destes. Pontualidade, respeito, noção de justiça e equidade, por exemplo, são “saberes” importantes para qualquer profissão, para qualquer indivíduo em sociedade, não só ao educador do cinema. Mas eles contam muito para o cinema como arte em grupo. Assim a categoria aponta para um senso de sociabilidade em termos de grupos de pessoas, para pensar que o trabalho com cinema implica também e sempre em um processo de trabalho e socialização de ideias, imaginários; de abertura de subjetividades, de desejos e sonhos. Por muito que se conheça de visualidade ou de produções audiovisuais, elas são sempre possibilidades, umas mais, outras menos hegemônicas. Não há nunca uma forma perfeita e completa. Tais noções implicam sempre no respeito que se deve aos filmes resultantes e as produções realizadas em contexto educacionais por parte de todos e todas envolvidas. Não se deve exigir obras primas (apesar delas surgirem!) daqueles que estão iniciando suas práticas de cinema. Ao contrário, cabe nelas incentivar os criadores a construir sua beleza e seu senso estético. Até porque, como já dissemos, estes entendimentos são discursivos e históricos. Todo filme serve em educação, porque o filme deve ser lido sempre como sensibilidade, ideias e sonhos que são materializados, filmados e exibidos. Não como obras primas e blockbusters comerciais e vendáveis, como os muitos filmes que vemos cotidianamente, previsíveis e fáceis de serem lidos. Há que se ter cuidado para não arruinar todo o trabalho aqui.
Essa discussão se alinha com os saberes críticos-contextuais, próximo grupo de saberes na categorização de Saviani (1996), que estabelece a importância e a necessidade de uma compreensão sócio-histórica da prática educativa em diferentes contextos pedagógicos. Não seria diferente quando se trata de cinema. Deparamos-nos com esses desafios educacionais sempre que procuramos estabelecer leituras sobre as sociedades e as transformações ligadas às práticas difundida nas sociedades ocidentais (o cinema é uma delas), tencionando as possibilidades de se detectar necessidades presentes e futuras. Podemos pensar ainda em visualidades e olhares, no sentido de construções sociais subjetivas, e portanto daqueles que fazem ou assistem os filmes como sujeitos que passam a conseguir ver essas construções, para de fato, ou mais eficazmente senti-las, analisá-las e enfim brincar com elas em suas construções audiovisuais próprias.
A categoria dos saberes específicos constitui o grupo talvez mais facilmente identificável em termos de observações empíricas sobre os processos educacionais. Basicamente, porque essa classe de saberes diz respeito aos conhecimentos separados e compartimentados em disciplinas dentro de uma concepção escolar contemporânea, ou seja, que recorta e agrupa o conhecimento social. Tais separações disciplinares podem ser entendidas como elementos educativos essenciais à prática docente. E nesse sentido, aqui nos debruçamos sobre o cinema como prática coletiva, para, a partir desta coletividade, pensar as especialidades que as constituem. Falamos das funções de diretor(a), produtor(a), fotógrafos, contra-regras, atrizes e atores, maquinistas, iluminadores, maquiadores, e uma infinidade de classes possíveis. Porém, o cinema não deveria se prender a um conhecimento técnico socialmente estabilizado para ser trabalhado como educação. Afinal o cinema também o é do lado de cá da tela. Do lado das espectadoras e espectadores, dos cinéfilos, da crítica e da sociedade em geral. Sem se perder na necessidade de ser um técnico entendido de cinema, há caminhos possíveis para se trabalhar a arte, a criação, mesmo sendo leigo em filmagens e roteiros. Uma formação híbrida certamente seria o ideal, porque há sim especificidades do cinema, como mostram as reflexões sobre o processo de criação e montagem das e com as imagens. Em alguns casos, o que se sobressai é a falta de um entendimento do cinema-educação mais puxado para a montagem, o que acaba privilegiando só a produção de imagens, as filmagens, fato que ocorre muitas vezes em função de limitações técnicas ou autorais. Uma câmera ou um celular são de longe mais portáteis e acessíveis que um microcomputador com uma ilha de edição com software próprio para a tarefa.
Quando se trata da classe de saberes pedagógicos – ou seja, aqueles produzidos e sistematizados pelas ciências da educação em teorias educacionais que orientam o trabalho educativo – o cinema-educação já nos oferece algumas experiências bastante proveitosas na área. A noção de dispositivo cinematográfico nos é particularmente interessante porque ao desdobrá-la podemos pensar como espectadores de um filme frente as trajetórias, decisões e dilemas técnicos, éticos e estéticos das obras. Essa é a lógica de pensar em como foi fazer aquele filme. Mas, se quisermos hoje, podemos atuar diretamente numa lógica de produção cinematográfica utilizando matérias que estão literalmente em nossas mãos, existem vários materiais que orientam tal prática. O dispositivo enquanto saber pedagógico permite ao educador ou educadora que pretende trabalhar com o cinema uma artimanha de saber retirar dos filmes ideias de dispositivos, e na verdade nem retirar, mas inventar a partir deles jeitos de se fazer ou se pensar filmes. Estas brincadeiras podem ir além e fomentar propostas para novos modos de trabalho, seja em cinema, seja em outras áreas, como ciências humanas por exemplo. Talvez, o que importe em certa medida para uma prática eficaz de educação e cinema, não seja uma excelência em termos de saberes específicos, mas uma atenção nesse tipo de saber pedagógico, que possibilite ao educador vislumbrar os filmes, os dispositivos e o cinema em si como potentes espaços para invenções pedagógicas e criativas. Um exagero tecnicista de um sujeito que busca educar pelo cinema pode revelar um obstáculo na medida em que não permite a inventividade da experimentação em nome de cânones e regras preestabelecidas.
Por último, Saviani (1996) nos fala também dos saberes didático-curriculares, que dizem respeito – de forma muito inerente à atividade profissional de docência e da educação formal – à organização e realização da atividade educativa. É um domínio do saber-fazer, da dinâmica do trabalho pedagógico, ou seja, de toda a estrutura de tempo e espaço relativos ao fazer educacional (incluindo outras pessoas, normas, regulamentos e procedimentos). Há aqui, quando falamos de cinema uma confluência em relação aos saberes atitudinais e críticos-contextuais, de forma que essa categoria se dissolve em outras para a análise aqui apresentada. Em geral, os saberes classificados por Saviani (1996) revelam uma potência analítica ímpar, mas são isso, categorias analíticas. Quando tratamos de experiências empíricas e concretas, essas categorias se fundem e confundem umas nas outras. Não são de forma alguma formas puras, mas construtos que nos ajudam a pensar. E, nesse caso, tomamos um caminho de mão dupla, do cinema pensando a educação e do outro lado da educação pensando o cinema.
4. Aprendendo mundos pelo cinema.
Não se trata, quando falamos de cinema, de discutir tal arte como campo estanque e fechado em si, pelo contrário, o cinema faz pensar o mundo. Entendemos aqui portanto que o cinema pode e deveria ser usado em amplos e diferenciados contextos educacionais. E mais, deve e pode ser utilizado por profissionais da educação não tão familiarizados assim com a prática cinematográfica. O cinema não é uma coisa só do cinema, é de toda a sociedade que o circunda. A própria montagem, para Sergei Eisenstein (1990), por exemplo, é um processo que vai além do recorte e cole da celulose para se desdobrar como processo de construção social do conhecimento. Um fotograma num filme, ao ser inserido em outro momento do continuum fílmico, altera significativamente o conteúdo final da obra. Cezar Migliorin e Elianne Barroso abordam a pedagogia específica da montagem que tem sua genealogia ligada ao cinema soviético de Sergei Eisenstein e Dziga Vertov. Estes cineastas abriram o caminho para se pensar o cinema como dispositivo de produção de sentido em sua relação com a realidade. Dessa perspectiva avançam na possibilidade do cinema e das produções audiovisuais como inventores de formas de engajamento no espectador por meio do compartilhamento sensível de ideias, conceitos, percepções de mundo e conhecimento (MIGLIORIN, BARROSO, 2016.p.16).
Alain Bergala, no que podemos situar dentro de uma mesma reflexão, defende o ensino do cinema na escola como arte, e por isso, ação muito ligada a experiência do “fazer” e através do contato com o artista, o profissional (entendido como corpo estranho a escola) como elemento felizmente perturbador de seu sistema de valores, de comportamentos e de suas normas relacionais. Um encontro com a alteridade, acima de tudo. Esta perspectiva nos afasta da compreensão linguagista, evidenciando a especificidade artística diferencial do cinema: a de representar a realidade através da realidade (BERGALA.2008.p.30).
O central então é pensar que o cinema é potente como cinema, mas também como promotor de outras formas de educação. Nesse sentido, o educador e educadora é convidado a se apropriar do cinema em contexto educacional mesmo que não seja um profissional do cinema. Obviamente, entendemos que há uma maturidade dos estudos na área pedagógica com o cinema que permite essa interface. Mas a ideia é justamente experimentar, num movimento no qual o sujeito que educa, também se permite educar. Poucos ou quase nenhum professor ou professora numa escola brasileira realizou um filme em sua vida, porque não tentar isso junto aos seus alunos?
Tudo isso para dizer que o trabalho com imagens é transdisciplinar, e transdisciplinar porque se encontra sempre em meio aos movimentos contínuos de transubstancializações entre mundos e leituras. Não que haja uma substância comum de mundo a ser compartilhada, mas no sentido de inteligibilidades (ou não) discursivas. Entre transubstancializações mundo/imagem, e consubstancializações novamente mundo/imagem, somos levados sempre a novas leituras, sempre contaminadas por imagens e fatos históricos que invadem a existência, exigindo esses novos espaços de inteligibilidades. Como ignorar isso em tempos quase que dominados pela mediação tecnológica, que se faz visualmente em imagens? Como não pensar em audiovisual e cinema num mundo que se faz imagem diariamente? Como, em contextos de Brasil e América Latina, tão marcados pela prática do fazer, conhecer do cinema sem nele mergulhar enquanto prática? Como, para além disso, não nos tornamos meros reprodutores de “linguagens” cinematográficas de modo decolonial, buscando romper com cânones impostos? Ficam as provocações.
5. Referências:
BERGALA, Alain. A hipótese-cinema: Pequeno tratado de transmissão do cinema dentro e fora da escola. Rio de Janeiro: Booklink; CINEAD-LISE -FE/UFRJ, 2008.
EISENSTEIN, Sergei. Fora de Quadro. In: EISENSTEIN, Sergei. A forma do filme. São Paulo: Zahar, 1990, p. 35-48.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo: Edições Loyola, 2012.
_______________. Vigiar e Punir: história da violência nas prisões. Petrópolis: Editora Vozes, 1987.
MIGLIORIN, Cezar; BARROSO, Elianne Ivo. Pedagogias do cinema: montagem. Significação: Revista de Cultura Audiovisual, v. 44, p. 15-28, 2016.
NUÑEZ. Fabián O pensamento de Frantz Fanon no cinema latino-americano. Comunicação & Política, v. 29, p. 225-240, 2011.
SANTAELLA, L. Cultura das mídias (verbete). In: MILL, D. (org.).Dicionário Crítico de Educação e Tecnologias e de Educação a Distância. Campinas: Papirus, 2018.SAVIANI, Demerval. Os saberes implicados na formação do educador. In. Formação do educador: dever do estado, tarefa da universidade. Organização. Bicudo, Maria Aparecida Viggiani. & Silva Júnior, Celestino Alves. São Paulo – Editora da Universidade Estadual Paulista, 1996. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/decreto/d5296.htm>.